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A água-ouro e os transbordamentos do rio em "Entre costas duplicadas desce um rio", de Guilherme Gontijo Flores

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Esse rio que vem descendo até nós ao longo do conjunto de poemas que Guilherme Gontijo Flores reúne em seu livro, “Entre costas duplicadas desce um rio”, tem em princípio uma referência bem específica: o fluxo d’água que nasce na serra de São José, chega à cidade de Tiradentes, onde se encontra com o Ribeirão Santo Antônio, e  deságua no Rio das Mortes. Sua origem e percurso remetem assim à geografia fluvial e montanhosa de Minas Gerais. Já os nomes que vão recebendo esse rio e os lugares por onde passa são signos do ciclo de mineração do ouro, extraído de seu leito, lavado com suas águas e por elas também transportado desde pontes e estradas da coroa portuguesa, que controlava as riquezas de sua colônia.

 

Através desses nomes, podemos perceber o profundo entrelaçamento entre a história dessa exploração colonial e a dominação religiosa, na maioria das vezes cúmplice da violência que vitimou indígenas, emboabas e escravizados envolvidos nesse trabalho. Suas mortes se somam às daqueles que morriam afogados com bolsos cheios de ouro tentando escapar pelo rio caudaloso para evitar o pagamento de impostos à coroa.

 

Além dessas informações, todas elencadas ao final do livro, há aquelas que visam a origem de determinadas expressões em língua portuguesa hoje usadas com outro sentido, naturalizadas, esquecido seu sentido histórico e político: “lavar a égua” e “santo de pau oco”. Ambas foram criadas a partir de práticas ligadas ao processo extrativista  – o ouro “contrabandeado” era escondido no pelo dos animais e no interior de estátuas religiosas – e, junto com as mortes que nomeiam o rio, representam no livro sua síntese, segundo o poeta.

 

Mas esse gesto de síntese – e aí a argúcia da escrita – ao mesmo tempo se articula ao de transbordamento que, através do trabalho com o signo água, transforma esse material histórico específico e o torna capaz de mover-se rumo a outros espaços e tempos. É o que ocorre, ainda através de usos linguísticos, com a presença de referências em grego e em iorubá. Mais do que o convívio de diferentes línguas, ela resulta num translinguismo que o poeta aponta como “composto tradutório”, e que em alguns poemas envolve também referências à cosmogonia suméria, à bíblia hebraica, à mitologia maia-quiché.

 

Através desse translinguismo[1] os poemas encenam então a relação entre diferentes culturas e tradições que, segundo Guilherme, têm em comum a indicação da água como princípio do mundo. “Melhor é a água, mas o ouro,/ fogo aceso noite afora,/ excede de riqueza.” – assim se traduzem algumas das citações em grego repetidas por Guilherme como mantras, e que seriam significativamente as primeiras palavras do primeiro poema das Odes olímpicas do poeta Píndaro de Tebas (século V A.C.). Significativamente porque, como ressalta o poeta, “ouro é riqueza, mas água sempre o supera: água, palavra primeira.” Conforme bem apontou Rafael Zacca, em texto escrito sobre um livro anterior de Guilherme, Carvão;capim, “o que unifica o seu trabalho como poeta, tradutor e editor é mesmo o de recolha do atual onde quer que se encontre” [2]– trabalho que explicita a potência do olhar anacrônico e constelar na construção de uma perspectiva que revisita a história, ancorada nas urgências do presente.


Assim podemos compreender, inclusive, a presença no livro do nome da cidade Tiradentes, que remete o momento histórico dos inícios do extrativismo colonial àquele bem posterior, após a proclamação da República, em que um herói da luta libertadora passa a nomeá-la. Conforme esclarece outra nota, a cidade é tanto uma síntese desse processo todo como também de seu estatuto contemporâneo – representado pelo fato de, como naquela época, ainda hoje não possuir rede de esgotos. O rio a que ela dá ás costas e cujo fluxo organiza o livro é, segundo o poeta, um resumo da água doce no Brasil: “em menos de um quilômetro ele já foi contaminado, quase natimorto; mesmo assim, alguma vida ali floresce”. A cidade e seu rio são construídos assim como um cronotopo em que a imaginação poética nos traz, vista desde hoje, a história tratada a contrapelo, chegando até nós fertilizada por esse movimento de fluxo e mosaico que se a traz, a faz retornar bastante diferida de um relato ou retrato pseudo-objetivo – signo ao mesmo tempo de aprisionamento, morte e irrupção de modos imprevistos de florescer.

