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Um sorvete que derrete

 

Tenho diante dos olhos um texto inacabado de Walter Benjamin em que ele anota: “Formas – são as forças que buscam eternidade”. Quero escrever duas palavrinhas sobre o assunto, mas me sinto fraco e com fome, então vou à geladeira em busca de uma tangerina. Abro a fruta – está seca. Penso nuns versos de Ferreira Gullar em que ele fala sobre a estranha usina das frutas que trabalham o próprio mel. Como era mesmo o poema? “O clarão do açúcar nos cega”...? Mas esta usina aqui secou.


Quando eu era criança o meu pai comprava frutas aos montes na feira. Sempre sobravam duas ou três para as moscas, que chegavam no fim do mês para decompor essas coisas que aos poucos tomavam formas esquisitas. Pareciam minguar de dentro pra fora. E na ponta dos dedos do meu pai sempre ficava um cheiro doce, de manga ou abacaxi ou banana.


Aprendi a fazer ovos mexidos com ele. Gosto de cozinhar em fogo baixo. Quando preciso dourar alguma coisa, procuro ter paciência. Agora que falei isso, penso que a metamorfose lenta da comida no fogo pode dizer algo sobre o tempo do poema. Estou com essa sensação de que existe alguma coisa no tempo da gema do ovo que me ensina sobre o que se passa com os versos e que não posso encontrar em livro algum.

 

*

 

A poesia brasileira está cheia de comida. Esse poema de Luiza Leite, por exemplo, que está em Adília vai à praia (Fada inflada, 2025):

 

durante alguns instantes

parece que só tem o ônibus

onde viajo na estrada

uma sombra comprida que falha nas bordas

cobre o asfalto

faço fotografias

imaginando encontrar

depois do clique

alguma coisa que antes

por causa da velocidade

eu não conseguia ver

um pedaço de ponte

o contorno de um morro

por trás dos arbustos

uma casa de barro

que pertence aos cupins

um ipê rosa choque

na altura de Taubaté

percebo cada imagem

como quem toma

um sorvete que derrete

 

Alguma coisa passa por mim muito rápido nesse poema, e sei que é importante, mas se tento escrever sobre isso, não consigo demonstrar esse instante com precisão. É como um choque elétrico, uma excitação. Parece que acontece nos últimos três versos (a imagem como sorvete) – no entanto, esses três versos só se sustentam por causa do que se disse antes (o olhar chegando atrasado às coisas). O primeiro verso é como a ponta superior de um pequeno monte em cima de uma casquinha de onde começa a gotejar aquilo que lambemos no final.


Esse poema é também uma espécie de arte poética: explica o que a poeta está tentando fazer quando cria suas imagens. Mas ao invés de pensar isso no paradigma da impressão, onde as imagens são duradouras, ou no paradigma da reprodução, onde elas são precárias e destinadas a desaparecer, ela nos dá uma imagem tátil entre a solidez e a liquidez.


Toque nesta imagem, a poeta parece nos dizer, você pode prová-la.


Se as formas são forças que buscam eternidade, aqui o poema, em estado sólido, a derreter, desfaz-se a si mesmo em direção à vida. O que isso quer dizer? Eu não sei exatamente, mas gosto do modo como suas forças se desenham em comunhão com a comida. “Meu coração é um frango de padaria”, ela dirá em outro poema no mesmo livro. “No território livre dos poemas / um centro de calor dentro das costelas / outro nome para o sistema solar”.


Num poema de Lucas van Hombeeck, de Nuvens [na seção de congelados] (7Letras, 2018), e que se passa dentro dos Supermercados Princesa, o poeta também confunde seu próprio corpo com a comida e com o espaço das carnes em estado de feira. Ele diz:

 

entre sobrecoxas de frango e

as casas lotéricas

do bairro

dizes

 

tu corazón con el mio

 

é tua forma de

estar vivo

digo

 

e mordemos com força

 

Formas do poema, formas de se “estar vivo”. A seção de congelados e dos bichos mortos serve de pano de fundo contra o qual uma paixão ardente derrete (ou mastiga) a forma dura das coisas.

