Uma boneca com corpo quente
- Bianca Gonçalves
- 28 de jul.
- 3 min de leitura
“Protect the Dolls”. É o que diz a estampa da camiseta de uma campanha que ganhou destaque nos noticiários fashionistas, sendo ostentada no corpo de celebridades como Madonna, Pedro Pascal e Charli XCX. A “boneca”, tanto aqui quanto lá, é uma expressão recorrente na cultura LGBTQIA+ para referir-se a mulheres trans e travestis. Mais do que um mero símbolo do imaginário feminino, as bonecas, embora objetos, são depositárias dos desejos humanos, sejam estes de homens ou de mulheres (ou de qualquer outro gênero movente). Tornadas sujeitos na indústria cultural, as bonecas são simulacros da feminilidade, afetividade, sexualidade; são também objetos de brincar, enfeitar, trepar; e, como se não bastasse, também são motivos de disputas identitárias e ideológicas: basta observar a (não tão) recente abertura de mercado para a venda de bonecas que escapam ao padrão branco, loiro e magro, ou a recentíssima polêmica das bonecas reborn...
Dentro da vivência trans, a boneca é uma cara metáfora, seja pela plasticidade ou pela estaticidade. E é dentro deste circuito ambivalente que a poeta e bailarina maranhense Gal Freire, em Barbie, Brasil, Tesão (Macondo Edições, 2023), produz narrativas e imagens que, ao mesmo tempo, servem de denúncia à violência transfóbica, mas também estancam a dureza deste cotidiano.
A poeta então constrói uma paródia do mundo cor-de-rosa, no qual o corpo da boneca Barbie se retira da órbita da ingenuidade romântica cis para se transformar em uma tragicomédia travesti. O filósofo Paul B. Preciado, em Testo Junkie, até chegou a caracterizar a figura de uma “tecno-Barbie” – “eternamente jovem e supersexualizada” –, ainda que de uma forma abreviada, para ilustrar o controle heterossexual farmacopornográfico. Mas esta difere muito do que a mesma boneca suscita no livro de Gal Freire, no qual a Barbie é lapidada para encenar diversos dramas, entre o desastre e o humor:
vejo meu reflexo na vitrine da rihappy
e lembro da barbie suicida
que encontrei na deep web
esse é o modelo que vou pedir a você
de aniversário e ela vai brincar
com o seu coelhinho de estimação,
o Fred Astaire, que de tão fofo
me dá vontade de morrer
[...]
(trecho de “Barbie suicida”)
A poética de Barbie, Brasil, Tesão consegue entregar algo talvez inédito em nosso cenário literário: um trabalho que dá a dimensão lírica transexual a partir da abordagem de uma tópica que fere o repertório consagrado no qual ela se insere, combinando, como também sugere o título, a inserção deste corpo marginalizado em esfera nacional – como no poema “barbie no país em que mais mata bonecas”:
barbies não têm coração,
mas se tivessem
os brasileiros já teriam arrancado
e colocado uma santa
no buraco que fariam em seu peito.
jogariam o que sobrasse
num carrinho de mão
botariam fogo no meio
do terminal de ônibus
e no entanto a cada uma incendiada
dez mil outras continuariam a ser
produzidas em série
no milagre da contradição
que aduba todo consumismo erótico e mórbido
de qualquer território imenso
que nunca foi país
Em cena, flagram-se episódios que caracterizam a ambivalência do corpo da “boneca” na sociedade: ao mesmo tempo em que encarna um objeto de desejo, também é vítima da violência mais brutal reservada a qualquer identidade marginalizada. A notícia (“O Brasil é o país que mais mata trans e travestis no mundo” há, pelo menos, 16 anos consecutivos[1]) atravessa a contradição do mercado sexual e sua reprodutibilidade, especialmente na indústria pornográfica[2]. Aqui, ninguém escapa de ser o algoz: “os brasileiros” demarca bem a distância entre o sujeito lírico e esses “outros”, que são os verdadeiros abjetos, paradoxais.
A obra, com isso, ganha uma importância ainda maior, colocando-se ao lado de outros projetos literários que têm surgido neste século e que, mesmo sem tal ambição, acabam oferecendo ao leitorado novos desdobramentos do que é e como se faz poesia no Brasil.
Bianca Gonçalves para A bobina. Bianca é escritora, pesquisadora, performer e tradutora. Publicou três livros de poesia: como se pesassem mil atlânticos (2019), a sexualidade de meninas ex-crentes (2021) e Quadril & Queda (2024), sendo o mais recente parte da coleção Círculo de Poemas da editora Fósforo. Faz doutorado em Teoria e História Literária na Unicamp. Traduziu o romance Criaturas Noturnas, de Leila Mottley, pela Companhia das Letras.
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