algumas aventuras sinistras ao lado de Gabriela Perigo, em A Saga
por Beatriz Malcher
Na atual etapa do que poderíamos chamar, se quisermos ser pessimistas – e talvez queiramos - de fase avançada da Sociedade do Espetáculo, há um curioso fenômeno onde a espetacularização de si mesmo nas chamadas redes sociais toca a produção literária de uma forma muito particular. É comum ver, ao menos dentro da bolha da intelectualidade pequeno burguesa, uma tendência – da qual eu, intelectual pequeno burguesa, certamente não escapo – de postar frases de impacto, pedaços de poemas, parágrafos de romance e trechos de ensaios, geralmente deslocados de seu contexto original. Penso que um poeta esperto pode fazer bom uso disso, escrevendo livros instagramáveis, prontos e pensados para as redes. Não condeno essa postura, afinal, a Hilda já dizia que poesia não dá dinheiro, e, concordando com ela, a gente se vira como pode. Mas penso também que uma poeta mais esperta ainda vai ser aquela capaz de escrever fazendo uso desta fórmula do instagramável, mas sem seguir o fluxo da produção massificante das redes, produzindo ali um ruído; um furo; uma interrupção radical e crítica da lógica espetacular. E a leitura atenta de A Saga (Garupa, 2021), dá a ver que a Gabriela Perigo certamente estaria dentro desta segunda categoria de poetas.
Nas semanas e meses que seguiram a publicação do livro, não foi incomum ver perfis de Instagram postando algumas de suas passagens, pedaços de poema, poemas inteiros. Houve um, em particular, que me chamou bastante a atenção, tanto na época quanto depois, durante as muitas releituras que fiz deste livro – que morou na minha cabeceira ao longo do difícil ano de 2022:
o brasil q me desculpe
mas hoje eu vou
sofrer
de problemas
pessoais
Retirado do contexto geral do livro, aos olhos de um (quase)leitor que passeia passivo e indiferente pelos stories de amigos e semi-conhecidos, esse poema pode parecer simples, tendo inclusive um tom de humor. Talvez esse leitor se lembre de uma dessas frases engraçadas que povoam o Twitter ou de qualquer coisa retirada de uma página de meme – sensação essa que certamente é reforçada pelo uso abreviado da partícula expletiva “que”. Este efeito não me parece um acaso: a poeta de fato brinca, ao longo de todo o livro, com essa linguagem comum à internet, ponto que me parece extremamente relevante para pensar A Saga, e sobre o qual falarei em breve. Antes, no entanto, acho importante nos atermos apenas a estes versos, que me parecem servir como um local primordial para pensar muitas questões que povoam o livro.
Este poema está em seu centro, ocupando a quadragésima segunda página, de um total de oitenta e cinco. Em outros termos, ele está quase no meio do caminho desta saga difícil que a Gabriela Perigo nos leva a atravessar, saga esta que tem início no acordar de um gigante em junho de 2013, passando pelo golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, a eleição de Jair Bolsonaro, sua presidência e os efeitos de tudo isso em pessoas que sentiam estar perdendo “o futuro pelas mãos”. É curioso então que o meio do caminho seja ali, no que parece uma suspensão da ferida contínua de ordem política que está presente em todos os poemas até então, para pedir passagem para os “problemas pessoais”. Mas será mesmo que é isso que está acontecendo?
Quando penso em como o pessoal atravessa e é atravessado pelo coletivo na poesia política brasileira, lembro do Antonio Candido falando sobre o Drummond da década de quarenta, um Drummond radicalizado, onde o movimento de “pessoalizar” e de insistir numa projeção em direção a um universo subjetivo seria central para um desenvolvimento apurado da crítica social. Claro que Candido fala aqui das ambiguidades e deslocamentos de classe presentes na poesia do mineiro, o que não é necessariamente o caso da poesia da carioca. No entanto, podemos pensar algo similar ao vermos como os problemas pessoais que surgem de maneira muito pontual em A Saga, estão sempre referidos às questões de ordem política, enquanto que as questões políticas são adensadas justamente pelas pessoais.
