Essa é ou não é uma história feliz? Luto e poética em Diário da casa nova, de Lilian Sais
- Thomaz Pereira
- 7 de nov.
- 6 min de leitura

Em Diário da casa nova, terceiro livro da sua tetralogia da perda, Lilian Sais escreve:
duas crianças moram
no andar de cima
uma quer ser astrônoma
outra quer ser astronauta
e assim também somos nós, diante do luto.
Divididos entre dois desejos: o de, vendo de longe todo um universo, composto indistintamente pelo brilho de estrelas que ainda estão e que não estão mais lá, quem sabe, o compreender. E o desejo de, navegando de um ponto insignificante até outro ponto insignificante da galáxia, encontrar algo de significativo na minuciosa concretude de rochas e moléculas.
Mas se há uma diferença fundamental entre observar de longe e de perto, há uma semelhança inescapável entre o astrônomo e o astronauta: o universo, assim como o luto, não tem fora, só o podemos observar de dentro.
Essa questão se reflete no uso dos pronomes em Diário da casa nova, composto por poemas impessoais em que se alternam observações em terceira pessoa sobre “um velho”, “uma cidade indigna”, “este lugar sem nome”, “as possibilidades”, “aqui”, “qualquer brisa”, “o dilema”, “cada janela acesa”, “duas crianças”, “o umbigo”, “um pássaro” e, de novo, “um velho” (sim, o mesmo), e também por poemas que se dirigem a um “você” (um recurso que lembra Claudia Rankine, em Citizen, com outros fins, em outro contexto). Com esse uso reiterado do “você”, Lilian Sais convoca quem lê a se identificar e se estranhar nessa interpelação – produzindo o efeito de um convite a observar de fora alguém que observa a si como se de fora:
você vai à feira
compra duas cebolas
dois tomates
um pimentão de cada cor
um vaso com manjericão
volta para casa
esticando os lábios
como se sorrisse
Mas o “eu”, assim como o “universo”, não tem um fora.
Na longa tradição de poemas de luto há uma recorrente constatação de que diante da catástrofe o mundo segue como se nada tivesse acontecido. Diante disso, é possível se indignar – como Auden, em “Funeral blues”, ordenando a um mundo indiferente: “Stop all the clocks, cut off the telephone, / Prevent the dog from barking with a juicy bone” – ou aceitar – como Ferreira Gullar, diante da “Morte de Clarice Lispector”, constatando que evidentemente “as pedras e as nuvens e as árvores / no vento / mostravam alegremente / que não dependem de nós”. Mas, nos dois casos, aos vivos resta seguir vivendo. “Viver” essa palavra abstrata que se materializa na minuciosa concretude do mundano:
você lavou a toalha
colocou-a no varal
agora diante dela
espera que seque
para que depois
ao sair do banho
possa molhá-la de novo
estendê-la de novo
e deixá-la esperando
pacientemente
a próxima ducha fria
Nesse, e em outros poemas do livro, talvez seja possível relacionar o absurdo da continuidade indiferente do mundo e a forma poética escolhida por Lilian Sais – da observação impessoal de situações entremeada pelo uso do “você” – ao fenômeno psíquico da despersonalização.
O transtorno de despersonalização, quase sempre desencadeado por estresse grave – como, por exemplo, a morte de uma pessoa querida – pode ser definido como “um tipo de transtorno dissociativo que consiste em sentimentos recorrentes ou persistentes de distanciamento do próprio corpo ou processos mentais, geralmente com uma sensação de ser um observador externo da própria vida”. Ficar fora de si.
E aqui o efeito contundente da opção poética por essa forma despersonalizada, em uma poesia lírica, mas em que o “eu” está ausente de si mesmo: a identificação de quem lê, não necessariamente com os fatos específicos na vida desse “você” – mesmo que que por vezes o/nos observemos fazendo algo tão universal e corriqueiro quanto pendurar uma toalha molhada – mas sim uma identificação com a própria situação de despersonalização, em que, como num sonho, observamos a nós mesmos como se o eu fosse um outro – que de fato é.
Mas o que isso tem a ver com uma casa nova?
Mudar de casa traz sempre a possibilidade de mudar de vida – e potencialmente o luto pela vida que deixamos. Afinal, em toda casa:
são duas
as possibilidades
primeira:
esta será a última
casa
segunda:
esta não será a última
casa
os motivos variam
é claro
mas as coisas são
como são
É nesse mundo que Lilian Sais nos convida a perguntar o que significa dizer: “eu me senti em casa”. Uma investigação desse processo em que:
você salta do táxi
numa rua qualquer
que a partir de hoje
por uma fatalidade
você chamará de sua
até que ela seja
de fato
sua
Um processo que, assim como o próprio sentido de “fatalidade”, pode ser entendido tanto figurativa como literalmente.