 

*

 

Pense nisso. Walter Benjamin uma carta traz no bolso de seu casaco. Precisa despachá-la ou despedaçá-la. Está com ela há dois dias no bolso do casaco, quando acaba passando por uma carreta com figos frescos que parecem deliciosos. Ele pede meio quilo. É uma quantidade generosa. É só depois que a vendedora pesa os figos no prato que ele percebe que ela não tem papel de embrulho. Com vergonha de devolver a mercadoria, ele enche os bolsos da calça e do casaco com figos de cores variadas até que não caibam mais em sua roupa, e é aí que ele começa a metê-los na boca.


“Aquilo já não era um comer, mas um banhar-se, pois o aroma resinoso penetrava minhas coisas, se grudava às minhas mãos, emprenhava o ar, através do qual eu levava minha carga” – isso ele nos conta em Imagens do pensamento. “Quando arranquei o último figo do fundo de meu bolso, nele estava colada a carta. Seu destino estava selado”.


Os poetas precisam estudar questões de técnica, mas é importante que saibam produzir esse engano, esse furor e essa libação com os seus textos. Todo poema traz uma mensagem no bolso, mas em algum momento será preciso despachá-la ou despedaçá-la. Mas essa é a parte misteriosa da história: é você quem pode fabricar o mel da fruta, ou essas coisas acontecem por acaso?


O que estou tentando dizer é que o problema da forma na poesia, e nas artes de maneira geral, não é um problema só de signo, mancha gráfica, metro, ou qualquer outro aspecto espacial do poema. Se formas são forças, é porque há nelas qualquer pulso que se projeta além da geometria.


Existem questões da forma que só acontecem no tempo. Os elementos espaciais podem ser adquiridos com estudo; os temporais precisam de contemplação. Pode-se aprender muito sobre isso cozinhando.


Há uma série, no livro Ainda não sei tudo que já aprendi até agora (Garupa, 2021), em que Lara Fuke dedica alguns desenhos e palavras às “formas do tempo”, mas que eu gostaria de renomear como “tempos da forma”. Na subseção “tempo em forma de temperatura” (ou, me permitindo outra pequena licença, “forma em tempo de temperatura”), por exemplo:

 

 

As linhas e as palavras são simples. O mais determinante é o que acontece aqui entre a imagem e a legenda. O tempo espera entre ambas. A forma só aparece no ato de leitura. Cada um dos três elementos retratados está ligado ao outro como se as trocas de calor fluíssem entre eles, a princípio separados.


O calor que se move entre as imagens é também um pensamento sobre o tempo, que se faz a partir de aparições miúdas de coisas e poucas palavras. É preciso esperar então para que tudo aconteça. Depois, é difícil explicar o que acabamos de ver. Quer dizer, só mostrando a página do livro pra pessoa entender.


Ou você percebe, ou não percebe. Como num haicai, num poema de Cummings, ou como aquele momento em que o ovo passa do ponto e resseca.

 

*

 

Certas coisas só acontecem uma única vez, o mundo, seu coração. Quem disse isso foi Anne Carson, para se referir ao que ela chama de “gênio de um poema lírico”: recortar e enquadrar um microgerme de agora para você. Isto se faz com forma e com força. Um microgerme de agora parece precisar de coisas miúdas. É difícil encontrá-las – muitos poetas estão atrás de coisas grandes. Há um poema de Rosane Preciosa, em Joias vadias (Fada inflada, 2025) que diz assim:

 

o que é miúdo

pode nos salvar da brutalidade das coisas enormes

lembro do passinho da minha vó

ela ia longe devagar, separando as ervas

que colheria para seus chazinhos das outras

    sem serventia

não é nada fácil desmontar um sistema

    de apressamentos

mais difícil ainda

é escutar o som de si

o som dos outros

o som das coisas

o fogão estalou

a geladeira soltou um suspiro

 

Tanta coisa se poderia dizer sobre poesia visitando as cozinhas simples das pessoas. Mas sempre que penso nisso, me lembro do fantasma da fome, que também ronda a poesia – e a sociedade – brasileira. Vou falar disso em outra ocasião. Por ora, encerro com um último desenho de Lara Fuke. Ele parece um comentário à citação de Walter Benjamin com a qual abri este comentário sobre formas e forças:

 


 Rafael Zacca para coisas que lampejam

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