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Você está vendo alguma coisa? Não, e você? Nada

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No conto A obra-prima ignorada, escrito por Balzac e publicado em 1837, o pintor François Porbus e o então aprendiz Nicolas Poussin finalmente visitam o ateliê do velho mestre Frenhofer para ver uma pintura, a obra-prima secreta do título do conto.


Ao mostrar a tela para Porbus e Poissin, o velho mestre Frenhofer diz: “Há tanta densidade nesta tela, o ar é tão real nela que vocês não conseguem distingui-lo do ar que nos envolve. Onde está a arte? Perdeu-se, desapareceu!”


A espera, sobretudo de Porbus, para ver essa tela era enorme. Nela estaria concentrada toda a perfeição da pintura. As melhores possibilidades da linha, cor e sombra. No fundo, Porbus sabia que essas categorias cairiam por terra assim que ele estivesse diante de tal pintura. Embora ele nunca tivesse visto isso, essa era sua expectativa e era o que gostaria de mostrar ao jovem Poussin:

 

— Você está vendo alguma coisa? Perguntou Poussin a Porbus.

— Não. E você?

— Nada.

 

O velho mestre Frenhofer acabara de mostrar para Poussin e Porbus sua grande obra-prima. Ele tinha dedicado 10 anos a trabalhar incansavelmente nela. Mas os dois pintores, diante do quadro, não viram coisa alguma.


“O velho tratante está zombando de nós”, disse Poussin. Ao que responde Porbus: “Acho que não estamos entendendo”.


Na descrição de Balzac, a tela era uma confusão de cores “espalhadas umas sobre as outras, contidas por uma multidão de linhas bizarras que formam uma muralha de pintura.” No máximo, era possível ver num canto da tela um pezinho “que se projetava para fora daquele caos de cores, tons e matizes indecisos”. Era “um fragmento que escapara de uma incrível, lenta e progressiva destruição.”


“Nada! Nada!” Disse o velho mestre Frenhofer diante de sua obra-prima ignorada.

 

*

 

O uruguaio Mario Levrero, no romance O Discurso Vazio (1996), faz uma proposta para si mesmo: melhorar sua caligrafia para ordenar o caos sem fim que está sua vida. E o livro é o seu caderno-diário de caligrafia. Para isso, ele não tem um tema específico nem uma narrativa pré-determinada. Ele precisa apenas escrever levando em conta sua caligrafia, comentando-a às vezes, mas na maior parte do tempo ignorando-a.


Como método, ele vai perseguir o discurso vazio, aquele que supostamente não trataria de nada. “Há um fluir, um ritmo, uma forma aparentemente vazia; o discurso poderia tratar de qualquer assunto, qualquer imagem, qualquer pensamento”, escreve ele. E mais para frente acrescenta: “Tenho de estar alerta, mas com os olhos semicerrados, com um ar distraído, como se não me importasse com o discurso que vai se desenvolvendo.”


Em busca do vazio, Levrero segue, por meio de uma distração alerta, rente aos acontecimentos diários de sua vida: esposa, filho, o cachorro, um gato que chega, uma mudança iminente de casa, mal-estar e por aí segue. Dias mais do que normais em seus detalhes comezinhos, acompanhados tão de perto que podemos perder a visão do todo:

 

Esperemos. Vamos distrair a atenção. Como é difícil falar de nada, o mais conveniente é desviar a atenção do discurso com assuntos triviais; algo sem relação com o tema e que nem sequer alude à minha estratégia de distração.

 

Porque tocando o vazio algo se revelará. Levrero escreve: “Acho que tudo tem seu momento apropriado”. Ele então afirma: “chega um ponto no qual uma pessoa fatalmente vê, sente, percebe, sabe como as coisas devem ser feitas — e nesse preciso instante surgem, ao mesmo tempo, as forças para realizá-las.”


Já sua esposa Alicia tem um jeito oposto a esse, pois ela tem “uma falta de respeito pelas coisas.” Alicia acha que as coisas devem ser realizadas através da força de vontade, aconteça o que acontecer.


