Traduzir o cotidiano
- Eduarda Rocha
- 7 de jul.
- 4 min de leitura

O que pode acontecer entre queimar a mão no forno e observar as placas de uma rodovia durante uma viagem? Em Tradução da estrada (Círculo de poemas, 2023), de Laura Wittner, traduzido por Estela Rosa e Luciana di Leone, acontecem cinquenta e seis poemas. O título do livro já chama a atenção para um dos ofícios da autora, uma tradutora que aqui observa o cotidiano com a mesma lente minuciosa de quem traduz: atenta aos detalhes mínimos, aos ritmos e deslocamentos das coisas.
O livro é dividido em três partes: “Dez respostas verdadeiras para perguntas fictícias”, “O imperfeito das coisas” e a homônima “Tradução da estrada”. Todas elas têm em comum o registro de diversos acontecimentos cotidianos, uma maneira de olhar para aquilo que Luiza Leite nomeia, na orelha do livro, de superfície dos dias, e que Georges Perec irá formular como o infraordinário. Para ele, o que acontece realmente, o que marca as nossas vidas, não são os grandes acontecimentos, mas o que se repete dia após dia. Aqui, Laura Wittner desautomatiza o olhar para o que está ao redor, dispondo-se a ver, tocar, sentir, com uma percepção aguçada, o que sempre esteve ali, que acaba ganhando um contorno especial. A poeta dá uma atenção singular ao que poderiam ser pequenos acontecimentos, capta delicadezas na vida doméstica, na conversa com os filhos, na repetição da rotina, isso se traduz no gesto de segurar um limão, de fritar legumes, de derrubar uma caneta-tinteiro, ou como no poema a seguir:
Levanto às 6
E entre sombras vou para a cozinha.
Ponho água para ferver, encosto
em copos, potes, mexo em coisas.
É nesse momento que sobre a janela
uma luz começa a se produzir.
Não a habitual. Levanto a cabeça
para verificar, mas o que é?
Resplandece algo rosa nos vidros?
Pulam as torradas. Eu me aproximo
da minha filha para acordá-la.
Senta tão lentamente
que me afasto para não agitar seu mundo.
Imóvel, quase sem abrir os olhos
identifica algo que a faz duvidar
ali, atravessando a persiana.
Me olha fixamente. Franze o cenho.
Tem tipo um rosa, né?, a gente diz
(p. 33)
Desde o título, “Levanto às 6”, entramos no campo da rotina, da manhã comum. Os gestos de “pôr água para ferver”, “mexer em coisas”, a princípio podem parecer banais, mas Wittner faz do ordinário um espaço de atenção, há uma apreensão do mundo acontecendo diante dessa sujeita que acaba de despertar. A poesia aqui não é algo grandiloquente, nasce das sutilezas, da vida acontecendo como quase sempre, porém com uma lente mais apurada. A luz rosa que “resplandece nos vidros” interrompe o movimento automatizado da rotina; para vê-la, a sujeita poética “levanta a cabeça” como quem percebe algo fora do roteiro, que não se encaixa no padrão habitual da manhã. Essa “luz”, para além do sol nascendo com uma coloração diferente, torna-se uma revelação breve, como um poema que acontece de repente. Nos versos: “É nesse momento que sobre a janela / uma luz começa a se produzir. / Não a habitual.”, o fato de a luz não ser a habitual representa o ponto de ruptura, uma forma simples e eficaz de registrar como o mundo pode se desviar do esperado, e como a poesia, neste caso, parece surgir a partir desse desvio.
O poema que abre o livro se pergunta “Por que as mulheres nos queimamos com o forno”. A queimadura pequena, vermelha, que poderia parecer insignificante, se transforma aqui numa marca de repetição e cuidado que atravessa gerações:
Por que as mulheres nos queimamos com o forno
Todas temos a marquinha vermelha.
Aqui na mão esquerda, com a que escrevo
tem também minha queimadura de forno.
Se olho fixamente, sobre meu osso rádio
ele se desdobra em três:
se tridimensiona meu pulso
e fechando um pouco os olhos se pode ver
o pulso da minha mãe, o da minha avó
e, em um tranco para a frente, o da minha filha
mordido de mosquitos, encerado e já disposto
à marca da grelha ardente.
(p. 13)
O poema torna explícita, no fato corriqueiro de se queimar com o forno, uma genealogia de corpos de mulheres marcados pelo contato constante com o trabalho doméstico e de cuidado. Os pulsos da avó, da mãe, da própria sujeita poética e da filha se condensam, são o registro desse trabalho herdado. No entanto, a mão que se queima é a mesma que escreve, e o que se marca na pele também se inscreve no poema. Escrever é, desse modo, registrar uma intimidade coletiva de um cotidiano que soa quase invisível, mas carrega o centro da experiência.
Em Viver e traduzir,[1] Laura Wittner escreve que “Traduzir é desnaturalizar e tornar a naturalizar (e tornar a desnaturalizar)”. Esses movimentos de retirar algo de um lugar em que parecia já compreendido, e recolocá-lo sob nova forma, é também o que seus poemas fazem, movendo a rotina até que ela se transforme em uma pequena revelação, ou melhor, em uma tradução poética do cotidiano.
Eduarda Rocha para A bobina
[1] Traduzido no Brasil por Maria Cecília Brandi e Paloma Vidal
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