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Instruções para ler um poema

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Fisiologia da leitura

 

 

“Na realidade, cada leitor é, quando lê, o próprio leitor de si mesmo”

Marcel Proust

 

 

Para que a observação de um poema seja satisfatória alguém precisa observar atentamente o observador. É preciso, portanto, um terceiro leitor, que tome notas dos fenômenos que ocorrem no interior e no exterior do leitor no momento da leitura. Em suma, é preciso alguém que leia aquele que lê. O mais indicado nesse processo é que seja o próprio leitor o leitor de si mesmo. Um clone, para fabricá-lo, não nos custa muito: um espelho por ora pode ser o suficiente.

 

A partir desse ponto começam os apontamentos: batimento cardíaco, temperatura corporal, funcionamento gástrico, piscar de olhos por minuto, tudo deve ser anotado detalhadamente. Tal método de leitura trará a fundamentação precisa do que, sem rigor algum, se costuma chamar efeito do poema.

 

Não lembro onde li, mas certa vez Mallarmé foi criticado porque seus poemas não comoviam. O poeta respondeu que não estava interessado em causar reações fisiológicas, sejam lágrimas ou espirros. Nós, sim, nos interessamos, porque não acreditamos na arte das causas sem efeito. Mas não nos afastamos muito do mestre francês, não há em nós nenhuma preferência pelas glândulas lacrimais. Não raras vezes o poema se manifesta em nós através de uma leve coceira no céu da boca. É de nossa responsabilidade a inevitável pergunta: por que?

 

 

Condições materiais do legível

 

 

“la lectura es un asunto de óptica, de luz, una dimensión de la física”

Ricardo Piglia

 

 

As condições primárias da leitura são duas, texto e luz. A luz se enquadra não somente como uma dimensão física do texto, mas também metafísica, porque a luz é o princípio do texto.

 

Especulamos que por isso o primeiro decreto divino tenha sido 1.§ fiat lux: para que então pudesse existir o Verbo, mas também os advérbios, as preposições e mesmo os caracteres especiais e fontes garamond, arial etc. Depois do verbo e seus companheiros vieram velas, candelabros, lampiões, luminárias, lâmpadas frias e quentes e a leitura penetrou as fronteiras da noite. Essa revolução possibilitou o surgimento de uma nova classe de leitores, os insones. Mas não nos ocuparemos agora desse tipo voraz e específico.

 

Gostaria de falar mais abertamente sobre a infiltração da luz no texto ou, mais especificamente, no poema. O que faz de determinado poema algo obscuro? O que faz de outro algo luminoso? Seria a luz que incidia no texto no momento da composição? O poema absorve a luz que emana de sua matriz e a incide no leitor? A luz é de alguma forma armazenada no poema? Será por isso que ler um poema seja sobretudo não lê-lo, mas ainda assim, ser por ele atravessado, como um raio? É uma placa de raio-x? Se desligarmos o interruptor, poderíamos medir o peso que a sombra imprime no interior do poema? Ou, um poema à velocidade da luz nos seria ainda mais pesado, mais difícil de carregá-lo conosco? Muitas outras perguntas aguardam respostas satisfatórias.

 

Monet pintou a fachada da catedral de Rouen mais de trinta vezes. Seu objetivo era capturar a variação da incidência de luz ao longo do dia e das estações. Uma catedral ao amanhecer não é a mesma às quatro horas da tarde. Há algo na pedra que é feito de luz. A certa altura Monet escreveu para a esposa: “Trabalho feito um louco. Não consigo parar de pensar na catedral”.

 

Quando capturamos o poema, (quando somos por ele capturados), algo em nós e no texto logo se rematerializa e se remistifica. O poema é algo que só existe sob a luz, é um antifantasma.

 

Nota: bem sabemos da existência de leitores muito sofisticados que atuavam no escuro imposto pela grave miopia ou cegueira, como Joyce, Borges, Milton, Groussac, Lugones, Glauco Mattoso. Neste caso, o poema era sobretudo voz; prescindiam da luz. Mas não prescindiam de um leitor, que sob a luz, os recitasse o texto, como um jovem Manguel. Internamente, no ouvinte, ocorre uma reimpressão do texto através de uma luz infra-secreta produzida por uma máquina chamada memória.

 


Taxonomia do leitor 

 


O personagem principal da literatura, ao contrário do que se pode imaginar, não é o autor, e sim o leitor. O autor, o tradutor, o editor, o revisor, o professor, o psicanalista, o detetive, o crítico, o tarólogo, o médico etc. são todos derivações do leitor puro.

 

A categoria do leitor puro é por si abstrata, e formada por incontáveis representações e variações não de leitores específicos, mas de leituras específicas. A matéria do psicanalista é a linguagem; lê no discurso do paciente o relato subterrâneo que se esconde sob o relato aparente. Freud leu nas grandes tragédias uma encenação das nossas pequenas tragédias secretas e cotidianas. O detetive lê na tragédia os indícios que nos levam ao autor do crime. Do mesmo modo o médico lê no sintoma a doença, é um leitor detetivesco do corpo; Dr. House e Sherlock Holmes são personagens pertencentes a um mesmo gênero literário.

 

O autor e o tradutor não são, como os anteriores, decifradores do texto, e sim recifradores. Um lida com uma massa informe chamada influência e atua sobre uma massa informe chamada linguagem. O outro atua sobre uma massa forme chamada língua e lida com uma massa forme chamada texto.

 

Essas fronteiras, sabemos, são nebulosas. Assim como a dissecação de um animal nos permite compreender sua dieta, a leitura atenta de um autor nos permite inferir suas leituras. Do mesmo modo que se afirma “você é o que come”, podemos dizer “você reescreve o que lê”.

 

O revisor e o editor são o que há de mais próximo do leitor puro. Não decifram, nem recifram: sua leitura não tem uma finalidade para além do texto; podem modificá-lo sem necessariamente decifrá-lo. Sua intenção é que o texto seja idealmente o que há de mais próximo do Texto. O editor penetra (procura penetrar) em algo que é anterior à escrita, uma essência; o revisor, em algo que é posterior, que é a existência. Talvez a única coisa que esteja mais próxima do leitor puro seja o só-leitor, aquele que lê e não sabe por que, que sequer nutre uma esperança por se tornar mais inteligente, mais bonito ou tornar a vida algo mais potável. Ou quem sabe ainda a pureza mais pura esteja naquele que lê sem ao menos entender aquilo que lê, como um livro lido de cabeça para baixo por uma criança ainda não alfabetizada.



Lucas ferreira para o blog da escola

 
 
 

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