De acordo com Levrero, o jeito dela, sem dúvida, torna-a mais eficaz que ele. Mas, ao mesmo tempo, o autor sabe que esse modo de ser cobra um preço alto. Segundo ele, “os problemas a enfrentar (e às vezes a destruir) passam a ser inimigos, e não amigos a incorporar.”


Quando cito apenas essas frases de Levrero, acabo fazendo com que ele pareça um sábio tranquilo. Mas Levrero está longe disso. Ele vive num inferno constante consigo mesmo e o vazio que ele persegue tem origem no caos de coisas acumuladas — memórias, doenças, desencontros — contra as quais ele e sua escrita lutam.


O brilho de O Discurso Vazio nasce justamente de como em meio a tanto peso, tanto entulho e barulho interno, as palavras dão a ver tal acúmulo e, ao mesmo tempo, conseguem abrir clareiras que, terrivelmente, também podem ser abismos.


O autor faz isso de forma ainda mais intensa em O Romance Luminoso (2004), seu livro póstumo. Mas não vou me aventurar em trazê-lo para este texto, porque senão seria eu a cair no abismo aberto pela luz excessiva do livro. Nele assim como em O Discurso Vazio, estamos tão perto do detalhe, tão dentro da doença que não conseguimos nos afastar e ver. Somos como Porbus e Poussin, diante da obra-prima ignorada do velho mestre Frenhofer.


Levrero não conseguiu ver O Romance Luminoso, da mesma maneira que Fernando Pessoa não viu O Livro do Desassossego, ambos livros póstumos. E não me parece exato dizer que não viram os livros que escreviam simplesmente porque morreram no meio do processo de escrita. Eles não viram o livro, porque eram livros sem medida, isto é, livros que não conheciam nem início nem fim, livros que não se diferenciavam minimamente da vida e que eram uma forma de respiração. Como diz um poema de Duda Machado: “não é este / o limite / que quer / toda linguagem? // a vida é / sem medida / e isto / é rigor”.


O Discurso Vazio é uma breve amostra disso. Quando a literatura chega tão perto de coincidir inteiramente com a vida, com o inferno, com o nada. Chega tão perto disso que corre o risco de desaparecer (e até desaparece para determinados leitores). Justamente por ela ter tocado o fogo, ter tocado o vazio e ter voltado de lá, é ainda mais literatura, só que de outra maneira.


No conto de Balzac, diz o velho mestre Frenhofer sobre a pintura a qual muito se dedicou: “Há tanta densidade nesta tela, o ar é tão real nela que vocês não conseguem distingui-lo do ar que nos envolve. Onde está a arte? Perdeu-se, desapareceu!”

 

*

 

Agora, um trecho da carta de Flaubert para Louise Colet em 16 de janeiro de 1852:

 

O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se sustentasse pela força interna de seu estilo, como a terra, sem estar sustentada, se mantém no ar, um livro que quase não teria tema, ou pelo menos em que o tema fosse quase invisível, se é que pode haver.

 

O famoso trecho escrito pelo romancista francês costuma servir para abordar a literatura moderna a partir de uma leitura que diz que a força de um texto residiria menos naquilo que a história conta e mais em como ela é contada. Barateando a informação, eu diria que a frase de Flaubert às vezes é tomada para afirmar que a força da literatura residiria mais na sua forma do que no conteúdo que expressa. Mas, como sabemos, trata-se de uma dicotomia brusca. Porque, em última instância, não é possível separar forma e conteúdo. Um conteúdo só é do jeito que é por conta de sua forma e vice-versa.


Levando isso em conta, vale dizer que o famoso trecho de Flaubert ajuda a entendermos que qualquer história pode ser extraordinária, mesmo as mais simples, mesmo as mais triviais. Porque uma história depende de como é contada. E Flaubert deseja escrever um romance em que não aconteça muita coisa em termos do enredo dos fatos, mas que, de algum jeito, aconteça muita coisa em termos do enredo da linguagem: “um livro que quase não teria tema, ou pelo menos em que o tema fosse quase invisível”.


