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Olhar o olhar

Atualizado: 8 de mai.



 

Olhar além dos olhos e descobrir luzes através de olhares encontrados. A frase acima é uma interseção inventada, que mescla as epígrafes de Clarice Lispector e Vinícius de Moraes do início do livro de Antonio Neto – jovem poeta da cidade de Murici - interior de Alagoas, futuro professor e ávido leitor literário (graças à caixa secreta de gibis da tia...). Lanço mão da paráfrase pois ela já traz o tom para os escritos que abrem, e poderiam justificar o título do livro de estreia em poesia de Antonio – Encontro íntimo, publicado pela casa M.inimalismos, em 2024.[1] Ambas as epígrafes indicam que há mais olhar além dos olhos; há mais intimidade em olhar além dos olhos. É nesse além – que sugere um “através” – que Antonio Neto, poeta manifesto, manifesta o “Manifesto do olhar” – inscrevendo seu livro em um recorte clássico da literatura e da arte homoeróticas.

 

Em Encontro íntimo, Antonio Neto nos apresenta um livro que se hibridiza ao longo da leitura. Os poemas são entrelaçados a textos mais proseados e flertam, eventualmente, com o visual. Com olhos atentos, o poeta faz a costura do que deseja que a pessoa leitora explore no tecido do encontro íntimo com seus versos, lembrando que “Onde há sentimento há um olhar”, que “Tudo o que é sólido se desmancha no olhar”, e, ainda, que um “olhar vazio é oficina de corações quebrados”.

 

Olhar o olhar: eis o convite à contemplação, à observação do cosmos – pretexto para falar da diminuição da velocidade da corrida; a corrida da vida, aquela que não prevê medalha no final.


[isso não é ref daquele rapaz... o...?  Marvin Jouno. Dans l’étang...

 Nossa! Fui dar um google. Há dez anos o boy lançou essa música.

getting old... (ou gold?)]

 

Em Encontro íntimo, o poeta convida todas as pessoas leitoras a cultivar certa serenidade. Há um pedido de paciência. Olhar o olhar... insisto na repetição, pois o movimento tem suas regras, sua gramática e é importante salientar: nessa frase, olhar é ora verbo, ora substantivo. Olhar-verbo é dança entre a luz e a sombra a cada piscadela; já o olhar-substantivo é espelho ou janela da alma, a depender da variação proverbial. Exatamente como é tratado nesse livro: um espelho para encarar a si mesmo, a timidez de ver e ser visto; a janela que abre para os jardins da alma do eu lírico.


 [afff que frase cafona. E eu lírico tem alma, edmar?

Os saudosos Angélica Soares e Luiz Edmundo Bouças Coutinho

nunca te falaram sobre isso. Respeita, né!]

 

O encontro íntimo que Antonio propõe é, antes de tudo, o encontro consigo, com as “coisas do coração”. Mas é, sobretudo, encontro com o olhar-verbo e o olhar-substantivo: refúgio, contato, conexão.

 

Quando verbo, olhar é movimento sutil de olhos aventureiros decifrando pessoas e mistérios. Pode refletir, ainda, uma espécie de dança do pensamento, mas é ação que transcende palavras. Em Encontro íntimo, olhar é uma ponte entre o “eu” e o “outro”, mas em uma linguagem tranquila, silenciosa.

 

[falei da alma do eu lírico, ainda agora. Se eu pudesse, falaria também dos olhos do eu lírico.

Boca, língua e voz eu sei que o eu lírico tem, mas eu lírico tem olho?

Para o livro de Antonio, suponho que sim]

 

Em Encontro íntimo, esses olhos não apenas veem, mas interpretam, absorvem, expressam, criam paisagens; quando substantivo, olhar é joia guardada no cofre da memória; é a imagem congelada na retina; é retrato da emoção gravado nas linhas do rosto. No olhar, podemos encontrar a profundidade dos “oceanos que não se conquistam”, a tranquilidade dos campos – como uma das “Versões do ‘eu’”, a tempestade dos céus – os mesmos céus que seguram “a lua cheia despenteada”, como se fossem “Coisas da vida”. O olhar, em Encontro íntimo, é livro aberto que revela segredos “da janela do outro”, sem palavras.

