O livro translúcido de Luiza Leite
- Lucas ferreira
- há 6 dias
- 10 min de leitura

Uma crítica objetiva
O crítico Hilário Lambkin Formento é uma invenção de Borges e Bioy. Hilário, glosador fictício, publicava críticas tão puramente objetivas que se reduziam a comentários sobre a capa, o peso e o cheiro do papel.
O novo livro de Luiza Leite, que além de poeta é uma das editoras da Fada Inflada, me obriga a ser um pouco hilário na crítica, porque Adília vai à praia, mais que os demais, é um livro que começa desde a capa. Impresso em papel pergaminho transparente, sem lombada nem folha de rosto, seu livro já pela aparência deixa entrever um ar digno de simplicidade e leveza. Sem nem tocá-lo, é possível ver, meio desfocado, como peixes abaixo da superfície da água, o índice dos poemas. E aqui a palavra “índice” vai propositalmente grafada em itálico para te chamar a atenção de algo importante, mas que por enquanto vou guardar em segredo.
Transparência
Herman Hesse escreveu um belíssimo conto sobre um jovem poeta chinês que demora anos aprendendo a cantar para traduzir em poema a lua refletida no rio. Essa é a batalha de todo poeta, a tradução da realidade na imagem; e é justamente nessas águas em que Luiza Leite nada bem e muito humildemente. A humildade está no início e no fim de seu trabalho: no início, porque sua atenção não está voltada para o esplendor da luz da lua sobre a lâmina aquosa do rio. Não se interessa pelos chamados “temas poéticos”. Está voltada para a moça que come kiwi in natura no vagão, para a criança de colo que carrega a mãe pelo parque, para o hortifruti, para os panos de prato. Assim como está dito em uma das epígrafes do livro, “as musas são as pessoas que te rodeiam” (Cecília Pavón). Em suma, a realidade que atravessa Adília é cotidiana, humilde e humana.
Uma realidade tão chã e coletiva não poderia ser traduzida em poemas que não contivessem os mesmos atributos, a não ser que se operasse falsos milagres, prestidigitações, e nos iludisse. Luiza não nos ilude. Seus poemas são tão simples que quase não são poemas. É como se soubesse que o jovem poeta chinês de Hesse fracassará para sempre, porque poema e fracasso, por mais que se afine o alaúde, são sinônimos.
os melhores poemas são sobre o fracasso
obrigada pelo coraçãozinho
Faz cem anos, nas revistas literárias do Brasil surgiam vez ou outra comentários críticos do gênero: “isto não é poema, é lirismo”. Esses comentários não se destinavam a poetas iniciantes, se destinavam a Bandeira, Mário, Drummond, Oswald: todos, vez ou outra, ou quase sempre, faziam lirismo puro. Eu achei que esse problema já estava encerrado e enterrado. Mas quando a Luiza publicou na internet um poeminha tão somente…:
a voz é a imitação das vozes que amamos
a primeira coisa que fiz foi convidá-la para publicá-lo na revista Parque dos parquinhos. A segunda coisa que fiz, em seguida, com medo de soar sentimental ao ponto de cometer a gafe de ver poesia em tudo quanto é canto, foi perguntar: “aliás, é um poema?”. Nem todos são radicais ao ponto de desafiar-irritar-estranhar o conceito estanque de poesia, menos ainda as que o fazem de modo tão elegante, sofisticado e, ainda assim, simples. A Luiza respondeu, para meu alívio, “é poema, sim”. O que ela quer agora, continuou, é “escrever poemas que não parecem poemas”.