Se lido sozinho, este poema pode sim tratar apenas de uma piada, talvez autorreferenciada. No entanto, pensando seu lugar dentro desta saga, fica claro que é tudo um pouco mais complexo. Para desenvolver este argumento, alguns pontos devem ser trazidos. Antes de tudo, é importante entender como nós, os leitores, somos convocados desde o começo do livro a participar dele, enquanto personagens ativos. Seu segundo poema já começa com uma interpelação direta, com um primeiro verso composto por uma única palavra: “você” – “você / acorda / o sol é quente “. Dali em diante, todo o livro vai conjugar o eu-lírico e este você, que se torna parte implicada de todas as ações que se desenrolam ao longo da saga. Passamos a andar do lado desse eu-lírico feminino, a partilhar dessas ruas que ela atravessa tranquila, a vagar indiferentes pelas redes sociais. Somos pegos de surpresa, ao seu lado, por um fascismo que está virando a esquina. Junto com ela entramos desespero, sofremos, deixamos a louça por lavar, esquecemos das partes do nosso corpo. Somos diretamente implicados, cúmplices de um crime e, ao mesmo tempo, vítimas.
Essa implicação torna o “eu” manifesto nos poemas um eu “desindividualizado”, que não se separa ou se divide desse “você”, estabelecendo com ele uma espécie de unidade, que podemos chamar aqui livremente de um eu-coletivo. Essa unidade, no entanto, não se limita à formação deste eu-coletivo, fechado na figura do leitor e do eu-lírico: é uma unidade constantemente atravessada pelo mundo, que desestabiliza as experiências pessoais desta figura poética aqui formada.
A leitura cuidadosa de A Saga mostra que não há espaço possível para o pessoal: um poema sobre uma dor nas costas nunca é apenas sobre uma dor nas costas; é um poema sobre a cidade, sobre a crise de uma geração de pessoas que aos 25 anos já perde o domínio do próprio corpo e sobre a necessidade de ficar de pé diante de um cansaço político quase crônico. Ou uma lista de afazeres – “comprar uma agenda / ver auto escola / comprar resma de papel / procurar terapia / terminar texto / pensar / lavar calcinhas” – nunca é só sobre tarefas pessoais, mas também sobre a oscilação entre a negação e o desespero em um ano (2021) de recessão, covid 19, crise, rachadinha, no qual “você.não.sabe.mais.oq.fazer”. Qualquer problema pessoal, aqui, é sintoma de uma catástrofe política.
No entanto, o livro não trata apenas da ruína da experiência pessoal desse eu-coletivo. Ele trata da ruminação “entre a revolução / e a desesperança total”, falando também das possibilidades deste pessoal provocar algumas fissuras no mundo em desordem. E são justamente as fissuras que me interessam nessa saga. Poderíamos falar de várias, mas vou destacar aqui apenas duas. A primeira – com a qual eu abri este breve texto – é justamente a fissura em um processo de limitação cognitiva e política experimentada pelo mundo das redes. A Gabriela Perigo não vai apenas fazer um uso irônico da linguagem da internet contra ela mesma – com abreviações, gírias ou formulações próprias desta linguagem, como “crise.gov /rachadinha.net” -, mas vai também trazer a internet para dentro dessa saga, como espaço físico a ser atravessado e rompido.
O livro já começa ali na internet, usando livremente, em seus primeiros versos, a frase que povoou todas as redes sociais no contexto das Jornadas de Junho: “acorda / sonolento/ deperta/ gigante/ desperta/ não, não/ peraí”. No poema posterior ela reaparece como uma espécie de espaço de impossibilidade de ação: “[...] você /perdido entre /os memes repetidos / das páginas / e é só alívio / rolar as páginas / chorando e rindo”. Vale lembrar que, apesar da inegável diversidade de grupos sociais e políticos que frequentaram os acontecimentos de 2013 no Brasil, existia na época um predomínio, dentre uma esquerda liberal, de um discurso utópico sobre um potencial revolucionário produzido pela mobilização política online, discurso este que pode ser resumido talvez na colocação do Manuel Castells de que seria irreversível no Brasil o empoderamento dos cidadãos e sua autonomia comunicativa; ou da Professora Ivana Bentes, de que a força das periferias globais estaria se impondo de forma incontornável sobre o grande capital através de uma idealizada radicalização da democracia a partir das redes sociais – ignorando, de alguma maneira, que as redes sociais já eram o grande capital.
