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Experimentação e negritude na Poesia Reunida de Adão Ventura

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O Círculo de Poemas da Editora Fósforo realiza um evento extraordinário no panorama da poesia brasileira ao publicar o volume inédito A cor da pele: poesia reunida, do afro-mineiro Adão Ventura (1939-2004).


Organizado por Fabrício Marques e com ensaio de Silviano Santiago, o volume reúne a obra poética completa do escritor de Santo Antônio do Itambé, a saber, os livros Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (1970), As musculaturas do arco do triunfo (1975), A cor da pele (1980), Jequitinhonha: poemas do vale (1980/1997), Texturaafro (1992), Litanias de Cão (2002) e Costura de Nuvens (2006). Junto a esta reunião somam-se ainda uma seleção de poemas dispersos publicados em revistas e suplementos literários.


Decerto que o público leitor desta poesia reunida perceberá alguma tensão na bibliografia de Adão ao se deparar com a dissonância entre os livros de poesia em prosa publicados durante a década de 1970; Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (1970), As musculaturas do arco do triunfo (1975); e as obras publicadas a partir de 1980, que apresentam uma voltagem deliberadamente racializada e sócio-politizada, como, por exemplo, os livros A cor da pele (1980) e Texturaafro (1992).


É nesta tensão entre pesquisa e engajamento que leitoras e leitores desta poesia reunida terão a oportunidade de recepcionar a negritude poética de um autor que experimentou, com alto desempenho, instrumentos inusitados da linguagem literária sem relegar sua condição de negro-brasileiro.


A estreia literária de Adão ocorreu em 1970, com Abrir-se um Abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul. Trata-se de um projeto ousado de edição de poema em prosa com 15 composições que aparentemente demonstram bastante distância em relação à realidade. Contudo, são nessas altas sobrecargas conotativas que surgem experiências ora afetivas, ora traumatizantes.

 

5- As portas são grandes e estão fechadas mas o amor exis-

te porque teus olhos denunciam manhãs claras. era ne-

cessário percorrer aquelas estradas; havia nascimentos e

os muros conservam ainda a tatuagem do sono. as ca-

deiras se alinhavam em posições contrárias e eram cober-

tas pelas sombras periódicas dos meninos adormecidos de

esquecimentos. nas profundezas do rosto as lágrimas

são velhas e se apodrecem de medo.

(apontamentos para ligya I, p.21)


Neste projeto de estreia de Adão Ventura, a transgressão radical dos recursos linguísticos-literários acomoda situações violentas.

 

também fomos escravos de ga-/ leras, redutos de agudas fomes; eu vento – rumo de mim/ mesmo, eu-habitante dessa máquina de construir sombras,/ [..]

(águas de testamento II, p.24)


O Círculo de Poemas também possibilita, com esta publicação inédita, o acesso a outro manejo de Adão Ventura deste mesmo período: o livro As musculaturas do arco do triunfo, publicado em 1975.


Esse é um projeto poético inusitado e audacioso de locução híbrida de poema em prosa, com voltagens surrealistas, neobarrocas e simbolistas, que registra uma narratividade pantanosa. Após a seção turbulenta “Livro de Hagbe”, vale destacar a seção “Unidade Segunda”, que comporta três poemas; um deles é o estupendo dos porcos e algumas de suas obsessões.

 

eles adoram comidas finas. seus pratos são feitos de

ouro, ouro maciço, puro, suas salas são finamente

atapetadas e amplas como as de um castelo. [...]

(dos porcos e algumas de suas obsessões, p.45)

 

Já num outro momento desta poesia reunida, o público leitor perceberá que a partir de 1980, com a publicação do livro A cor da pele, o poema de Adão Ventura assumiria uma postura explicitamente racializada e sócio-politizada. A cor da pele é uma obra filiada a linhagem enunciativa de escritores negros que posicionam o poema enquanto instância de expressão e de inscrição mais engajada e mais combativa da negritude.


em negro

teceram-me a pele.

enormes correntes

amarram-me ao tronco

de uma Nova África.

carrego comigo

a sombra de longos muros

tentando impedir

que meus pés

cheguem ao final

dos caminhos.

