Tenho quase certeza que o primeiro livro que li de Chejfec foi o primeiro livro que ele publicou, em 1990, Lenta biografía, que eu li em uma edição da Alfaguara, de 2007. Mas não estou certa de como cheguei a ele: pode ter sido a partir de algum comentário em algum livro, porque o achei em alguma livraria na Argentina ou pela recomendação de alguma amiga ou amigo. Eu tenho um amigo que foi amigo de Sergio. É assim que ele se refere a Chejfec: “Ayer despedimos a Sergio”, Mario me escreveu em uma mensagem do dia 12 de junho de 2022.
Sergio Chejfec está enterrado no Cemitério Britânico, em Buenos Aires, o mesmo onde está Tamara Kamenszain. A última vez que vi Chejfec foi em agosto de 2021, online, em uma homenagem a Tamara, organizada pela Universidad Nacional de las Artes um mês depois de sua morte, quando ele leu um texto, comovido, sobre sua relação com ela. Me chamou particularmente a atenção que ele se referisse a ela como “indecifrável”. Havia no que ele leu uma honestidade que me comoveu, assim como me surpreendeu a palavra “indecifrável”, pois jamais a teria usado em relação a Tamara, embora certamente poderia usá-la, eu mesma, para o próprio Sergio.
Talvez por isso sempre tenha me fascinado que Mario fosse seu amigo. Para escrever estas linhas, pergunto ao meu amigo se ele se lembra de como se conheceram e ele me responde que, sim, lembra muito bem, e me manda, sem eu precisar pedir, um áudio contando, com uma admiração sincera que é muito dele, sobre um primeiro encontro, em 2013. Ele estava na Universidade de Princeton como professor visitante e se encontrou com Sergio e sua esposa, Graciela Montaldo, em um final de semana, na cidade de Nova Iorque, para um passeio até o bar de uma loja de moveis IKEA para comer um sanduíche de lagosta.
Escrevi sobre Chejfec em várias ocasiões, mas não consigo recuperar bem a cronologia desses trabalhos. Em todo caso, começava e terminava com ele um breve ensaio sobre a relação entre viagem e experiência na literatura que escrevi em 2011 para uma coleção de minilivros, coordenada por Manoel Ricardo de Lima na editora Lume. A epígrafe de Chejfec, que mantive em espanhol, dizia “Eran estos decursos geográficos los que me asombraban” e devia ser de um dos dois livros que eu analisava, Los incompletos, de 2004, ou Baroni: un viaje, de 2007. Ou talvez fosse de um ensaio dele chamado “Viaje y sufrimiento”, do livro El punto vacilante, que me acompanhou de perto, a partir da seguinte pergunta: “Como seria a literatura argentina sem as viagens?”. As viagens de Chejfec me intrigavam, por isso tinha colocado o texto sobre seus livros no final: “A viagem coloca os personagens diante dessa opacidade, diante dessas vistas incompletas que nunca chegam a configurar uma experiência”. Em grande medida, eu estava falando da sensação diante dos livros mesmos, uma sensação de algo indecifrável, para voltar à palavra dele, no nível, inclusive, da frase. Eu usava Beatriz Sarlo para tentar entender: “a frase de Chejfec é sólida do ponto de vista construtivo e dubitativa do ponto de vista semântico”.
Mas não foi essa opacidade que senti ao ler Lenta biografía. Nesse texto mesmo, sobre as viagens, eu ia ao primeiro livro como querendo chegar a um porto seguro: “Vale a pena voltar brevemente a esse livro para ver como se constrói na biografia familiar a incompletude que determinará qualquer experiência em sua obra. A narrativa gira em torno das reuniões semanais de um grupo de judeus, entre os quais está o pai do narrador, sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, que se juntam para tentar recuperar, em iídiche e entre tacinhas de anis, histórias do passado [...] A origem desse narrador está ligada, portanto, à impossibilidade de recuperar a experiência que dá sentido à viagem. E nenhum outro deslocamento poderá extraí-lo dessa condição de órfão de sua própria história.” Me fascinava que Chejfec tivesse entrado na literatura contando a história desse pai que falava mal espanhol.
Acho que um pouco depois disso, ou talvez tenha sido mais ou menos ao mesmo tempo, escrevi sobre Lenta biografía, e publicamos na revista Grumo esse texto meu junto com um texto dele sobre a relação com a língua a partir da marca paterna, traduzido por Diana Klinger. Chama-se “Língua simples, nome” e tem tantas ideias incríveis que seria difícil resumi-lo aqui. É melhor que vocês o leiam. Mesmo assim, deixo este trecho, que é para mim uma lição de escrita: “A língua se confunde com o passado, mas escrever não é lembrar, e sim, pelo contrário, delimitar o que é impossível recuperar”.