Poética
Poética e ética são aqui uma só coisa, ambas se auto-referem e altro-referem simultaneamente. Essa particularidade muito tem a ver com a arte zen. O haicai, por exemplo, não pode ser classificado somente como gênero, porque é antes de tudo um modo de estar presente, uma modalidade de atenção, ou, em última instância, é uma meditação. Luiza se assemelha aos mestres do haicai, Bashô, Buson e Issa, quando faz da poesia um suporte para gravar em letra permanente os fatos impermanentes do mundo:
[...]
percebo cada imagem
como quem toma
um sorvete que derrete
Os versos acima podem ser lidos como inauguradores da sua ética do poema [1]. Mas poucas vezes essa ética assume discurso tão explícito. No mais, o leitor tem de pescar o discurso pela forma. Seguem exemplos nos próximos parágrafos:
São escassas as comparações e metáforas. Os elementos do mundo são, como o são no próprio mundo, despidos de conexões, isto é, de sintaxe. Em Adília vai à praia, os elementos são justapostos, a ligação entre uma coisa e outra são estabelecidas por mera vizinhança — é o leitor que tem de levar o sentido A ao sentido B para, só assim, fabricar o sentido H, (qualquer letra imprevista convém). Luiza escreve de um jeito paratático, lacunar, como na poesia chinesa, e, sem sintaxe, sujeitos e predicados se elidem:
quase adormecendo pergunto quem disse isso
eu ou você?
Em muitos momentos, não há distinção entre objetivo e subjetivo, o próprio pensamento toma a forma do objeto. Essa fronteira aberta entre o que se passa fora e o que ecoa dentro (ou vice-versa) faz com que os substantivos tenham trânsito livre. Adília vai à praia é um livro cheio de frutas, pessoas, plantas, metrôs, vendedores, mesas, sonhos.
[...]
a luz que atravessa o quarto
o diário que você trouxe para mim da Ilha Grande
a cruz magra no topo da igreja
a água fresca cantando na garrafa
blup blip blup blip
Esse pequeno catálogo é para mim, em imagem e ritmo, uma das passagens mais belas do livro e reflete a beleza do todo. São poucas as abstrações, elucubrações, investigações filosóficas, porque são poucos os pensamentos. Normalmente quem está pensando muito não está vendo o que vê.
[...]
me estico para ver melhor
não consigo pensar em nada
o que talvez tenha a ver com os poemas
O livro se estrutura a partir desses farelos de reflexão. A poeta está atenta, o poema é feito com pedacinhos de pensamento, quase só ossos. Isso que dá a Adília vai à praia uma singularidade: É como se Luiza aplicasse a técnica do fluxo de consciência à consciência quase nua, quase iluminada; como se assistíssemos ao filme que passa na cabeça de quem está tentando meditar enquanto passeia pela rua, – imagens surgem, se associam e desaparecem.
Exatamente por isso, na difícil simplicidade que o lirismo de Luiza Leite alcança, soa mais intensamente artificial ler os artificialismos tradicionais da poesia. Adília vai à praia derrapa umas poucas vezes justamente quando a poeta se esquece de que não está fazendo poesia, (ou poemas que não parecem poemas), e acaba por fazê-los. É o caso deste, que, ao imprimir uma das imagens mais belas do conjunto, não deixa de ser atravessado pela reiteração de uma rima que, como um alarme, nos dispersa, nos relembra de que estamos diante de uma inteligência que organiza uma sequência de palavras com esmero:
minha mãe diz que não devemos
acender as luzes por causa dos mosquitos
tateio as panelas na penumbra
tentando encher o filtro
um filete de água transborda
tudo parece mais bonito
Mesmo os achados mais raros e deliciosos não funcionam no conjunto, vide esse fragmento, que soa como uma quadrinha, com a dupla pérola Cocoon / roll-on.
minha avó queria rejuvenescer
como os velhinhos no filme Cocoon
que ela viu na sessão matinê
com gloss de framboesa roll-on
[...]
Salvo esses breves casos de exceção, em que a inteligência organizadora dá as caras, o que há no livro são brilhos frugais, que não pedem atenção, como milagres comuns, pronunciados de um modo quase distraído.
Índice
Chegou a hora de puxar o fio que eu deixei lá no início. Você se lembra de quando eu disse que Adília vai à praia transparece desde a capa o índice dos poemas? Pois bem, essa é mais uma característica objetiva com implicações mais profundas.