 

Olhar o olhar, essa repetição-espelhada-clichê, que resolvi tomar como guia para esta leitura – é UMA possibilidade de crítica, pois um encontro íntimo sempre pode pressupor outros (muitos) caminhos. Neste Encontro íntimo proposto por Antonio, não deixaria de sublinhar a impossibilidade de enxergar, mesmo com o olhar “arregalado dos marinheiros do olhar / Andam vendados quando estão em terra firme; marinheiros que tomam conta de olhos vendados, “admirando tudo o que a vista alcançar”, mas não enxergam; o olhar de um eu lírico voyeur. 

 

[se o eu lírico vê, ele é necessariamente um voyeur, portanto fofoqueiro]

 

Aquele que vê de fora, como o operador de câmera, em “Língua e pele”; o olhar-casa, acolhedor, sugerido pelos versos “Quem dera morar nesse olhar, esse teu olhar abraço”; há, ainda, caminhos mais íntimos de leitura do olhar, por assim dizer. Afinal, “Estar pelado é quase tão íntimo como olhar nos olhos”; o clique-clique de fotografias na praça, que logo revelam convidativos “[dois cliques]”/ “quando dois olhos se encontram”; ou quando o olhar é “verbo bi-transitivo” e transita “um trânsito duplo / trânsitos de trânsitos”. É um mergulho na piscina da intimidade. Ao tratar de “olhar o olhar” em uma perspectiva mais íntima, a pessoa leitora cruza os olhos, aqui e ali, com o “Admirável olhar castanho” – ápice de intimidade do Encontro íntimo.

 

Olhar o olhar dita ditados e guarda uma caixa de coisas interessantes da língua. Nessa caixa, encontramos ditados embaralhados, verdadeiras joias em que “para um bom observador, um olhar já basta”; ou ainda, em “Ditados falhados” que explicam o grande equívoco de que o famoso “O que os olhos não veem, o coração não sente”, quando, na verdade, é “a ausência do olhar é o que faz o coração sentir”.

 

Olhar o olhar, a frase que acompanha a leitura aqui sugerida abarcaria, ainda, outros verbos, como enxergar, ver, observar. Extrapolando o sentido desses verbos, a pessoa leitora se depararia com a visualidade de um poema de Antonio. Em “Diálogo dos olhos”, nenhuma palavra é posta como mancha gráfica na página; vemos somente símbolos e sinais de pontuação comporem o poema. Lembrei-me de Augusto de Campos... Talvez seja um convite do poeta? Na verdade, o poema-sem-palavras diz o que propõe dizer: crie você, pessoa leitora, o diálogo. Seja livre, mas acompanhe com os olhos. A visualidade da poesia em “Diálogo dos olhos” convida a pessoa leitora a refletir, a criar, nas suas condições, um diálogo. É como se o poeta reafirmasse: cada olhar é uma jornada, uma descoberta, uma revelação.

 

Todo encontro tem um fim e o poeta previu: “Falemos então do eu que se despede aqui. O eu que é quem escreve, mas também é parte de mim.” Com essa despedida do “eu” que escreve, retomo as reflexões sobre o olhar, sobre o eu lírico, que se apresentaram para mim na leitura do livro de Antonio Neto. Penso que se “os olhos são as janelas da alma” – como diz o ditado, cruzar o olhar com outrem é, portanto, interligar almas, mergulhá-las umas nas outras, é abrir para o outro o que tem dentro.

 

[quem já viveu o privilégio da experiência?]

 

Se Encontro íntimo se tratasse de um livro de aventuras, diria à pessoa que lê: vá! leia! devore! corra todos os riscos!

 

Edmar Guirra para A bobina. Bicha que escreve, Edmar (1984) é pesquisador e professor no Ensino Básico da rede pública, na região do sertão do Rio. Em 2024, publicou O tempo curra tudo (M.inimalismos) - seu primeiro livro de poeresias, e a plaquete Fogo no parquinho (Comala).


[1] Partes desse texto foram publicadas no posfácio que acompanha o livro de Antonio Neto.

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