Os tons do Leo
- Paloma Vidal
- há 3 dias
- 6 min de leitura

Pensei em mandar um áudio para o Leo falando do livro dele que tinha acabado de ler. Ia contar para ele que resolvi trazê-lo comigo para a Argentina, porque tinha a esperança de escrever um pouco do livro com a minha mãe aqui e quando li os poemas dele pensei o quanto eu gostaria que o que estou escrevendo se aproximasse do tom que encontro neles. Mas aí antes de mandar o áudio fiquei me perguntando o que esse tom queria dizer, como situá-lo, como defini-lo.
Pergunto ao meu professor de piano algo que eu não consigo ouvir: a diferença entre uma música composta em um tom ou em outro. Ele faz algumas distinções e dá alguns exemplos, fala do tom maior e menor, das vozes e instrumentos que combinam com esse ou aquele tom. Não é algo fácil de colocar em palavras. Penso que também não é fácil colocar em palavras, mas talvez um pouco mais, a diferença dos tons na pintura, porque neste caso é possível tentar comparar com coisas e seres, como o tom esverdeado e intenso, que se aproxima do amarelo, quando a luz do sol da tarde atravessa as folhas de uma árvore no outono de Buenos Aires.
Eu uso a ideia do tom nas aulas e nas oficinas, mas sei que se tiver que me deter nela não será tão fácil explicar o que me desperta. Para o Leo eu poderia simplesmente ter dito que adoro o tom dos poemas do Pote de mel, torcendo para que ele imagine o mesmo que eu quando digo isso. Só que ao decidir trazer o livro comigo para que me acompanhasse esses dias numa possível escrita, comecei a pensar que eu precisava entender o que era isso de um jeito mais concreto, nas palavras mesmas dele. Então pensei que queria começar a traduzir os poemas para o espanhol, porque o tom, difícil de definir, é também difícil de traduzir, talvez impossível, e nisso a gente acaba entendendo alguma coisa.
Não é a primeira vez que traduzo o Leo. Uns anos atrás ele fez uma seleção de poemas seus, alguns inclusive que ainda não tinham saído em livro e entrariam no Robinson Crusoé e seus amigos, e publicamos na coleção Gandula, das edições LUX/Grumo, com o título La muerte de Tony Bennett.
Naquele momento, traduzindo, entendi melhor a teatralidade nos seus textos, uma mistura de formal e informal, uma passagem entre várias pessoas, que complexificava a voz do poema, gerando um efeito cômico e terno, difícil de captar no espanhol sem que os versos me parecessem longos e pesados demais. Na tradução a pergunta “quem fala no poema?” saltava mais à vista, e embora o resultado para mim deixasse a desejar, era interessante experimentar como o problema de falar na voz de outro, que ocupava o Leo, ganhava uma outra camada quando o poema falava em outra língua. Porque se no poema “O espião janta conosco”, Roberto Carlos nos deixa intrigados com a possibilidade de que uma canção seja escrita em português, mesmo se imaginada na voz de Tony Bennett, no poema traduzido, Roberto fala em espanhol sobre uma canção em português a ser imaginada em mais uma língua ainda, sendo que tudo isso é contado por uma primeira pessoa que é quem proporciona o espetáculo, nos apresentando, nesse e em outros poemas, vários personagens, como um mestre de cerimônias um pouco divertido e um pouco estabanado.
Aprendi com o Leo o quanto a literatura pode ser um convite. E penso agora em quanto a ideia de escrever um livro com a minha mãe deve ao que experimentei com os poemas dele. Quando digo para minha mãe que gostaria que o livro se chamasse “O livro com ela”, ela me diz: mas quem está escrevendo é você. É verdade. Só que muitas das palavras são dela, tantas que já fica difícil saber quais. Eu gostaria que essas incorporações acontecessem com o tom do Leo. Mas então, o que isso quer dizer?
Tenho medo de girar em círculos: dos poemas do Leo; ao que estou tentando escrever; à minha tradução deles; de volta aos poemas, sem conseguir colocar em palavras o que acontece.
