Lilian Sais, Adília Lopes e o extravio dos significados
por Rafael Zacca
Em A mulher que matou os peixes, Clarice Lispector escreve uma narradora que pede desculpas por ter deixado que os peixinhos vermelhos de seu filho morressem de fome. Provavelmente instigada pela polissemia da confissão da narradora do livro (“essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu”, frase que pode ser lida como referida tanto à personagem narradora como à figura de Clarice), a poeta portuguesa Adília Lopes escreve, meio século depois, um poema em repreensão irônica:
Clarice Lispector,
a senhora não devia
ter-se esquecido
de dar de comer aos peixes
andar entretida
a escrever um texto
não é desculpa
entre um peixe vivo
e um texto
escolhe-se sempre o peixe
vão-se os textos
fiquem os peixes
como disse Santo António
aos textos
A repreensão (que cita, aliás, o Sermão de Santo Antonio aos Peixes, de Vieira), ganha caráter de fábula e contém, como as fábulas, muitas lições. A mais aparente – “entre a vida e os textos escritos, escolhe-se a vida” – é também a mais ardilosa. Ao produzir a confusão entre narradora e autora, Adília toma o escrito pelo vivido, desfazendo a dicotomia que seu próprio poema instaura, o texto e a vida. No poema, Santo Antonio fala, diferentemente do original de Vieira, aos textos e não aos peixes!
Matar peixes por escrito se equivale, no texto de Adília, com matar peixes vivos, com o que não se pode preferir um pelo outro, como se se tratasse de duas realidades ontologicamente distintas. Por outro lado, a dicotomia instaurada produz o seu efeito sobre o texto, e temos um choque entre moralidade e imagem poética que dá ao poema toda a sua graça e leveza ao tratar de temas tão graves como a composição poética e a morte. Em outras palavras, é no mal-entendido que se produz o choque do poema.
Isto a poeta reproduz em outros textos, como neste pequenino: “O poema não deve ser / uma mala / mas um mal / entendido.” O terceiro verso é de todos o mais enigmático. Ele produz um sentido com o anterior (não uma mala, mas um mal) e outros dois sentidos com o quarto verso (mal / entendido – um “mal-entendido” ou um “mal que é compreendido”).
Acreditamos que escrevemos para sermos compreendidos. Para passar adiante uma mensagem. E, no entanto, algo acontece no meio do caminho. Um extravio. Isto que tentamos evitar é o que Adília Lopes procura e chama de poesia. E o procura com tal esmero e no aparentemente mais inequívoco, que não percebemos o mal-entendido que se esconde nos seus versos de dicção clara e objetiva.
*
Também é dessa natureza o trabalho poético de Lilian Sais, especialmente no seu mais recente O livro do figo (Macondo, 2023). O capítulo “Lances” está cheio de mal-entendidos na linguagem mais simples e objetiva. Se você não prestar atenção à ambiguidade das palavras, perderá de vista a bifurcação dos sentidos.
o que se ganha no amor
por exemplo partidas de buraco
se você gosta de jogar cartas
e ama alguém que gosta de jogar cartas
e com sorte tem um casal de amigos
que jogam da mesma maneira
pois no amor e nos jogos
cada um traz consigo
as suas regras
O sentido inequívoco do primeiro verso se refere a um jogo de cartas. Ou será que não? Lilian Sais, além de poeta, é professora de grego antigo. Ela conhece o adjetivo glukupikron que Safo atribui a Eros, deus responsável, na Grécia Arcaica, pelo desejo e pelo amor sexual. Fragmento 102, em tradução de Giuliana Ragusa: “Eros de novo – o solta-membros – me agita, / doce-amarga [glukupikron] inelutável criatura”.
“Doce-amargo” é uma das traduções possíveis para glukupikron, como figura no ensaio de Anne Carson, traduzido recentemente no Brasil por Julia Raiz, Eros the bittersweet. Gluku é uma palavra que se refere à doçura. Pikron, traduzido por amargura, tem também outro sentido: segundo Claude Calame, em Eros na Grécia Antiga, tem originalmente a conotação da perfuração. Está associado a certos cultos em que Eros aparece vinculado ao mel das abelhas. Para Safo, Eros é doce-perfurante.
