top of page

Próxima parada: prosopopeia


 

Mas antes da prosopopeia, eu vou falar um pouco do monólogo dramático que é uma forma poética na qual quem fala é um personagem fictício ou histórico.


Daí, ao ler isso, você pode questionar dizendo que é sempre um personagem quem fala num poema. E tem toda razão (nunca é a gente e ao mesmo tempo é a gente como nunca). No caso do monólogo dramático, a atenção se concentra em mostrar o quão fictício ou historicamente reconhecível é tal voz.


E quem chamou atenção para esse modo de voz na poesia foi o inglês Robert Browning no século XIX. O argentino Jorge Luís Borges homenageou-o compondo o monólogo dramático “Browning resolve ser poeta” (1975). Segue aqui o final desse texto que não deixa de ser uma arte poética do monólogo dramático com sua multiplicidade de rostos e vozes:


(...)

Serei o rosto que entrevejo e esqueço,

serei Judas, que aceita

a divina missão de ser traidor,

serei Caliban no lamaçal,

serei um soldado mercenário que morre

sem temor e sem fé,

serei Polícrates, que vê com espanto

o anel que o destino devolveu,

serei o amigo que me odeia.

O persa me dará o rouxinol e Roma, a espada.

Máscaras, agonias, ressurreições

vão destecer e tecer minha sorte

e algum dia serei Robert Browning.

 

Na nossa língua, há alguns clássicos do gênero, como o poema “Meditação do Duque de Gandía sobre a morte de Isabel de Portugal” (1958), da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, que – a partir da voz de um personagem histórico secundário – trata do tema da finitude. Ou ainda “Camões dirige-se aos seus contemporâneos” (1961), do também português Jorge de Sena, que mistura tempos e faz coincidir crápulas da aristocracia portuguesa do século XVI a crápulas da ditadura do Estado Novo português no século XX, tudo a partir da voz de um Camões que se recusa a ser instrumentalizado pela ditadura salazarista.


Vale lembrar também de Adão Ventura e de alguns de seus poemas, como “Zumbi” (1980), em que troca eu-lírico por eu-zumbi, com todas as implicações que isso tem. Ou ainda o angolano Ruy Duarte de Carvalho com inúmeros poemas, entre eles, “Fala da Rainha de regresso ao quimbo” (1974) em que se escuta a voz da rainha Nzinga (1582-1663) resistindo aos colonizadores portugueses.


João Cabral de Melo Neto é autor de alguns monólogos dramáticos, entres eles, o poema “Graciliano Ramos:” (1961), assim mesmo com dois pontos. Copio apenas a primeira estrofe:

 

Falo somente com o que falo:

com as mesmas vinte palavras

girando ao redor do sol

que as limpa do que não é faca:

(...)

 

A voz do poema é a do romancista de Vida Secas e São Bernardo, que – com sua prosa seca e cortante – dá a ver uma paisagem também seca e cortante. Mas a graça do poema é que ele também funciona na primeira pessoa do poeta, já que os versos dele também são marcados pela mesma justeza de linguagem, pela mesma aridez de paisagem.

 

Outro monólogo dramático de impacto é “Fala de um homem afogado ao Largo da Senhora da Guia no dia 31 de agosto de 1971”, do português Ruy Belo. Aqui vai apenas o trecho final:

 

(...)

Não pense quem vier que estou sozinho

entre inúmeros peixes das profundidades

e os corpos de incontáveis pescadores

como o jovem lourenço são miguel

que aqui se despediu dessa vida de aí

a cinco salvo erro de janeiro de sessenta e cinco

(...)

Moradores da terra fogo ou ar

sabei que o solo sólido da terra foi apenas para mim

insegurança oscilação vertigem

e que em verdade agora mais do que acabar

o que fiz foi voltar à minha origem

 

A partir de um título quase documental, o autor traz a voz de um homem anônimo que se afogou e que, portanto, está morto. Mas, feito o Camões do poema de Sena, tal voz revela outra vida que não a de uma vida pós-morte estereotipada e sim a da vida no poema que dá uma reviravolta no tempo linear.

 

O afogado convoca todo mundo e os próprios elementos (“Moradores da terra fogo ou ar”) para dizer que a vida dele em terra foi “insegurança oscilação vertigem” e que, mais do que acabar, o que ele fez foi voltar à sua origem, ou seja, à água.

 

A vida ser “insegurança oscilação vertigem” não é estranho para nós, humanos. E ter a água como início tanto da vida no planeta como da vida de cada um de nós, através do líquido amniótico, é fato. Vale lembrar também que se trata de um afogado numa cultura, como a portuguesa, cujo mar sinaliza historicamente expansão política e também naufrágios: os literais e os simbólicos.

 

A essa altura, você deve estar se perguntando pela prosopopeia que está no título deste meu texto. Como vimos desde os tempos de escola, prosopopeia é uma figura de linguagem em que não-humanos, seres inanimados, objetos ou pessoas mortas passam a falar. A primeira lembrança costuma ser das fábulas em que bichos têm voz.

 

Tanto o poema de Jorge de Sena quanto o de Ruy Belo se abrem para a voz de quem não pode mais falar e, por isso mesmo, fala o que não está previsto. Só que mais do que a prosopopeia, estou interessado na “maquinaria elementar” dela, maquinaria presente nestes poemas. A expressão é do escritor argentino Cesar Aira. Para ele, seria bom “distinguir a prosopopeia como figura descrita nos manuais de retórica, da prosopopeia no momento da invenção, utilizada pela primeira e única vez, quando triunfa a liberdade geradora da literatura.”

 

Pensando nesse “momento da invenção”, o poema que primeiro me ocorre é “A erva” (1946), de Elizabeth Bishop. O texto é longo e vou cometer aqui o crime de fazer paráfrase dele. A pessoa que fala, nos versos, está morta, dentro do caixão, e vê de repente nascendo do seu coração já partido uma ervinha. Diante de tal absurdo, a pessoa se dirige à ervinha, perguntando: “Que fazes / neste coração partido?” Então a ervinha “ergueu a cabeça molhada” e respondeu: “Cresço, para partir / teu coração outra vez.”

 

Seguindo Elizabeth Bishop, Cesar Aira, Ruy Belo e tantos outros, gosto de encarar a prosopopeia (sua maquinaria) como possibilidade de voz daquilo que fala pela primeira vez e, por isso, fala algo que não é falado, desconcertando o que já está estabelecido: o poder, o tempo linear, a identidade do sujeito etc.

 

Agora, este meu texto poderia fazer uma viagem por poemas, mas tempo e espaço começam a faltar. Por isso, vou elencar só o que me ocorre de bate e pronto: “Um boi vê os homens” (1951), de Drummond; “O rio” (1953), de João Cabral; “Oração do milho” (1967), de Cora Coralina; “Canção noturna da baleia” (1990), de Agusto de Campos; “A voz da rã” (1999), de Fiama Hasse Pais Brandão, etc.

 

Todos são monólogos dramáticos que ativam a maquinaria elementar da prosopopeia. Noutras palavras, em todos eles, surge uma voz que faz o que parecia impossível. Em todos eles, o silêncio começa a falar sem perder o estatuto de silêncio. E nós que vivemos sem parar de falar um só minuto, quando ouvimos algo assim, além de aprender a falar menos, aprendemos a experimentar a primeira vez de novo.

 

 

Leonardo Gandolfi para nomes próprios. A tradução do poema de Borges é de Josely Vianna Baptista e a do ensaio de Aira “A prosopopeia” é de Eduardo Marquardt, já a tradução do poema de Bishop é de Paulo Henriques Britto.

 

Comments


bottom of page