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Arte poética de Gita Gogoya

Atualizado: há 7 dias

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“Eu sou a flor da primeira música / a mais velha / a mais nova espada e seu corte / sou o cheiro dos livros desesperados / sou Gita Gogoya / seu olho me olha / mas não me pode alcançar”, canta Maria Bethania em “Reconvexo” (1989).


A canção composta pelo irmão da cantora, Caetano Veloso, faz uma lista de sou isso sou aquilo sou tanta coisa: “Eu sou a chuva que lança a areia do Saara / sobre os automóveis de Roma / eu sou a sereia que dança / a destemida Iara / água e folha da Amazônia / eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra”.


Mas quem, afinal, é Gita Gogoya que é, ao mesmo tempo, tanta gente e tantos acontecimentos? Perguntado, Caetano uma vez respondeu que Gita Gogoya era uma homenagem a duas canções: “Fruta gogóia”, composição de domínio público e gravada por Gal Costa na abertura do disco Fa-tal (1971); e “Gita”, de Raul Seixas do disco de mesmo nome lançado em 1974.


Essas duas canções, cada uma à sua maneira, também se valem da lista sou isso sou aquilo sou tanta coisa. Canções que tomam o eu — lugar tradicional de busca por unidade e, muitas vezes, ensimesmamento — e fazem dele um lugar de relação e propagação.


Versos de “Fruta gogóia”: “Eu sou uma fruta gogóia / eu sou uma moça / eu sou calunga de louça / eu sou uma joia / eu sou a chuva que moia / que refresca bem / eu sou o balanço do trem / carreira de troia / eu sou uma tirana boia / eu sou o mar / samba que eu ensaiar / mestre não oia”.


Ao ser gravada e divulgada por Gal Costa, a canção acabou por funcionar como espécie de autorretrato, não só pela identificação que passou a guardar com a voz da cantora como também pela forma eu sou eu sou. Mas em vez de criar fronteiras estanques para o sujeito como seria de se esperar, tal forma espalha a presença do eu pela fruta, pela moça, pela chuva, pelo balanço do trem, pelo mar, por calunga e por aí vai.


Agora, alguns versos de “Gita”: “Eu sou a luz das estrelas / eu sou a cor do luar / eu sou as coisas da vida / eu sou o medo de amar / eu sou o medo do fraco / a força da imaginação / o blefe do jogador / eu sou eu fui eu vou”.


Na canção composta por Raul e Paulo Coelho, também vemos a forma eu sou eu sou servir menos para criar uma interioridade do sujeito do que para disseminar e dissipar a presença dele. “Gita” é uma versão musical e em miniatura do poema Bhagavad Gita, “canção do bem-aventurado”, que é parte do épico Mahabharata, texto sagrado hindu.


O hinduísmo abarca várias tradições sagradas que podem ser monoteístas, politeístas e até ateias, sendo um pouco diferente da ideia de unidade divina, por exemplo, no cristianismo ou judaísmo. Da mesma forma, a ideia de sujeito não é tão unitária quanto nas religiões ocidentais hegemônicas (e também nos seus respectivos desdobramentos filosóficos-econômicos).


Mas não estou aqui para fazer descrições apressadas e idealizantes de tradições sagradas orientais. O caminho disso, sabemos, desemboca no exotismo e no estereótipo.


O assunto aqui é o eu que fala e se multiplica em versos. E esse eu — antes de qualquer coisa — é um pronome. Por isso, vale trazer, rapidamente, algumas reflexões do linguista sírio-francês Émile Benveniste que, no texto “A natureza dos pronomes” (1956), afirma que “as instâncias de emprego de eu não constituem uma classe de referência, uma vez que não há ‘objeto’ definível como eu ao qual se possam remeter identicamente essas instâncias.” Ele nos lembra que o eu, antes de tudo, é um pronome. E os pronomes — diferentes de outras classes de palavras — são signos “vazios” e só se tornam “plenos” quando algo ou alguém “os assume em cada instância de seu discurso”.


É bem conhecida a vocação histórica do poema de ser expressão de uma individualidade, mas, antes, o que temos nele são pronomes e não pessoas. Levando isso em conta, existem correntes líricas menos voltadas para um eu autocentrado, correntes que dão a ver um eu como mediação e atravessamento.