As flechas de Eros (mais conhecido como Cupido em nossa cultura, por causa de sua tradução na cultura romana) são doces, mas abrem buracos em suas vítimas. A experiência erótica é sentida por boa parte da poesia como uma experiência de perda, de perfuração, de dor. Voltemos ao poema de Lilian Sais sobre as partidas de buraco. Se no amor e nos jogos cada um traz consigo as suas regras, que jogo é jogado, que amor é vivido? O que se ganha no amor? Leia de novo o poema. São também buracos, furos, que partem. Daí o duplo sentido da palavra partida em todo o livro. No capítulo “Partidas”, você verá que além dos jogos, a palavra se refere a despedidas. Quanto ao poema das partidas de buraco, ele concentra nos seus oito versos uma aparente unidade do casal que oculta, como um véu, a solidão dos amantes. As regras não são as mesmas, não se joga o mesmo jogo.
O que atravessa esses poemas é uma força de dano. Mas não se engane. Não é porque a história de amor acaba mal. Esses poemas confiam no amor e não o olham com ironia. Mas o amor em si mesmo é danoso – como o foi para Safo. É esse dano, aliás, o pano de fundo para as sensações mais intensas – perto da morte a vida ganha o seu contraste. O poema “um lance” nos apresenta uma catástrofe concentrada no infinitamente pequeno (os cílios) e instantâneo (literalmente num piscar de olhos): “nós dois na madrugada / olhos abertos à força / como se fechá-los fosse provocar / um deslizamento de terra / são só pálpebras você disse / e o planeta se dissolveu / com o movimento dos seus cílios.” Outro poema nos diz que “amar é mais perigoso que andar de monociclo (...) / do amor saí só com os dentes / e nada o que fazer com eles”. É esse o Eros de Lilian. Ou, como diz em “Eva”:
eros é esse obstáculo
sobre o qual pulo
na pista
égua treinada
depois de saltar
volta
pro pasto
fingindo calma
chega a dar
um pique
as patas firmes
ninguém diria
que sangravam
É evidente que o poema cita a triangulação do desejo a que Anne Carson se refere em seu ensaio sobre Eros na poesia mélica arcaica. O desejo é uma figura de três pontos formada pela pessoa que deseja, por seu objeto de desejo e por aquilo que se interpõe entre eles: o obstáculo, a distância. Sem esse terceiro ponto não há desejo. Mas há mais coisa a ser vista, talvez não no obstáculo, mas nos cascos dessa “égua treinada” do poema. O que é?
“O que vive fere”, disse João Cabral de Melo Neto. O que vive “choca com o que vive”. Também parece ser essa a posição da poeta. O que é essa ferida? A própria linguagem. Falar e escrever são uma fissura no real. Um corte. Por quê? Porque toda linguagem vem carregada de desejo. Freud chamou o conjunto das pulsões de vida de Eros. E ele não comparece sem as suas flechas e perfurações. Em outras palavras: a linguagem não apenas acrescenta algo à vida (sentido), mas também a fere no seu âmago (o significante, o traço). Falar, escrever, são formas de dano. E, no entanto, não se vive sem esse dano. “O que vive fere”.
Há uma história contada em O livro do figo que abriga essa reflexão escondida em sua simplicidade. A história de Quitéria e Fernando. Dois personagens radicais, isto é, que operam apenas com uma característica fundamental: suas paixões. Quitéria tem duas paixões: Fernando e as coxinhas que ele vende. Fernando não faz nada a respeito de Quitéria nem de ninguém, só quer vender os salgados e ir para os Estados Unidos, muito por causa da bandeira. Como Fernando quer se mudar, trabalha duro em função do lucro. Para isso, decide um dia tirar o recheio das coxinhas. Depois, porque a passagem para o seu sonho é cara, retira a farinha da massa. Quitéria segue frequentando a barraca. Um dia, Fernando decide retirar da receita também a massa. Sem recheio e sem massa, o lucro sobe até o máximo, a matéria desce ao mínimo: “passou a vender apenas / a palavra coxinha / que além de tudo / não contém glúten”. Fernando consegue se mudar e nunca mais vê Quitéria. O poema termina com ele emocionado vendo as listras da bandeira norte-americana tremulando “alternadas / tão certinhas”. Nos Estados Unidos, “a palavra coxinha / igualmente faz / muito sucesso”.
