Cruzar a fronteira: lendo Dente de leite, de Isadora Barcelos
- Eduarda Rocha
- 17 de set.
- 4 min de leitura

Em Viver entre línguas,[1] a argentina Silvia Molloy, criada entre o espanhol, o inglês e o francês, comenta que adquirir uma nova língua é uma outra maneira de romper com aquilo que é seguro. Após diversas reflexões memorialísticas, em que vai expondo como a experiência de aprender e falar em diversos idiomas afeta o corpo, o gesto, a entonação, até a forma de pensar, o livro termina com uma pergunta existencialista: “Afinal, em que língua sou?” Molloy entende que viver entre línguas não é um fato apenas linguístico, mas envolve um deslocamento físico e emocional, no qual a língua adquirida pode ser, paradoxalmente, a que dá acesso à intimidade, como no caso do inglês, língua em que escrevia seus diários.
Já em Dente de leite (Crivo editorial, 2025), Isadora Barcelos lida com a vida entre línguas como alguém que aprende um novo idioma ao passo em que se lança como poeta, tendo em vista que este é seu primeiro livro. Ou melhor dito, seu irmão argentino Diente de leche (Cae de Maduro, 2022) é o primeiro, Dente de leite seria, então, o segundo, já que não se trata do mesmo livro. Não seria justo dizer que a versão brasileira é a tradução da versão argentina. A poeta mineira se muda para Buenos Aires, e começa a se aproximar da nova cidade e da nova língua escrevendo poesia em língua espanhola, arriscando, improvisando. Esse aprendizado e os cruzamentos entre línguas e fronteiras aparecem marcados no livro, que vai se construindo na vizinhança entre as duas línguas e nas trocas entre elas. Quando a poeta cruza novamente a fronteira, desta vez de volta a Belo Horizonte, os poemas mudam. Agora, é preciso refazer este portunhol, redefinir o que permanece em cada língua. Nesse deslocamento, alguns poemas são suprimidos, e o portunhol se aproxima mais da língua portuguesa na versão brasileira. Há um gesto de autotradução e, ao mesmo tempo, de reescrita dos próprios poemas, que acabam por formar um novo conjunto. É interessante observar esse movimento de ir e vir com a língua, com a poesia e com as fronteiras. Ser poeta não seria uma forma de estar sempre aprendendo e reinventando línguas, inclusive a própria?
Isadora parece saber bem aquilo que Molloy dizia sobre a vida entre línguas, pois escrever poesia se torna uma forma de conhecer, mastigar e reinventar um idioma que não é apenas ferramenta de comunicação, mas matéria viva de transformação, como nos versos finais do poema “escrever cirurgicamente”:
buscar sempre o mesmo livro
porque você tem vontade que essa nova língua
empurre seus dentes,
mude o formato da sua mandíbula,
altere a mordida
e faça uma revolução na sua boca.
(p. 13)
Aprender o espanhol portenho, escrevê-lo, é também deslocar o corpo, permitir que a boca se refaça, como na passagem da infância à pré-adolescência quando em geral caem os dentes de leite. Não à toa, o poema em que se pergunta “¿ya cruzamos la frontera?”, permanece em espanhol:
¿ya cruzamos la frontera?
¿es posible volver?
¿vos podés?
¿alguien puede?
(p. 22)
A autora procura nos armários a sua voz poética e a tece ao roçar o espanhol com o português, a partir do olhar de uma estrangeira que caça palavras pelas calçadas de Buenos Aires. Mete la pata, aprende tango, observa o sexo entre os moluscos, vê a queda da nota de dois pesos com o avanço da inflação, se assusta com seus gritos, tudo isso enquanto cozinha fainá[2]… A poeta-tradutora sabe que sempre há uma palavra intraduzível, por isso incorpora literalmente a “gambiarra” ao poema, como nestes versos que são uma espécie de síntese de sua poética:
ninguém sonha em ser tradutor
isso meramente sucede
é mais fácil sonhar
ser piloto de máquinas ruidosas
ou cirurgião-dentista
o tradutor não nasce
apenas acontece
um pouco por paixão
e um pouco por gambiarra
vive na corda bamba
se equilibra como acrobata circense
no quase da palavra
como eu vou explicar
o que significa isso para alguém?
mete la pata
ou mete os pés pelas mãos
uma gambiarra é algo que funciona
pero parece que no debía ser así
es un arreglo medio trucho,
una invención
quebra-galho,
improviso,
jeitinho,
estratégia de sobrevivência
solución informal,
pero posible
de tão bem-feita
é quase eterna.
(pp. 11 e 12)
Aqui há um jogo com o que falta em uma língua e sobra na outra, nesse cruzamento Brasil e Argentina, que produz belezas como os poemas de Angélica Freitas, Paola Santi Kremer, Gabriela Albuquerque, entre outras. A gambiarra, solução improvisada, que parece não funcionar, mas resiste com o tempo, torna-se metáfora para a própria poesia: escrever entre línguas é sobreviver inventando, é transformar a falta de recursos em possibilidade de criação. “para que serve o estrangeiro/ senão para que haja sempre um buraco no peito,/ uma palavra intraduzível?” (p.9), se pergunta no poema que inaugura o livro. Essa travessia linguística é atravessada por uma ética e uma estética da invenção improvisada. A tradutora-poeta é uma figura equilibrista, que vive “na corda bamba / no quase da palavra”, num espaço de risco e instabilidade. Essa imagem nos faz retornar ao que Silvia Molloy dizia sobre adquirir uma nova língua e romper com o que é seguro, assim como à própria experiência bilíngue do livro, onde português e espanhol se alternam como matéria viva do poema. Ao definir a gambiarra como “una invención / jeitinho, / estrategia de sobrevivencia”, a poeta evidencia que a precariedade é também método criativo, e logo conclui que, “de tão bem-feita / é quase eterna”, sugerindo que esse improviso, repetido, se naturaliza e se transforma em poética, uma estética da fronteira, do portunhol, do risco.
Eduarda Rocha para A bobina
[1] Traduzido no Brasil por Julia Tomasini e Mariana Sanchez, publicado pela Relicário
[2] Iguaria italiana de grão-de-bico (farinata) muito popular na Argentina, servida como acompanhamento de pizza





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