E no caso, a tradução da palavra “gītā”, do sânscrito, é justamente “canção”. Dessa maneira, quem se apossa do eu, nos versos de Raul, é a canção em pessoa. Em outras palavras, quem diz eu sou eu sou, na música, é o próprio ato discursivo, ato de nomear, ou seja, a própria poesia: “eu sou eu fui eu vou”.


Por isso este meu texto se chama “Arte poética de Gita Gogoya”. Somos a pedra que quebra a vidraça, mas também a vidraça quebrada. As duas coisas ao mesmo tempo, e também só a pedra e só a vidraça. Somos o anzol que fisga o peixe, mas também o peixe fisgado pelo anzol. As duas coisas ao mesmo tempo, e também só o anzol e só o peixe. Como isso é possível? Não sei, mas sei que é possível por meio do poema. Nele, objeto e sujeito ainda não estão totalmente separados.


Laura Liuzzi abre o livro Poema do desaparecimento (2024), tornando-se também tudo aquilo que seus sentidos alcançam: “se percebo uma maçã / esta maçã me constitui”. Mario de Andrade igualmente inicia Remate de males (1930) disseminando e dissipando o sujeito: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta, / Mas um dia afinal toparei comigo...”. Já o norte-americano Walt Whitman praticamente termina o poema “Canção de mim mesmo” (1855) com versos que — 160 anos depois — também foram assinados Bob Dylan: “Me contradigo? / Tudo bem, então... me contradigo / Sou vasto... contenho multidões”. E os opostos se tocam: todo mundo, de um lado; nenhuma pessoa, do outro. Emily Dickinson, conterrânea de Whitman, escreve num poema de 1861: “Não sou Ninguém! Quem é você? / Ninguém — Também? /Então somos um par? / Não conte! Podem espalhar!”. Já a poeta mineira Maria do Carmo Ferreira, que inclusive traduziu Dickinson, disse uma vez no fim de um poema: “ser ninguém, sendo tantos”.


Pensando nisso de se disseminar e se dissipar, ser multidão e ninguém, vale trazer um poema póstumo do português Mário de Sá-Carneiro, autor de livros como Dispersão (1914): “Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro”. Dele para seu amigo Fernando Pessoa é um passo. Pessoa é o poeta dos vários rostos e nomes; são mais de 130 criados: dos famosos heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis) até outros autores-personagens. Ele mesmo disse num poema: “Eu sou uma antologia”, ao que completou noutro: “Doem-me a cabeça e o universo”.


Entre artistas e poetas do Japão antigo e também entre monges budistas é comum mudanças de nome conforme nos tornamos outros ao longo da vida. Por exemplo, aquele que conhecemos por Hokusai trocava de nome sempre que o traço de seus desenhos ganhava mais vida. O novo nome poderia ser atribuído por um novo mestre que o artista seguisse ou ainda devido a alguma outra grande transformação. Semelhante história é a de Bashô. Além de Matsuo Kinsaku que era o nome de nascimento, o poeta adotou pelo menos outros três conforme ia se metamorfoseando. O pintor francês Henri Matisse — sobre essa mudança de nome e o que ela representava entre os artistas no Japão antigo — disse o seguinte: “queriam só preservar a liberdade deles”.


Identidades – como é sabido – não existem de antemão. São construções e estão sempre em processo. Nesse sentido, todos os versos e histórias citadas, mais do que me mostrarem versões de um eu não individualizado, me fazem lembrar do lugar que a poesia reserva para a identidade como coisa em constante elaboração.


Depois de todo esse percurso, vamos enfim ler “Mulher VIII” (2001) da poeta angolana Paula Tavares:


Que avezinha posso ser eu

agora que me cortaram as asas

Que mulherzinha posso ser eu

agora que me tiraram as tranças

Que mãe grande posso ser eu

agora que me levaram os filhos

 

Conheço poucos poemas tão bonitos quanto esse. Tocamos agora algo que é, de uma só vez, menor e maior do que o sou isso sou aquilo sou tanta coisa. Nem tenho muito o que falar depois desses versos. Acho que resolvi escrever essa arte poética de Gita Gogoya só para poder, no fim, citar esse poema.

 


 

Leonardo Gandolfi para nomes próprios. A tradução do ensaio de Émile Benveniste é de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Rodrigo Garcia Lopes traduziu os versos de Walt Whitman. Já Augusto de Campos foi quem traduziu o poema de Emily Dickinson.

 

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