Já podemos admitir certo gosto por buscar nos poemas a vida do poeta, e vice-versa. Não à toa fazemos isso. É que o poema eletrifica, sem rodeios, a tensão entre autor e sujeito, invenção e biografia, fato e o que sequer existe.
A teórica argentina Josefina Ludmer fala de algo semelhante quando descreve uma “realidade produzida” e não “factual” no importante ensaio Literaturas pós-autônomas, ao dizer de “um tecido de palavras e imagens de diferentes velocidades, graus e densidades, interiores-exteriores a um sujeito que inclui o acontecimento, mas também o virtual, o potencial, o mágico e o fantástico”. Uma realidade produzida, que tensiona o vivido e a invenção – que torce o vivido em invenção – pode ser observada também no livro de estreia do poeta Leo Nunes, Está na hora de me tornar um homem sério (Minimalismos, 2023), finalista do prêmio Jabuti deste ano, na categoria “Escritor estreante – poesia”.
Ali, chegamos a cruzar algumas vezes com um personagem que tem o nome do autor, Leonardo Nunes. Como acontece no poema ato falho: “Leonardo Nunes pensa / sou um paciente / divertido / conto histórias de viadagem / uma ou outra psicose / uso palavras em pajubá”. Ou no poema clic, espécie de arte poética, que dá indícios de por onde se formula sua poesia: “Leonardo diz / todo poema é uma fotografia / guarda em si um pedaço de história / assim como todo filme é um documentário / todo poema é uma certeza / (sabemos) / toda certeza é uma luxúria”.
Este último poema, aliás, faz uma proclamação sugestiva ao equiparar certeza e pecado. Se a única certeza na vida é a morte, o único pecado seria morrer. O que funciona como uma espécie de trombeta da salvação ao contrário, se é em vida que estamos a salvos dos pecados.
Um dos eixos centrais da publicação é a narrativa de “uma bicha da baixada / uma bicha da igreja / uma bicha dos anos dois mil”, que do ímpeto inicial de apagar seus rastros, observado no primeiro poema do livro, passa, no último, a uma lista que evidencia os pormenores que se acumulam, como escreve, nos seus músculos: “o diário da princesa / o cinema pornô do centro de caxias / a psicóloga infantil / o papai de açúcar / a expressão homens que fazem sexo com outros homens”.
Leo Nunes, afinal, faz coro ao conjunto das poéticas dissidentes, àquelas que trazem para a literatura outro corpo, outras memórias, outras necessidades e, portanto, outros desejos. Quando a negação desses desejos – dessas necessidades – pode significar uma vida negada ou interrompida, não é acaso que tão frequentemente apareçam os verbos “nascer” e “morrer” ao longo dos poemas, por vezes indissociados, como nos versos “morrer no dia do meu nascimento” ou “porque como tudo na vida / só se nasce quando morre”.
Os poemas se organizam numa espécie de montagem que obedece ao ritmo de uma ironia delicada e de uma praticidade documental. E rimos de coisas que ficaram de fora da história oficializada, por exemplo, que “Sócrates era bicha” e “da Vinci? Bichíssima”. Saímos certos de que se há certezas como há pecados, já não são os mesmos.
Ana Luiza Rigueto para A Bobina.
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