Sabemos que a história não se deu bem assim. Ao invés de servir para a imposição desta democracia radical, acordando um sempre adormecido gigante revolucionário, as redes ajudaram a “acordar” um gigante que, no Brasil, tira apenas cochilos e tem um sono muito leve: o gigante do totalitarismo. Gabriela ironiza este lugar, e faz uso disso no seu texto, mostrando a internet como esse local de produção e reprodução de uma crise da qual não há muitas formas de se sair. E, diferente da lógica imediatista e massificada da crítica social elaborada nessas redes, a autora não nos dá soluções fáceis. Ou seja, o livro não propõe uma resposta mastigada e não pretende mistificar nada; ele não se alinha a uma formulação ideológica que promete que todos os problemas deste país podem ser resolvidos em uma hashtag e em um textão cheio de lugares comuns. O que a saga que atravessamos coletivamente propõe é elaborar uma fissura nesta vida programada – e relativamente arruinada – pelas novas mídias através de uma reocupação coletiva de um espaço que deveria ser nosso: a rua. E isso se dá através de uma segunda fissura no mundo: a resistência pela alegria do corpo.
Não digo com isso que essa saga termina em um final feliz: pelo contrário, ela não termina. Como eu já disse anteriormente, não há neste livro espaço para utopias mistificantes. A autora dá ao leitor apenas o que ela pode dar. Ela sabe e assume que os desejos não conquistados não serão conquistados jamais; ela olha para a vida como uma “aventura sinistra”. Mas, mesmo assim, convoca o corpo desse eu-coletivo a se manter de pé, a derrubar “algumas pilastras”, a “dançar as ruas escuras/ como quem habita/ a casa/ que ainda / é sua” - ainda que o futuro se perca pelas mãos.
Essa produção de fissuras é, por si só, um ato extremamente pessoal e profundamente político. É assim que a autora rompe a narrativa massificada das redes e propõe uma sobrevivência de uma espécie de alegria triste pelas ruas, sem, no entanto, criar uma falsa narrativa teleológica de uma salvação vindoura. E é importante nunca deixar de ressaltar este ponto, especialmente no momento em que escrevo este texto, maio de 2023, que pode parecer tão distante do contexto em que se passa essa saga – ainda que recente. De fato, terminar de reler A Saga agora, quando parece que acordamos de um pesadelo, é um alívio estranho. Certamente aquele desamparo que atravessa o livro – e no qual me vi tantas vezes espelhada ao longo de leituras anteriores – soa agora, inexistente. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que ele ainda está aqui, sempre à espreita. O livro da Gabriela Perigo é um livro de uma época que a gente pode querer achar que não é mais a nossa. E se a gente quiser ler assim, a gente se foca só nesse alívio e fala que sim, são poemas que contam a saga terminada de uma época de crise recente, mas passada.
Eu, particularmente, prefiro me focar no estranhamento deste alívio e ler esse livro como um registro de uma saga que não terminou; a saga de um país que não lida com seus mortos; que não mata seus gigantes fascistas, mas apenas prepara para eles uma cama quente para descansarem tranquilos, antes da hora de acordar novamente. A Saga me parece, portanto, narrar um processo em curso, servindo menos como memória de algo acabado e mais como um alerta; como um aviso de que, apesar de podermos agora estar em festa, a indiferença ainda “corrói chuveiros/ elétricos / sistemas de som” e o terror fascista sempre está pronto pra dobrar a esquina, se ficarmos desatentos. E por isso mesmo, A Saga é, para mim, um convite para gente como a gente, que se conhece “pela roupa” e que pertence a um mesmo clã, a continuar fazendo casa das ruas escuras. A continuar a se beijar nessas ruas perdidas de um mapa alado. E a seguir “bravos/ dançando/ a passarela azeda/ até não dar pé /até as roupas / ficarem pó”.
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Beatriz Malcher (1990) é poeta, professora e pós-doutoranda em Teoria Literária pela UFRJ.
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