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Essa é ou não é uma história feliz? Luto e poética em Diário da casa nova, de Lilian Sais

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Em Diário da casa nova, terceiro livro da sua tetralogia da perda, Lilian Sais escreve:

 

duas crianças moram

no andar de cima

 

uma quer ser astrônoma

outra quer ser astronauta

 

e assim também somos nós, diante do luto.

 

Divididos entre dois desejos: o de, vendo de longe todo um universo, composto indistintamente pelo brilho de estrelas que ainda estão e que não estão mais lá, quem sabe, o compreender. E o desejo de, navegando de um ponto insignificante até outro ponto insignificante da galáxia, encontrar algo de significativo na minuciosa concretude de rochas e moléculas.

 

Mas se há uma diferença fundamental entre observar de longe e de perto, há uma semelhança inescapável entre o astrônomo e o astronauta: o universo, assim como o luto, não tem fora, só o podemos observar de dentro.

 

Essa questão se reflete no uso dos pronomes em Diário da casa nova, composto por poemas impessoais em que se alternam observações em terceira pessoa sobre “um velho”, “uma cidade indigna”, “este lugar sem nome”, “as possibilidades”, “aqui”, “qualquer brisa”, “o dilema”, “cada janela acesa”, “duas crianças”, “o umbigo”, “um pássaro” e, de novo, “um velho” (sim, o mesmo), e  também por poemas que se dirigem a um “você” (um recurso que lembra Claudia Rankine, em Citizen, com outros fins, em outro contexto). Com esse uso reiterado do “você”, Lilian Sais convoca quem lê a se identificar e se estranhar nessa interpelação – produzindo o efeito de um convite a observar de fora alguém que observa a si como se de fora:


você vai à feira

compra duas cebolas

dois tomates

um pimentão de cada cor

um vaso com manjericão

 

volta para casa

esticando os lábios

como se sorrisse

 

Mas o “eu”, assim como o “universo”, não tem um fora.

 

Na longa tradição de poemas de luto há uma recorrente constatação de que diante da catástrofe o mundo segue como se nada tivesse acontecido. Diante disso, é possível se indignar – como Auden, em “Funeral blues”, ordenando a um mundo indiferente: “Stop all the clocks, cut off the telephone, / Prevent the dog from barking with a juicy bone” – ou aceitar – como Ferreira Gullar, diante da “Morte de Clarice Lispector”, constatando que evidentemente “as pedras e as nuvens e as árvores / no vento / mostravam alegremente / que não dependem de nós”. Mas, nos dois casos, aos vivos resta seguir vivendo. “Viver” essa palavra abstrata que se materializa na minuciosa concretude do mundano:

 

você lavou a toalha

colocou-a no varal

agora diante dela

espera que seque

para que depois

ao sair do banho

possa molhá-la de novo

estendê-la de novo

e deixá-la esperando

pacientemente

a próxima ducha fria

 

Nesse, e em outros poemas do livro, talvez seja possível relacionar o absurdo da continuidade indiferente do mundo e a forma poética escolhida por Lilian Sais – da observação impessoal de situações entremeada pelo uso do “você” – ao fenômeno psíquico da despersonalização.   

 

O transtorno de despersonalização, quase sempre desencadeado por estresse grave – como, por exemplo, a morte de uma pessoa querida – pode ser definido como “um tipo de transtorno dissociativo que consiste em sentimentos recorrentes ou persistentes de distanciamento do próprio corpo ou processos mentais, geralmente com uma sensação de ser um observador externo da própria vida”. Ficar fora de si.

 

E aqui o efeito contundente da opção poética por essa forma despersonalizada, em uma poesia lírica, mas em que o “eu” está ausente de si mesmo: a identificação de quem lê, não necessariamente com os fatos específicos na vida desse “você” – mesmo que que por vezes o/nos observemos fazendo algo tão universal e corriqueiro quanto pendurar uma toalha molhada – mas sim uma identificação com a própria situação de despersonalização, em que, como num sonho, observamos a nós mesmos como se o eu fosse um outro – que de fato é.

 

Mas o que isso tem a ver com uma casa nova?

 

Mudar de casa traz sempre a possibilidade de mudar de vida – e potencialmente o luto pela vida que deixamos. Afinal, em toda casa:

 

são duas

as possibilidades

 

primeira:

esta será a última

casa

 

segunda:

esta não será a última

casa

 

os motivos variam

é claro

 

mas as coisas são

como são

 

É nesse mundo que Lilian Sais nos convida a perguntar o que significa dizer: “eu me senti em casa”. Uma investigação desse processo em que:

 

você salta do táxi

numa rua qualquer

que a partir de hoje

por uma fatalidade

você chamará de sua

até que ela seja

de fato

sua

 

Um processo que, assim como o próprio sentido de “fatalidade”, pode ser entendido tanto figurativa como literalmente.

