Coisas que lampejam
- Rafael Zacca
- 19 de mai.
- 6 min de leitura

Vagalumes. Luzes com mau contato. Certas partes de nós no escuro. As roupas dos ciclistas à noite. Letreiros de motel à beira da estrada. Relâmpagos, é claro. Vidas na hora da morte. Alguns versos. São coisas que lampejam.
Certa vez, ao se referir aos poemas de Stefan George, Walter Benjamin mencionou o fato de que alguns versos se guardam com mais profundidade em nós por terem sido trazidos por uma voz amiga ou amada. Mas se guardam em nós pelo seu próprio valor ou porque se misturaram à voz que nos soprou as palavras?
Quando Antonio Cicero morreu, as letras que ele escreveu ficaram tocando em looping no meu celular e na minha cabeça. Estavam guardadas comigo e agora se distribuíam pelo dia. Em especial “O último romântico”. Eu tenho uma memória corporal em torno dessa canção, mais especificamente, uma memória que me traz um fragmento de corpo: as mãos de meu pai, balançando no ar, enquanto ele e Lulu Santos cantarolam juntos, na rádio e ao vivo. “Só falta reunir a zona norte à zona sul / E iluminar a vida, já que a morte cai do azul.”
Quando citamos um poema de cor, essa marca aparece.
Os poemas se imprimem de muitas formas. Por exemplo, através da tradução e da crítica. É o que acontece com “A uma passante”, de Charles Baudelaire. Lembro muito bem desses versos na tradução de Ivan Junqueira, a primeira que conheci, e que li pela primeira vez em uma edição brasileira de um ensaio de Benjamin sobre o poeta francês.
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz… e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! “nunca” talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
O que cravou esse soneto aqui dentro foi uma observação de Benjamin: a de que o poema não retrata um amor à primeira vista, como poderíamos supor numa leitura mais apressada, mas um amor à última vista. O poeta ama a passante apenas porque ela passa, isto é, porque ela irá desaparecer. Acreditamos que o clarão do nono verso leva esse amor para longe como num relâmpago, mas é ele quem fixa a imagem da passante no poeta, como numa fotografia (cujo flash é o encontro dos olhares).
O curioso é que parece que para o poeta são também apenas fragmentos desse amor que se guardam nele. Os olhos, as pernas, uma mão.
Desde então, sempre que que releio esse poema tenho a impressão de que o entendo e não o entendo ao mesmo tempo. Ou melhor, tenho a impressão de que vejo o que acontece nele e imediatamente deixo de ver. E não importa o quanto eu estude seus versos e suas palavras, tem algo que é aceso por essa linguagem e que desaparece antes que possamos dizer algo sobre o que vimos.
Por isso, dentre as releituras que esse poema recebeu em sua pós vida, tenho mais apreço por aquelas que conservam esse traço de desaparição da passante. As pessoas acham que é a pessoa amada o objeto de interesse do poeta, mas é a sua ausência. Ao invés de perseguir a passante (como numa famosa releitura de Vinicius de Moraes), o poeta vive inteiramente esse desejo no fenômeno do relâmpago que leva a existência da amada para sempre.
Recentemente, num evento em homenagem a Antonio Cicero, na Unirio, outro poema guardou-se em mim. E foi arquivar-se ao lado deste da passante. A professora Natalie Lima havia convidado a Celia Pedrosa e o Paulo Henriques Brito para falarem de Cicero. Foi nessa mesa que escutei o soneto “Alguns versos”. Ele é assim:
As letras brancas de alguns versos me espreitam,
em pé, do fundo azul de uma tela, atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde, ao levantar quase nada o olhar,
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.
Pode não parecer, mas o poema “Alguns versos” pode ser lido como uma espécie de tradução bastante heterodoxa do poema da passante. Ou melhor, do negativo ou da matriz a partir da qual a imagem da passante surgiu.
Enquanto o sol amarela as folhas da acácia do lado de fora da casa, o poeta tenta um poema na tela do computador que emite luz azul. Nessa tarde, “Marcelo está”, como diz o sexto verso, mas apenas enquanto ausência. O enjambement entre o sexto e o sétimo verso marcam essa ausência cuja presença o desejo do poeta demanda. O corte do verso retarda o complemento: “para chegar”, marcando assim a contradição erótica do poema. Marcelo, então, não está exatamente: ele está para chegar.
Quando Marcelo chegar, um outro Marcelo terá desaparecido. O fato de que Marcelo ainda não chegou faz com que o poema sustente a emoção dessa tarde que é puro desejo no qual se banha. A chegada de Marcelo é tão espectral quanto o desaparecimento da passante – e aquilo que se grava como numa fotografia no primeiro poema, arde nos últimos versos do segundo como uma pequena chama que quase não se vê, a do fósforo.
Os dois poemas marcam a passagem do dia e o desejo pelas coisas que passam. E fixam, naquilo que não se deixa fixar, a sua impressão erótica.
É algo dessa natureza que acontece nesses momentos em que um poema ou uma canção se transmite por uma voz amada. Muitas vezes o que acontece de mais impressionante num poema não é o poema, mas uma coisa que passa junto com ele, e que uma voz, uma crítica, uma tradução, podem tornar, por uma fração de segundo, visível. Ao ler ou cantar em voz alta, esses poemas ganham um corpo provisório. Mas ficam apenas fragmentos espectrais conosco, como numa pós-imagem.
É isto que persigo aqui, nesta coluna, que agora começa – estas pós-imagens, que podem evaporar de poemas, vozes, coisas. Não é fácil fixá-las, e não é isso que procuro. Quero apenas fazer com que elas apareçam, através de minha voz, para outra pessoa também. A crítica também pode ser isso. Uma maneira de criar as condições de possibilidade para pós-imagens nas quais o poema também acontece.
Antes de terminar quero citar outra tradução do poema da passante. Essa foi feita por Maria Gabriela Llansol. Ela transforma o original de Baudelaire em uma apresentação de slides. Trata-se de uma sensibilidade cinematográfica. Claro, o cinema é a arte em que as imagens estão sempre se despedindo de nós. Duram apenas uma fração de segundo. E Baudelaire tinha já uma sensibilidade cinematográfica no seu poema, como vimos. Mas a frieza com que a poeta traduz o choque do desejo em um conjunto de slides não deve enganar: eles estão banhados de luz, ou melhor, de uma beleza em fuga, que é pura vida.
No slide um A fora de si gira de gritar
No slide dois alta e magra passa por mim De luto carregado e mágoa majestosa Um ramo e a bainha Em sua mão faustosa Pendulares
Detalhe importante Ágil e nobre tem andar de estátua
No slide três Sinto em mim uma tensão que me extravasa
Outro detalhe No seu estilo de olhar há um céu lívido Que gera tempestade
No último slide Bebo num ápice a doçura que fascina e o prazer que mata
Apenas flashs
E uma câmera escura onde cismar ___
Aquela beleza em fuga foi-me súbita vida
Trazia um daimon no olhar
Talvez volte a ver na eternidade
Algures
Muito longe
Demasiado tarde
Nunca É bem provável O eterno retorno está por pensar
Não sei para onde vais
De mim nada sabes Salvo o essencial Com´amar
Ter-te-ia provado.
Rafael Zacca para coisas que lampejam
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