Essa posição teve desdobramentos ao longo do século XX em diversos meios e linguagens. Às vezes, muito diferentes entre si — tomando Flaubert como referência, mas indo a outros lugares. Por exemplo, só para ficar no fim do século: a comédia televisiva norte-americana Senfield (1989-1998), conhecido como o “show about nothing”, ou ainda o Livro sobre nada (1996), do poeta Manoel de Barros.


“Como é difícil falar de nada”, escreve Mario Levrero. Fernando Pessoa, no Livro do desassossego, parece estar um pouco mais à vontade neste terreno: “narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos”. E depois ainda afirma: “São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.” Também vale a menção ao compositor norte-americano John Cage em sua “Conferência sobre nada” (1961): “eu estou aqui / e não tenho nada a dizer / e o estou dizendo / e isto é poesia”.

 

*

 

Como vocês sabem (vide coluna anterior), gosto do Pooh. Aqui vai um trecho do livro Ursinho Pooh constrói uma casa (1928), de A.A. Milne:


— O que você mais gosta de fazer no mundo, Pooh?

— Bem — disse Pooh — , o que eu mais gosto de fazer — e ele teve de parar para pensar. Pois, embora Comer Mel fosse uma coisa boa, havia um momento um pouquinho antes de começar a comer que era melhor do que comer, mas ele não sabia como se chamava. Pooh também pensou que estar com Christopher Robin era uma coisa muito gostosa de fazer, e ter o Leitão por perto era uma coisa muito agradável. Depois de pensar em tudo isso, ele disse — O que eu mais gosto no mundo é Eu e o Leitão irmos visitar Você, e Você dizer “Que tal comer alguma coisinha?”, e Eu dizer “Bem, eu aceitaria uma coisinha, não é, Leitão?”, e lá fora estar um dia lindo, cheio de passarinhos cantando.

— Também gosto disso — disse Christopher Robin —, mas o que eu mais gosto de fazer é Nada.

— Como é que se faz Nada? — perguntou Pooh, depois de refletir muito.

— Bem, é quando as pessoas vêm nos visitar justamente quando estamos saindo para fazer isso. Elas perguntam “O que você vai fazer, Christopher Robin?”, e a gente diz “Ah, nada”. Então a gente sai e faz.

— Ah, entendi — disse Pooh.

— Esse é o tipo de nada que estamos fazendo agora.

— Ah, entendi — repetiu Pooh.

 

Trata-se de uma conversa entre Christopher Robin, que é criança, e o urso Pooh, que é seu brinquedo. Christopher Robin nomeia o “nada”, mas, vejam, antes Pooh aborda o “nada” sem nomeá-lo: “um momento um pouquinho antes de começar a comer [mel] que era melhor do que comer, mas ele não sabia como se chamava”. É uma das descrições mais precisas que eu conheço sobre algo que sinto e entendo, mas que também não sei dizer o nome. Sei que, volta e meia, também experimento isso. Dizer sem nomear pode ser menos difícil por meio da música e das artes plásticas ou por meio do amor, afinal eles podem prescindir de palavras. Às vezes, o poema também consegue dizer sem nomear, apesar das palavras de que é feito.

 

Aliás, a definição do “nada” de Christopher Robin não deixa nada a desejar. Diante da pergunta que Pooh faz (“Como é que se faz Nada?”), o menino não explica, apenas mostra. Ele nomeia, mas sua nomeação, de um jeito muito concreto e objetivo, está esvaziada: “Bem, é quando as pessoas vêm nos visitar justamente quando estamos saindo para fazer isso. Elas perguntam ‘O que você vai fazer, Christopher Robin?’, e a gente diz ‘Ah, nada’. Então a gente sai e faz.”