 

Mas o livro não coloca apenas perguntas, parece propor uma resposta. Em uma realidade em que a morte é a única certeza e em que qualquer ser vivo é ínfimo diante da enormidade do universo, o que resta é uma busca por dignidade e conexão. Como quando você encontra um pássaro morto:

 

mas você faz questão

de chamá-lo pássaro

com a dignidade redonda

que reside nas palavras ditas

em sua inteireza

 

é um pássaro morto

recém-nascido

caído do ninho

no meio-fio

 

você busca no chão

ramo ou folhagem

que o cubra

 

Em um mundo em que uma vizinha desconhecida pode cair na escada e “ficou perdendo sangue / durante uma hora / enquanto a síndica pedia / para tomar cuidado / com o corpo estendido / no hall de entrada”, Lilian Sais, diante da morte de um pássaro, invoca a dignidade da palavra e a delicadeza de uma mortalha e nos convoca a ouvir que “os sinos da igreja / ressoam cada golpe / no vazio do metal”. Assim, nos lembra de nunca deixar de perguntar por quem os sinos dobram, porque, atualizando John Donne, a luta no mundo contemporâneo é não esquecer que nenhuma pessoa é um apartamento, isolada em si mesma. É necessário:

 

olhar cada janela acesa

dos edifícios do entorno

até que salte

da superfície de um segundo

a história

de uma vida


E como seria essa história?

 

Talvez ela se pareça com a “de um velho / diante do mar” que:

 

 teve sonhos amigos família

 construiu uma casa

 restaram-lhe sapatos

 e além deles

 uma irmã e duas filhas

 

 as três pessoas que o velarão

 na antessala do crematório

 

Essa história, que aparece duas vezes no livro, espelhada em seu início e no seu fim, serve talvez como um teste de Rorschach, afinal, cabe a quem lê decidir se o que se descreve é ou não uma vida bem vivida, se essa história, que poderia – e talvez seja – a história de quase qualquer um, é ou não uma história feliz.

 

Mas esse não é o único teste que essa história coloca. Há também, como em toda história, um teste de identificação. Com quem você se identifica? Com o velho diante do mar, ou com sua irmã e/ou uma de suas filhas? Talvez essa resposta dependa da sua idade, talvez ela dependa do seu gênero, talvez ela dependa do que se passou em sua vida ou do momento em que você lê esse poema. Porque se o luto pode trazer com ele o fenômeno da despersonalização, ele também por vezes nos convoca a nos identificar simultaneamente com os dois polos dessa cadeia, com quem vela e com quem é velado, com quem parte e com quem fica.

 

Nesse livro, é notável que, diferentemente do que ocorre em uma longa tradição poética, os que ficam não perguntam “onde estão” (ubi sunt) os que partiram. É outra a questão que se coloca:

 

o dilema é

tecer uma mortalha

sem ter muita certeza

de como

segurar a agulha

ou jogar a agulha

em um palheiro

e passar o resto da vida

a buscá-la

 

Lilian Sais escreve sua poesia com o cuidado de quem “sem ter muita certeza / de como” tece uma mortalha e encontra a sua forma no processo de a tecer, com a delicadeza de quem “busca no chão / ramo ou folhagem” que cubra um pássaro morto, e com a obstinação de quem recusa a alternativa.

 

Se a diferença entre o astronauta e o astrônomo é uma diferença entre ver o todo e ver a parte, ver de longe e ver de perto, entre quem parte e quem fica, o que dizer de Michael Collins, que “integrou a primeira / tripulação a viajar / até a lua // então diante da lua // foi o único / a não tocar com os pés / a superfície esburacada”?

 

Lilian Sais nos informa que “alguns” o chamam “de o homem mais solitário / da história”, mas e você, o que você vê?  Collins foi até a lua para a ver de perto e, chegando lá, pode ver de longe o planeta terra: “minúsculo / muito brilhante / azul e frágil”. A história de alguém que partiu em busca de algo para encontrar algo diferente do que procurava poderia ser – e talvez seja – a história de quase qualquer um. Mas essa é ou não é uma história feliz? São perguntas como essa que o luto, que a perda, que grandes mudanças nos convidam a fazer.

 

São com perguntas como essa que Lilian Sais nos confronta em seu Diário da casa nova. Afinal:

 

o que dizer do mundo

senão que este chão

em que hoje você pisa

pode ser

um destino


 


Thomaz Pereira para A bobina. Um paulista no Rio de Janeiro, Thomaz é professor, pesquisador e poeta. Publicou o livro de poemas Mais ridículo que (7Letras, 2023).

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