Depois Mario ficou amigo dele e a partir daí Sergio se tornou uma espécie de personagem de ficção para mim, talvez porque Mario tenha se tornado um personagem dele, quem sabe com algum grau de indecifrabilidade. No mesmo áudio, Mario me conta que depois de comerem o sanduíche de lagosta foram até um museu de livros com imagens encontrados na rua, passearam um pouco pelo Brooklyn e, nesse passeio, Mario perguntou a ele como podia conseguir farinha de rosca para fazer milanesas. O passeio e as milanesas aparecem em um conto que Chejfec escreveu em que Mario foi rebatizado como Félix. Na minibio depois do conto há a seguinte observação: “Seus romances usualmente estão escritos com um estilo narrativo parcimonioso, que entretece a trama com a reflexão”. Me parece o tipo de comentário que ele próprio deve ter escrito.
Esse tecido de trama e reflexão foi me encantando cada vez mais, produzindo uma outra forma de conexão com a escrita de Chejfec, à medida que fui entendendo que ela me faz pensar melhor. Em 2015, ele lançou Últimas noticias de la escritura, que se tornou um dos meus livros favoritos e que começa assim: “Um. Este livro pode ser lido como a história de um caderninho”. A tradução é de Giovani T. Kurz, pela editora Arte & Letra, de Curitiba, e fiquei sabendo dela porque Graciela me mandou uma mensagem com a notícia de sua publicação, em dezembro do ano passado.
Mas não foi por causa desse livro que voltei neste momento à escrita de Chejfec. Estou escrevendo um livro com a minha mãe. Um livro sobre uma memória que, até certo ponto, não é minha. Para começar, escrevi a seguinte frase: Me ajudem a imaginar. De repente lembrei a quem devia essa frase. E comecei a procurar Lenta biografía. Procurei primeiro entre os livros daquela pesquisa sobre viagem e literatura e achei Los incompletos e Baroni: un viaje, mas nada dele. Depois pensei que talvez o tivesse deslocado para o bloco dos outros livros do Sergio e também não estava ali. Comecei a me inquietar, pensando que talvez tivesse me confundido – talvez nunca tenha tido esse livro, quem sabe o tenha lido em um PDF e, no entanto, lembrava da capa, lembrava da sensação de folheá-lo. Me veio uma luz e pensei que devia estar em uma zona nova da biblioteca, com livros que me dão vontade de escrever, e ali está o Últimas noticias, e nada do Lenta biografía. Uma outra iluminação veio tardia e já meio desesperada: mais recentemente tinha juntado os livros que consegui achar que foram feitos entre-línguas e colocado em um cantinho da mesinha de cabeceira. Lá estava ele, como um animal escondido, olhando para mim. Para não esquecer, escrevi logo no livro por vir: “Agradecimentos: A Sergio Chejfec”.
Depois, talvez nessa mesma noite, acordei de madrugada e comecei a pensar neste texto. Fiz algo que nunca faço: gravei áudios para mim mesma. Procurei a mensagem do Mario: Ayer despedimos a Sergio. No dia seguinte, ouvi os áudios, com um pouco de vergonha da minha voz sonolenta. Fui ouvindo e anotando. Uma coisa que eu não cheguei a gravar naquela madrugada, mas que me veio agora escrevendo é que em algum momento eu tinha perguntado ao Rafael Zacca se ele acharia uma boa ideia uma coluna periódica sobre livros “Por traduzir”: ela se chamaria assim porque seriam pequenas resenhas de livros que ainda não têm tradução ao português. Ele ficou animado e, um tempo depois, a Escola da Palavra me fez uma contraproposta, destes textos alternados com o Leo, que achei linda, com mais possibilidades. Pelos caminhos noturnos eu tinha chegado a um encontro das duas ideias. Deixo aqui a tradução de algumas linhas de Lenta biografía. Quem sabe alguém se anime a continuar:
“Enquanto ele falava, enquanto se estendiam seus proverbiais e lânguidos intervalos entre palavra e palavra, tive a impressão de que meu pai parecia se perguntar – perguntar a si mesmo ou sem se dirigir afinal na realidade a ninguém em particular – acerca de uma questão íntima e antiga: [de que modo algo intangível como o pensamento se transforma em palavras?].”
Texto de Paloma Vidal para nomes próprios
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