Na teoria da linguagem, o índice representa o “indício” do referente: a fumaça é índice do incêndio, a pista molhada índice da chuva; a fruta mordida em cima da mesa é sinal de que você passou por aqui. Lemos o mundo o tempo todo através dos rastros.
No haicai, o índice é tão importante que basicamente há uma palavra especial para designá-lo: kigo, é a referência obrigatória à estação do ano. Muitas vezes você não vai ver nesses poemas menção à palavra “primavera”, mas vai ver “flor de cerejeira”, que germina justamente nessa estação, e a ela faz referência.
Cerejeiras do anoitecer —
Hoje também
Já é outrora.
(Issa trad. Paulo Franchetti)
Luiza Leite, numa operação sutil, dá ao kigo um caráter extremamente pessoal: não possuem mais uma significação coletiva, amparada pelas Leis que regem a natureza através dos fenômenos que acusam as estações. Para ela, os índices, sob a transparência de capas e lençóis, se referem aos seus fantasmas pessoais.
a língua da minha avó pode ser ouvida
antes das seis
nos chinelos acolchoados
ouço a voz da minha avó
toda vez que levo um susto
Os objetos cotidianos exumam aqueles que estão invisíveis ou ausentes; representam, pela transferência, o luto, (em seu sentido amplo, de algo ou alguém que se estava aqui e não está mais, que se perdeu de nós); se transformam em símbolo; significam algo para além de si mesmos, a xícara, cansada de significar xícara, passa a significar algo mais:
adoro poemas que dizem
fiz isso fiz aquilo depois esqueci
hoje guardei uma xícara
virada para baixo sobre o prato
minha avó fazia isso
quando preparava o lanche
o meu braço não esqueceu
As palavras, para além do que significam por si, estão impregnadas de mais-valia, um valor que corriqueiramente chamamos sentimental. Esses fantasmas estão nos gestos e objetos. E nada têm de terríveis, são antes resquícios de ternura, são a permanência do que amamos e era impermanente. O amor e seu índice se encontram justamente nas últimas palavras desse poema: não esquecer. Se é elencado uma predileção pelos poemas que enumeram ações triviais e que por isso se perdem no esquecimento, o poema em questão é contrário a isso, porque em seu gesto trivial está a marca do que não se esquece, do que permanece escrito no nosso corpo.
Alhos fatos e outros ruídos
Você se lembra da historinha que contei muito brevemente sobre o conto de Herman Hesse? Pois bem, vamos complicá-la a partir de algumas especulações: o jovem poeta chinês está estudando incansavelmente para traduzir o luar em poema, assim como o rio o traduz em reflexo sem esforço algum. A questão é, se a lua é refletida em um rio ruidoso e tumultuado, como poderá o poeta esperar o reflexo de uma lua pura, de algo que não seja lua + ruído e tumulto? Agora uma pergunta de outra natureza: mesmo se as águas estivessem completamente calmas, sendo a lua, como tudo, por si só absurda, como poderia seu reflexo excluir a absurdez desse satélite dependurado no espaço?
Qualquer poeta e qualquer monge zen nutrem pela linguagem um desprezo perfeito. Ambos sabem que muita coisa se perde, muita coisa se deforma, se quebra, se zebra, se ébria, se abre inteira no vão entre o trem e a plataforma.
uma love story meu bem
passa o carro do ferro velho
O carro que passa cotidianamente pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, repetindo a canção evangélica no alto do alto-falante “uma nova história Deus tem”, não é parodiado, antes representa um processo que costumamos chamar de mal-entendido. Funciona assim, eu digo uma coisa, você entende outra. A vida é cheia desses fenômenos. Na verdade, a má compreensão é mais comum do que a boa compreensão. A comunicação é mais ruído de mensagem que mensagem.