Mi hija y yo/ este poema/ lo vamos a hacer juntos/ entonces decimos río/ después decimos puente/ y sobre ese puente/ está nuestro amigo el lechón/ que es tan chico/ y tiene miedo de cruzarlo/ porque una vez se cayó/ pero eso hace tiempo/ mi hija y yo/ este poema/ lo vamos a hacer juntos/ entonces decimos miedo/ después decimos tiempo/ papá ¿qué tal/ si esta vez el lechón/ le da la mano a un amigo? Traduzo esse trecho do poema que dá título ao livro. Tenho medo, mas dou a mão ao Leo. Atravesso com ele suas palavras na direção de um texto compartilhado. Ele escreve com sua filha, eu gostaria de escrever com a minha mãe. Para escrever com a filha, eles leem juntos. Antes de chegar nisso que lemos nos versos que traduzi, foi necessário passar por outros textos; neste poema, pelas histórias do ursinho Pooh, escritas por A. A. Milne. Certamente o tom do Pote de mel deve muito a essas histórias de animais falantes. Para que eles falem com crianças, têm que ser ao mesmo tempo espertos e ingênuos, falar das coisas concretas, fazer perguntas frontais, rir com vontade, mudar de assunto.
Acho que o que me faz rir nos poemas do Leo vem desse lugar desconcertante da infância, de pequenices importantes, de soluções mágicas, das dores e da beleza sendo ditas da maneira mais direta e urgente. Apenas me di cuenta / ya estaba adentro/ de la panza de la ballena/ ¿qué hacés acá?/ me preguntó un pececito/ vine a buscar a mi papá. Traduzindo para o espanhol esse trecho do poema “Oficina”, duvido entre “padre” e “papá” para o final, mas fico com a segunda opção que possibilita a ponte entre o mundo adulto e infantil que os poemas fazem existir.
Desde que comecei a pensar no tom dos poemas do Pote de mel, deixo abertos os dois arquivos do “Livro com ela”. São dois porque um está em espanhol e outro em português. Faço uma busca no arquivo em espanhol e descubro que usei “mamá” uma só vez. Das outras 18 vezes que a “mãe” aparece a palavra é “madre”. Procuro entender como isso modifica o tom do que estou escrevendo. Testo as frases com uma e com outra. Lembro que o livro da Tamara se chama El eco de mi madre. A palavra “mamá” aparece no grito que repete “mamá mamá mamá”, que ela chama de “ataque de ecolalia”. Entendo que “madre” impõe uma distância, mas que talvez ela seja necessária entre mães e filhas, mesmo quando se está tentando a proximidade que eu procuro com esse livro que quero que seja “com ela”.
Entendo que o tom tem a ver com a proximidade e a distância. E que, até dentro de um mesmo poema, Leo trabalha com diferentes efeitos sobre nós das vozes que falam, entre animais, crianças, músicos, poetas, vivos e mortos, vozes mais próximas e mais distantes. Nosotros los muertos/ no venimos acá a tocarle/ el nodo a tu poema/ venimos porque somos/ flechas sin blanco/ a vezes alcanzamos/ de lleno a nuestros vivos.
A questão, em todo caso, continua sendo como atingir nossos vivos. Ou, pelo menos, essa questão ocupa o Leo, e acho isso muito comovente: uma poesia que testa vários tons nessa busca, porque nada lhe é mais alheio do que a indiferença. Daí os poemas em várias partes, que vão mudando de ponto de vista, se aproximando e se distanciando de várias pessoas – inclusive do eu – para seguir os rastros de alguma ideia, coisa, imagem, palavra, sem querer necessariamente extrair algum sentido delas. Pelo contrário, buscando uma espécie de mistério que possa nos encantar, nos divertir, nos surpreender.
Quem conhece o Leo sabe que ele tem um tom que é dele, e talvez por isso eu tenha dado a este texto o título “O tom do Leo”. Mas uns parágrafos atrás, fui lá e mudei, porque a graça destes poemas é que têm vários tons, eles se metamorfoseiam, se mimetizam, como a mão que Amilcar de Castro precisa fazer crescer depois de cortá-la a cada novo quadro; como o espelho que a cada novo rosto a refletir precisa começar do zero; como a nova boca que a cada manhã se abre no rosto e precisa reaprender a falar. Essas são imagens do Pote de mel que nos surpreendem e nos desconcertam. A poesia é esse lugar em que as coisas se tornam incrivelmente instáveis. Se aproximar disso é aceitar que quando as coisas começam “a fazer muito sentido/ parece que algo passa do ponto”.
Paloma Vidal para nomes próprios
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