 

mas o meu sangue

está cada vez mais forte,

tão forte quanto as imensas pedras

que os meus avós carregaram

para edificar os palácios dos reis.

(Um, p.59)

 

As composições de A cor da pele, dividas em quatro seções; “Das Biografias”, “Da servidão e chumbo”, “Raízes” e “Livro último”, representam a perturbação dos debates literários e sociais do Brasil naquele momento, e ainda hoje, na medida que apresentam as contranarrativas e os contradiscursos descentralizados e descentralizantes: “minha carta de alforria/ não me deu fazendas, / nem dinheiro no banco, / nem bigodes retorcidos.” (Negro forro, p.70).


A comunidade leitora desta poesia reunida perceberá, portanto, que o poema de Adão, até o livro Costura de Nuvens, passaria, explicitamente, a se preocupar com tópicos referentes à afirmação identitária negra, à crítica a escravatura, à denúncia contra o racismo, às tradições afro-brasileiras, às ancestralidades, memórias familiares, cultura regional e aos discursos de resistência, de revolta e de desassimilação.


Eu-Zumbi

jogo por terra

a caneta de ouro

de todas as Leis-Áureas.

(Zumbi, p.205)


Consciente da condição do negro no campo literário e na sociedade brasileira, Adão Ventura coloca no caminho e no poema outros atores e outras narrativas que comungam da experiência visceral de serem pretos neste país.


[...]

Isidoro é chamado,

a chibata come.

Seu corpo é arrastado

pelas ruas do Tejuco.

(Escravo Isidoro, p.149)


A publicação da poesia reunida de Adão Ventura pelo Círculo de Poemas da Editora Fósforo concede ainda a oportunidade de leitura de outras produções em que o poeta negro-mineiro mobiliza estratégias literárias e linguísticas simples, mas que retratam outras complexidades, como poderá ser conferido nas demais obras inseridas neste volume; Jequitinhonha: poemas do vale e Litanias de Cão.


É noite - madrugada

abril de 1997,

uma selvagem gang de rua,

rapazes classe-média alta,

num ponto de ônibus

bairro-centro de Brasília,

queima vivo

e MATA

 

o índio Galdino

da tribo Pataxó, Sul da Bahia.

(Klu Klux Klan uma cena de inquisição em pleno século XX, p.187)


O lançamento realça também uma biografia em que constam atividades como presidente da Fundação Palmares/DF, coordenador do Núcleo de Cultura Afro-brasileira na Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, redator do Suplemento Literário de Minas Gerais, egresso do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, vencedor do Prêmio Belo Horizonte de Literatura; além de participação no Congresso Internacional de Escritores promovido pela Universidade de Iowa/EUA e ministração de aulas de Literatura Brasileira Contemporânea na Universidade do Novo México/EUA.


A cor da pele: poesia reunida de Adão Ventura surge para contextualizar uma produção potente e, sobretudo, consolidar uma nova comunidade leitora diversificada e muito mais atenciosa, que considere os tensionamentos formais e temáticos enquanto um projeto dinâmico e ousado de expressão poética negra-brasileira.

 

[...]

teça o seu corpo

ainda que a música

lhe desagrade

 

teça o seu corpo

sem o menor temor

mesmo que lhe falte o porto

de precárias balsas

[...]

(Teares de Berilo e Roça Grande, p.110)

 

 

Matheus José dos Santos para A bobina. Matheus é discente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Colaborou no inventário arquivístico da coleção de Adão Ventura como bolsista do Acervo dos Escritores Mineiros FALE/UFMG. Coordena a oficina de "Imersão a cor da pele: poética e acervo de Adão Ventura”. Autor de “Poema ou pomar em meio ao caos”, Editora Primata.

 

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