eu disse peixes
ela entendeu patience
ele disse telas
ela entendeu letras
ela disse curvas
eu entendi vírgulas
Não vim aqui dizer os malefícios da incompreensão. O amor que eu e você algum dia já vivenciamos está aí armado até os dentes de provas bem documentadas. Essa quadrilha à drummondiana do poema da Luiza poderia muito bem ter seus pronomes trocados pelos nossos nomes próprios. Aliás, o lado bom da má compreensão é a poesia. Tira a trave dos teus olhos para ver que peixes e patience, telas e letras, curvas e vírgulas, são praticamente a mesma coisa, assim como
cinema e piscina parecem sinônimos
Ou neste outro caso, em que alhos fatos, quer dizer, atos falhos, produzem pela distração um sentido maior, em que o corpo é quem nos aplica a lição de ser exatamente aquilo que se é em toda sua complexidade e perfeição.
queria dizer sou cheia de defeitos
saiu sou cheia de detalhes
Entre mim e o carro velho, entre ela e eu, entre mim e eu mesmo, a comunicação falha. O interessante é perceber, para além da natural e saudável descrença, a crença ainda que irônica em consertar o desconcerto do mundo: os olhos atentos da poeta agem no mundo como exímios revisores, tentando reatar as palavras às coisas:
revisão
p. 14 mágoa tem acento
p. 15 silêncio tem acento
Alocado maliciosamente na página treze, parece querer corrigir algo que ainda será dito. O leitor vira a folha em busca dos erros que exigiriam a “errata” e não encontra nada. O poema revisa um texto que é externo ao livro, e por isso, não deixa de ser uma correção irônica, porque mágoa e silêncio podem muito bem não ter acento e a correção se torna o próprio ruído.
A sopa e o garfo
Quando li uma das primeiras versões de Adília vai à praia, escrevi a seguinte entrada no meu diário:
Ontem terminei de ler o futuro livro da Luiza. Na noite de hoje sonhei com ela. É engraçado porque não costumo sonhar com os livros que leio, mas dessa vez foi ainda mais estranho porque sonhei com o modo como a poeta fabrica seus poemas: Luiza estava sentada, sozinha, tomando sopa com garfo. Muito lenta, muito normalmente. (12 de maio de 2024)
Muito ao modo da poeta, traduzi em sonho a experiência que se passou comigo e em mim. Entendi que o gesto absurdo de tomar sopa com garfo era o gesto absurdo de tentar apreender algo inapreensível, como diria Drummond, “a realidade é maior que a realidade”. Escrever é sobretudo fracassar. Mas é também se resignar sobre a impossibilidade que é não escrever, que não é teimosia, que não é insistir no erro. Mas é paciência, atenção, transparência. O que queremos não é a sopa rala, e sim o fundo da tigela, – a imagem que o rio guarda da lua na sua profundeza, não na superfície.
Fiquei emocionado ao terminar o trajeto de Adília vai à praia, porque ao fechar o livro, notei que o suor da minha mão tinha começado a desbotar o poema da quarta capa. Notei que o mesmo já estava acontecendo com a capa, em que sobrou pouco do nome “Luiza Leite” e do título. O livro se desfaz. Eu o li totalmente convicto de que a poesia é a forma mais segura de gravar algo duradouro e esqueci que a escrevemos, aérea, na areia. Li os poemas procurando neles a tinta permanente da escrita, das coisas que a poeta salvou do fogo dos dias, do esquecimento. Mas nada sai impune desse incêndio que não cessa nunca. “Luiza Leite”, “Adília vai à praia”... A própria praia vai se apagar. Mas é só assim, apagando, que poderemos ler melhor os indícios em que se fixaram os poemas, um pouco abaixo da superfície.
02:56, 26.05.2025
Lucas ferreira para A bobina. Lucas nasceu em 1998 na cidade de Barueri (SP). É poeta, editor da Fictícia e da revista Parque dos parquinhos. Estuda literatura brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E agradece a Mabel e o Gabriel Gonzalez.
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