 

Princípio de síntese e transbordamento, a água empresta ao livro essa duplicidade, sob vários aspectos. Pois ele é composto por poemas de versos curtos, fragmentados e ao mesmo tempo ligados pela força do enjambement – o que se estende também à relação entre os poemas, ao mesmo tempo independentes e sequenciais, ao longo de cuja extensão o leitor é convidado a um olhar indisciplinado que pode ir e vir, por entre história e mito, memória e ficção, ontem e hoje. O livro se organiza assim ao mesmo tempo como um conjunto de poemas, sem título, e um longo poema fragmentado, uma narrativa e um mosaico linguístico e cultural.

 

Esse princípio compositivo sustenta também a construção dos signos que põem o livro e seus poemas em movimento – construção feita de composição por justaposição, o que nos remete tanto a uma constituição básica de certas línguas, como as ameríndias, quanto ao processo de corte sintático e síntese ideogrâmica que caracteriza muito da poesia concretista, numa fusão de “primitivismo” e “vanguardismo” que coloca em questão o pseudo-evolucionismo entre essas práticas linguísticas. Água-ouro, ouro-água, ouro-ouro, água-água, água-viva, água-vivo, sumo-sêmen, olho-d’água, morro-morre...


Entre síntese e transbordamento, a geografia se metamorfoseia numa espécie de desgeografia que aproxima duas costas – duas costas que, desde o título bilíngue, português-francês, como em todos os poemas, traduzidos por Emilie Audigier – podem ser interpretadas como partes do corpo, partes do território, ou ainda partes/colunas duplas em que se organiza o livro em cada uma dessas duas línguas. E possibilita o desdobramento do rio em corpo e também em mar, transformando em limiares suas fronteiras, como também aquelas entre o continente americano e o europeu, de um lado, e o africano, de outro.

 

Essa duplicidade e essa desgeografia  – construção desconstrutiva – ainda se concretizam no modo como o poema escrito é traduzido e suplementado por imagens que conseguem associar movimentos abstratos e figurativos para compor uma visualidade háptica e surreal, que escapa à ideia meramente representativa de ilustração e chega a tornar o desenhista um coautor do livro, como vemos na capa e na ficha catalográfica. E alcança, junto com as palavras, a decomposição da água em átomo, elemento comum e fundamental a todas as vidas do planeta.

 

Nesse conjunto de procedimentos podemos ver um convite à destituição da noção absoluta de identidade autoral, assim como a de identidade linguística e de unicidade territorial, histórica, articulando a elas o físico, o químico, o biológico. Talvez o exemplo mais significativo dessa opção poética esteja oferecida na provocativa citação, em inglês, de um autor sino-americano, Bruce Lee, persona híbrida de ator cinematográfico, lutador marcial e filósofo: “Be water,  my friend,/ diz o célebre adágio sino-americano:/eu sempre fui, my friend:/ peixes que somos, /água-viva fora d’água,/ água-vivo, água vivemos.”

 

E se tais movimentos desse rio poético, entre tantos movimentos, podem nos fazer retornar a outros livros de Guilherme já publicados, como vimos com carvão::capim, permitem também, nos levando ao que está por chegar, apontar mais uma vez para a força de florescimento a despeito ou do interior do arruinamento. É o que nos aguarda no próximo livro de Guilherme, Panapaná, título retirado do tupi – bando de borboletas – a respeito do qual ele considera: “alguma coisa aconteceu nestes últimos anos, que resultou nos poemas de Panapaná, entre a celebração de um amor de décadas, com filhos, e o sentimento de colapso global e ruína por toda parte. Mas, como não consigo deixar de ser, é também em primeiro lugar uma celebração da primavera, aquela que virá entre destroços”.

 

 

Celia Pedrosa para A bobina


[1] A noção de translinguismo vem sendo discutida no Brasil como modo de aceder a uma compreensão mais ampla tanto dos procedimentos tradutórios como dos de hibridismo linguístico, para além do que até então vinha sendo nomeado como multilinguismo ou plurilinguismo. Cf. a esse respeito Andrade, Antônio,  “Práticas translíngues e

contrapedagogias do literário”. In: Revista Alea, UFRJ, v.26, n. 2, março-agosto de 2024.


[2] Claro-escuro em carvão :: capim de Guilherme Gontijo Flores. Revista Pessoa, Lisboa; São Paulo.

 

 

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