A palavra coxinha faz muito sucesso porque move esses personagens. E os move diferentemente. Ela ocupa, no enredo, um papel polivalente. Move Quitéria em direção a Fernando; move Fernando em direção aos Estados Unidos. Ou seja, a palavra precisa ser carregada de desejo para fazer sentido. Ele substitui a pura objetividade da matéria. Sem essa força, a palavra coxinha é apenas palavra. Entre a lógica do lucro e a da atração amorosa (fato curioso: Quitéria é um nome relacionado a Cítera, aquela que veio de Cítera – em outras palavras, Afrodite, a deusa grega da beleza que está sempre ao lado de Eros), a palavra coxinha moveu diferentemente as pessoas desse poema. Beleza e atração; deslocamento e linguagem; palavra e desejo. Está tudo aí, nessa história simples de duas pessoas com nomes comuns.
*
Desejo e morte são duas constantes no trabalho de Lilian Sais. Eros e Thanatos. No seu último livro de poemas, Motivos para cavar a terra, a autora performa nos primeiros versos uma poeta-coveira, como uma espécie de Antígona. Já em O livro do figo, essas forças aparecem em franco intercâmbio como dois contrapesos que fazem a própria palavra variar de peso e sentido. Veja por exemplo como a palavra figo aparece aí. É uma fruta mítica, é um alimento comum, é o jogador de futebol Luís Figo que jogou em diversos times europeus e na seleção portuguesa. Mas é também uma manifestação do desejo ele mesmo e da morte ela mesma. É perfeitamente possível, por exemplo, trocar, nos “Mandamentos do figo” (uma espécie de arte poética do livro), a palavra “figo” pela palavra “desejo” ou pela palavra “morte”. Experimente.
Uma tal duplicidade é caráter também de sua poética do jogo, que figura explicitamente no capítulo “Lances”. Mas também diz respeito à sua poética da tradução. A tradução é uma forma de extravio do significado– uma forma de mal-entendido. O poema “Uma palavra” tematiza esse extravio por meio de uma conversa com traduções em torno de um fragmento de Safo: “desejo e enlouqueço / é a tradução literal / de um fragmento de Safo / que um poeta traduziu por / desejo e ardo // e há quem diga / que arder é arder / e enlouquecer é enlouquecer / (...) penso se Safo não abandonaria o enlouqueço / caso houvesse palavra em grego / que lhe pusesse a arder ao lado do desejo / e coubesse no metro / da sua estrofe”. O extravio da tradução é o extravio da poesia. O que acontece quando uma palavra (como coxinha, figo, enlouqueço ou desejo) se desloca para um novo centro de relação de forças e significados que chamamos de linguagem poética?
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Por que os significados se perdem? Você diz uma coisa e quem você ama escuta outra. Escrevo estas palavras, mas o sentido que atribuo a elas não é o mesmo que chega a você. Que estranho carteiro se interpôs entre nós e embaralhou as cartas?
Mas já que não começamos falando de textos, e sim de peixes, gostaria de voltar a eles. Entre duas pessoas que se comunicam se passa o que se dá na tradução, na poesia, no amor – quem fala é Antonio, que prega; quem escuta é peixe. De fora da água não dá pra ver muito bem como são os peixes, apenas formas agitadas que se dispersam na refração da luz. De dentro d’água acontece a mesma coisa, porque a luz não se comporta da mesma forma no ar e no mar. Além disso, Antonio não pode viver debaixo d’água, nem os peixes podem respirar lá em cima. Mas e Adília Lopes, Lilian Sais, e outros poetas do mal-entendido, que é que estão fazendo?
Não falam com os peixes. Tentam apanhá-los com as mãos. A poesia às vezes é algo tão simples e violento como isso. Adília Lopes tem uma palavra ou outra sobre a questão. O poema se chama “Arte poética”.
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
Ora, não vá se esquecer do que aprendemos juntos. Experimente trocar a palavra peixe pela palavra “desejo”. Depois, pela palavra “morte”.
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Rafael Zacca é poeta e crítico. Professor no departamento de filosofia da PUC-Rio.
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