Arte poética do Pooh
- Leonardo Gandolfi
- 26 de set.
- 7 min de leitura

Em 2006 fui tomar um café com o poeta português Manuel António Pina. Na época, eu morava na cidade do Porto, onde estudava. Fui até ele levando alguns livros que eu gostaria que ele autografasse.
Pina foi gentil, engraçado, afetuoso. Falou sobretudo dos livros dos outros. Conversamos sobre cinema, principalmente sobre um dos seus filmes prediletos: The Night of the Hunter (1955). Um filme com crianças, mas não exatamente um filme infantil. Eu me lembrava que era o filme do coração de outro poeta que eu também admirava muito: Sebastião Uchoa Leite.
Em matéria de poesia, Pina citou o ursinho Pooh, disse que era um dos melhores livros que conhecia sobre poesia e de poesia. Afinal, Pooh é um poeta, ele me disse. Fiz cara de quem desconhecia o que ele estava falando. Não sabia que Pooh é um poeta? Eu disse: não. Ele completou: pois saiba que é um dos melhores que há.
Eu ainda fazia cara de quem não estava entendendo. Daí ele completou: se quiser continuar a escrever poemas, precisa ler os livros do Pooh; o urso, além de poeta, é mestre taoísta. Sobre o assunto, Pina me indicou então o ensaio O Tao do Pooh (1982), do norte-americano Benjamin Hoff.
Voltei ao Brasil no ano seguinte e fui atrás de The Night of the Hunter que assisti com entusiasmo; tinha tudo a ver com a própria obra de Pina que, como diz o título de um poema dele que cita Nietzsche, trata de “uma segunda e mais perigosa inocência”. Enfim, adorei o filme. E acabei não indo atrás da outra indicação: os dois livros do Pooh, escritos pelo inglês A. A. Milne.
Muito tempo depois nasceu Rosa, minha filha, e quando ela cresceu um pouquinho eu quis ler para ela histórias mais compridas. Foi então que me lembrei daquela indicação do Pina.
Dia desses, eu disse para uma amiga que o Pooh tinha sido como uma flecha que Pina disparou por mim e que tinha levado dezesseis anos para acertar o alvo.
Os desenhos animados da Disney não dão a dimensão do quanto Pooh se relaciona com a poesia. E fui descobrindo isso enquanto lia em voz alta as histórias e poemas com Rosa, antes de ela dormir. Na verdade, ela e eu íamos aprendendo juntos o que é poesia a partir das atrapalhadas aventuras de Pooh e seus amigos.
Vamos ao livro O Tao do Pooh para ver se descobrimos algo. Afinal, conforme percebi, poesia e taoísmo podem ajudar um ao outro: “É sobre aquele urso baixotinho que anda por aí sempre fazendo perguntas tolas, inventando canções, se metendo em toda espécie de trapalhadas sem acumular conhecimento algum e jamais perdendo aquela alegria meio tonta.”
1) Perguntas tolas são as perguntas primeiras, aquelas que ninguém mais faz, porque as pessoas acham que há tempo já sabem as respostas. 2) Inventar canções é compor poemas. 3) Meter-se em trapalhadas são as confusões e desconcertos que fazer as perguntas primeiras pode causar. 4) Não acumular conhecimento é o princípio básico para que continuemos a conhecer as coisas. Afinal, conhecimento não é questão de acúmulo, tem mais a ver com abrir espaço e deixar as coisas circularem. 5) A alegria é a alegria, ainda mais sendo meio tonta.
De volta a Benjamin Hoff: “Uma mente vazia encontra muitas coisas, porque consegue ver, objetivamente, o que está à sua frente. Já a mente atulhada de informações não é capaz disso. A mente clara simplesmente ouve o canto de um pássaro. A mente cheia de conhecimento e esperteza procura identificar que tipo de pássaro está cantando. Na verdade, quanto mais atulhada, menos escuta através de seus próprios ouvidos e menos vê através de seus próprios olhos.”
Agora, finalmente, um trecho do clássico Winnie-the-Pooh (1926), de A. A. Milne: “Mas, de tanto ficar segurando o cordão do balão, seus braços estavam duros e ficaram levantados por mais de uma semana; quando alguma mosca pousava no nariz dele, Pooh precisava soprar para espantá-la. Acho, mas não tenho certeza, por isso o chamavam de Pooh.”
Pooh pode ser o som feito quando sopramos uma mosca do nosso nariz e, segundo Hoff, Pooh pode ser P’u: palavra chinesa para “natural”, “simples”, “evidente”, “honesto”, “inteiro”. Ela é formada por dois ideogramas justapostos que estão no Tao Te Ching e no Livro de Chuang-Tzu, podendo ser traduzidos como “carvalho nunca podado”, “casca de madeira” etc.
A simplicidade do P’u funciona da mesma forma que as perguntas consideradas tolas e que conseguem ver e tocar o que nem conseguimos mais ver e tocar. Novamente, Hoff: “O estágio adulto não é o mais elevado do desenvolvimento humano. O fim do círculo é o da criança plenamente independente, consciente e dona de uma mente límpida que a tudo abarca. Este nível é conhecido como o da sabedoria. Quando o Tao Te Ching e outros livros do mesmo gênero falam sobre o ‘retorno ao começo, tornando-se novamente uma criancinha’, estão se referindo exatamente a esse estágio.”
Parênteses para lembrar daquele conhecido poema de Oswald de Andrade: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que eu nunca vi”.