Mas o livro não coloca apenas perguntas, parece propor uma resposta. Em uma realidade em que a morte é a única certeza e em que qualquer ser vivo é ínfimo diante da enormidade do universo, o que resta é uma busca por dignidade e conexão. Como quando você encontra um pássaro morto:
mas você faz questão
de chamá-lo pássaro
com a dignidade redonda
que reside nas palavras ditas
em sua inteireza
é um pássaro morto
recém-nascido
caído do ninho
no meio-fio
você busca no chão
ramo ou folhagem
que o cubra
Em um mundo em que uma vizinha desconhecida pode cair na escada e “ficou perdendo sangue / durante uma hora / enquanto a síndica pedia / para tomar cuidado / com o corpo estendido / no hall de entrada”, Lilian Sais, diante da morte de um pássaro, invoca a dignidade da palavra e a delicadeza de uma mortalha e nos convoca a ouvir que “os sinos da igreja / ressoam cada golpe / no vazio do metal”. Assim, nos lembra de nunca deixar de perguntar por quem os sinos dobram, porque, atualizando John Donne, a luta no mundo contemporâneo é não esquecer que nenhuma pessoa é um apartamento, isolada em si mesma. É necessário:
olhar cada janela acesa
dos edifícios do entorno
até que salte
da superfície de um segundo
a história
de uma vida
E como seria essa história?
Talvez ela se pareça com a “de um velho / diante do mar” que:
teve sonhos amigos família
construiu uma casa
restaram-lhe sapatos
e além deles
uma irmã e duas filhas
as três pessoas que o velarão
na antessala do crematório
Essa história, que aparece duas vezes no livro, espelhada em seu início e no seu fim, serve talvez como um teste de Rorschach, afinal, cabe a quem lê decidir se o que se descreve é ou não uma vida bem vivida, se essa história, que poderia – e talvez seja – a história de quase qualquer um, é ou não uma história feliz.
Mas esse não é o único teste que essa história coloca. Há também, como em toda história, um teste de identificação. Com quem você se identifica? Com o velho diante do mar, ou com sua irmã e/ou uma de suas filhas? Talvez essa resposta dependa da sua idade, talvez ela dependa do seu gênero, talvez ela dependa do que se passou em sua vida ou do momento em que você lê esse poema. Porque se o luto pode trazer com ele o fenômeno da despersonalização, ele também por vezes nos convoca a nos identificar simultaneamente com os dois polos dessa cadeia, com quem vela e com quem é velado, com quem parte e com quem fica.
Nesse livro, é notável que, diferentemente do que ocorre em uma longa tradição poética, os que ficam não perguntam “onde estão” (ubi sunt) os que partiram. É outra a questão que se coloca:
o dilema é
tecer uma mortalha
sem ter muita certeza
de como
segurar a agulha
ou jogar a agulha
em um palheiro
e passar o resto da vida
a buscá-la
Lilian Sais escreve sua poesia com o cuidado de quem “sem ter muita certeza / de como” tece uma mortalha e encontra a sua forma no processo de a tecer, com a delicadeza de quem “busca no chão / ramo ou folhagem” que cubra um pássaro morto, e com a obstinação de quem recusa a alternativa.
Se a diferença entre o astronauta e o astrônomo é uma diferença entre ver o todo e ver a parte, ver de longe e ver de perto, entre quem parte e quem fica, o que dizer de Michael Collins, que “integrou a primeira / tripulação a viajar / até a lua // então diante da lua // foi o único / a não tocar com os pés / a superfície esburacada”?
Lilian Sais nos informa que “alguns” o chamam “de o homem mais solitário / da história”, mas e você, o que você vê? Collins foi até a lua para a ver de perto e, chegando lá, pode ver de longe o planeta terra: “minúsculo / muito brilhante / azul e frágil”. A história de alguém que partiu em busca de algo para encontrar algo diferente do que procurava poderia ser – e talvez seja – a história de quase qualquer um. Mas essa é ou não é uma história feliz? São perguntas como essa que o luto, que a perda, que grandes mudanças nos convidam a fazer.
São com perguntas como essa que Lilian Sais nos confronta em seu Diário da casa nova. Afinal:
o que dizer do mundo
senão que este chão
em que hoje você pisa
pode ser
um destino
Thomaz Pereira para A bobina. Um paulista no Rio de Janeiro, Thomaz é professor, pesquisador e poeta. Publicou o livro de poemas Mais ridículo que (7Letras, 2023).





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