 

Na coluna anterior, abordei a relação do urso Pooh com a poesia e o taoísmo. O nada ou o vazio são fundamentais tanto para o taoísmo quanto para o zen-budismo. Este meu texto de agora seguiria outro caminho se eu me dedicasse ao nada e ao vazio segundo o taoísmo e o zen-budismo. Não é esse o proposito aqui, até porque eu nem teria conhecimento para isso. Mas eu gostaria de citar pelo menos um poema de Ikkyu Sojun, monge errante e poeta japonês do século XV:

 

gostaria

 

de ter

algo

 

para lhe

ajudar

 

mas

 

no

Zen

 

não temos

 

absoluta-

mente

 

nada

 

Essa história de valorizar quem diz sem nomear, ou de valorizar quem mostra sem precisar explicar ou interpretar, de certa forma me exime de dizer algo a partir do poema, afinal, os versos já dizem tanto que nem tenho nada a dizer. Só resta mesmo me lembrar de outro texto para que agora vocês e eu literalmente passemos do “nada” para o “vazio”. Trata-se de um poema do argentino Roberto Juarroz, autor que seguiu escrevendo e publicando diversas vezes, entre 1958 e 1995, um mesmo livro chamado Poesia vertical:

 

Às vezes parece

que estamos no centro da festa

No entanto

no centro da festa não há ninguém

No centro da festa está o vazio

 

Mas no centro do vazio há outra festa

 

O olho do furacão é vazio. E talvez fosse isso que Mario Levrero estivesse buscando em meio a seu caos. As palavras dão a ver o acúmulo e, ao mesmo tempo, conseguem nele abrir uma clareira que também pode ser um abismo. Já escrevi isso antes neste texto. O que Levrero chama caos, inferno; Juarroz chama festa. E seu poema consegue fazer coincidir exatamente a festa, o centro e o vazio. Parece até a quase-definição de “nada” que Pooh nem sabia que estava fazendo. Gosto tanto dela que vou citá-la outra vez: “um momento um pouquinho antes de começar a comer [mel] que era melhor do que comer, mas ele não sabia como se chamava.”

*


Agora, um poema de Adília Lopes que se chama “Vazio” (2015):


Aos 21 anos, a minha fotografia no bilhete de identidade sofreu uma reação química, a minha cara desapareceu, ficou uma mancha castanha.

Aos 39 anos, comprei um perfume na farmácia. Devia estar lá há muito tempo, não cheirava a nada.

 

O rosto costuma ser o principal elemento que nos representa, uma espécie de centro para o sujeito. No conto A obra-prima ignorada, de Balzac, o velho mestre Frenhofer passou dez anos em seu ateliê pintando obstinadamente um retrato que era o caos de cores e linhas a formarem “uma muralha de pintura”, de onde apenas um pezinho — único elemento figurativo — escapava da “incrível, lenta e progressiva destruição” que se tornou a tela recém pintada.  Mario Levrero acendeu tanto as palavras dos seus livros O Discurso Vazio e O Romance Luminoso que se tornou quase impossível enxergar o que elas iluminam.

 

Adília Lopes nos seus últimos dez anos de vida se voltou para a poesia nas proximidades da anotação. Os poemas estão em vias de perder as características que fazem deles poemas. Sejam lá quais forem essas características. Até porque não sabemos muito bem de que é feito um poema.

 

Geralmente algumas pessoas leem um desses últimos poemas dela e dizem: até eu faria. Como quando, antes, viam um desenho de Miró e falavam o mesmo. Gosto dessa ideia: quando a poesia chega tão perto de ser outra coisa, quando corre o risco de se transformar, por exemplo, numa mancha castanha no lugar do rosto. Você está vendo alguma coisa? Não, e você? Nada.

 

 

 

Leonardo Gandolfi para nomes próprios. O texto de Balzac foi traduzido por Teixeira Coelho. O de Flaubert, por Duda Machado. O de Mario Levrero, por Antonio Xerxenesky. E o de A. A. Milne, por Monica Stahel. Já o poema de Ikkyu Sojun foi traduzido por Márcio Simões. E o de Roberto Juarroz, por Arnaldo Saraiva.


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