Tornar-se novamente uma criancinha. Por exemplo: Alberto Caeiro — ao mesmo tempo “criança eterna” e mestre de Fernando Pessoa. Caeiro nos “fala” das coisas “com o modo de falar que reparar para elas ensina”. Deve ser a isso que Hoff se refere quando diz “mente vazia”, isto é, aquela que olha para as coisas com um olhar que nos foi ensinado pelas próprias coisas. “Uma mente vazia encontra muitas coisas, porque consegue ver, objetivamente, o que está à sua frente.” É provável que seja essa a tal “segunda e mais perigosa inocência” que Pina tanto buscou nos livros.
Assim, vamos ao que interessa. Primeiro trecho:
— Oi, Pooh — disse o Coelho.
— Oi, Coelho — disse Pooh, sonhador.
— Foi você quem compôs essa canção?
— Bem, compus mais ou menos — disse Pooh. — Não é uma questão de cérebro — continuou ele, com modéstia — e você sabe por que, não é, Coelho? Às vezes as canções me vêm.
— Ah! — disse o Coelho, que nunca deixava as coisas virem, mas sempre ia buscá-las.
Segundo trecho:
Mas não é fácil, disse Pooh para si mesmo, voltando-se para o que tinha sido a casa da Coruja.
Porque não dá para ir atrás das canções, elas é que vêm até nós. A única coisa que podemos fazer é ficar num lugar onde elas consigam nos encontrar.
Ele ficou esperando...
Bem, pensou Pooh, depois de muito esperar. Vou começar a canção com Aqui está uma árvore, pois está mesmo, e depois vemos o que acontece.
Os dois trechos são de The House at Pooh Corner (1928), segundo livro de Milne que tem o urso como protagonista.
O poeta e cantor canadense Leonard Cohen, ao receber o prêmio Príncipe das Astúrias de Literatura em 2011, disse algo parecido: “se eu soubesse onde estão as boas canções, eu iria até lá mais vezes.” Mas Cohen não é como o Coelho que nunca deixa as coisas virem e sempre tem que ir buscá-las. Ele está mais para o Pooh: “não dá para ir atrás das canções, elas é que vêm até nós.” Não acho que isso seja um elogio simplista à espontaneidade. Porque, segundo o urso, “a única coisa que podemos fazer é ficar num lugar onde elas consigam nos encontrar.” E ele mesmo acrescenta: “Mas não é fácil”, afinal, dá trabalho descobrir, a cada vez, onde ficam esses lugares. Trata-se da espontaneidade conquistada. Ou um tipo de distração a ser aprendida.
Parênteses novamente. Dessa vez, com Paulo Leminski: “um bom poema / leva anos / cinco jogando bola, / mais cinco estudando sânscrito, / seis carregando pedra, / nove namorando a vizinha, / sete levando porrada, / quatro andando sozinho, / três mudando de cidade, / dez trocando de assunto, / uma eternidade, eu e você, / caminhando junto”.
Pooh é um poeta à disposição do poema. Com a cabeça oca, perguntas tolas e alegria meio tonta, ele se deixa atravessar por coisas e acontecimentos. Não tem apego a si nem à poesia, o que acaba por colocá-lo ainda mais na frequência dela, a poesia. A pintora canadense Agnes Martin uma vez disse: “A pior coisa em que você pode pensar, quando está trabalhando em algo, é em si próprio”.
Dito isso, já passou da hora de lermos um poema do próprio Pooh:
Torta de limão, torta de limão.
O pássaro voa, mas o gato não.
Ao meu enigma, vai meu refrão:
Torta de limão, torta de limão.
Torta de limão, torta de limão.
E a galinha? Também não voa não.
Ao meu enigma, vai meu refrão:
Torta de limão, torta de limão.
Torta de limão, torta de limão.
O peixe não assobia, eu também não.
Ao meu enigma, vai meu refrão:
Torta de limão, torta de limão.
Agora que estou terminando de escrever este texto, resolvi ler o livro da Paloma Roriz Entre o brinquedo e a biblioteca: A poética de Manuel António Pina (2025), ensaio em que ela debate a relação do autor com a infância. A certa altura, Roriz cita Álvaro Magalhães, amigo de Pina. A partir dos livros do poeta, Magalhães faz esta afirmação simples e desconcertante: “Quando for lido por uma criança é um livro para criança. Quando for lido por um adulto é um livro para adultos. Os livros não são ‘para’. Os livros são.”
Daí me lembrei de um poema do Pina que, de vez em quando, levo no bolso. Ele se chama “A canção dos adultos” que aqui vai na íntegra:
Parece que crescemos mas não.
Somos sempre do mesmo tamanho.
As coisas que à volta estão
é que mudam de tamanho.
Parece que crescemos mas não crescemos.
São as coisas grandes que há,
o amor que há, a alegria que há,
que estão a ficar mais pequenos.
Ficam de nós distantes
que às vezes já mal os vemos.
Por isso parece que crescemos
e que somos maiores que dantes.
Mas somos sempre como dantes.
Talvez até mais pequenos
quando o amor e o resto estão tão distantes
que nem vemos como estão distantes.
Então julgamos que somos grandes.
e já nem isso compreendemos.
Agradeço muito ao poeta. Adorei o café e a conversa, a generosidade e os versos. Obrigado pelo Pooh. Tenho aprendido bastante com ele.
Leonardo Gandolfi para nomes próprios. Os textos citados de A. A. Milne foram traduzidos por Monica Stahel. Os de Benjamin Hoff foram traduzidos por Elisabeth Aranha Pacheco e Dagoberto Aranha Pacheco. O poema do Pooh também foi traduzido por eles.
Muito bom!