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Inés e Inés: disfarce disforme

Atualizado: 8 de abr.

por Bianca Gonçalves



I

Há inúmeras formas de conceber uma representação biográfica. Produções escritas se fartam de exemplos, que vão desde sensacionalistas jornalísticos, passando pelos cuidadosos apanhados históricos, até chegar em desfigurações narrativas, inclusive autobiográficas. Também são diversas as representações presentes nas artes do drama, que tomam para si diferentes repertórios, apropriando-se de variados meios, sejam eles parte de um arquivo escrito ou de uma tradição oral.


Não obstante, representar uma vida se põe como tarefa árdua que não apenas desafia o registro da verdade, como também pode revelar algo da vida de quem a representa. Nesse aspecto, não nos valemos exclusivamente de obras que apelam para a referencialidade, que se submetem ao domínio do realismo ou, até mesmo, que projetem uma intencionalidade de caráter didático. Ao abordarmos uma determinada obra artística que tome para si tal perspectiva, é preciso suspender um consenso que pesa aos olhos, denominado como “conteúdo”, e que delineia a tendência de isolá-la da “forma”, ou melhor: é necessário atentar-se à “fantasia”, como escreve Susan Sontag, que de fato exista algum “conteúdo” em obras de arte.


Tem-se, assim, uma provocação: uma tentativa de exercício contrainterpretativo, que se dispõe a combater a violência do esmiuçamento e que se deixa seduzir pela “erótica da arte” – ainda Sontag. É desse modo que busco ver e sentir Santa de Sustrato Autónomo, de Inés Sybille Vooduness (2023).


II

Pelo espaço, a bailarina se arrasta, trajando um figurino – algo plástico – cujos cortes favorecem os movimentos dos membros superiores e inferiores. Em cenário escurecido, com dois feixes de luz projetados ao fundo um contra o outro, e à frente de uma tela com projeções, desloca-se Inés a partir de um impulso pélvico, que acompanhará todo o desenvolvimento coreográfico. A mobilização dos quadris parece ser o vetor propulsor da vida que se constrói na cena, evocando, assim, uma enunciação afro-diaspórica que atravessará a performance[1].


III

A Inés aludida por Inés é a Santa Inés. Vale pensar que uma matriz filosófica afrodescendente também desperta poéticas outras, como a do tempo espiralar sobre o qual Leda Maria Martins descreve, uma curva prolongada onde tudo se forma, retorna e transforma, dissipando o fatalismo de estruturas lineares que incide sob as práticas ocidentais. Pensando que Inés, artista negra, com sua proposta, apresenta a vida de Santa Inés, inserida na tradição católica apostólica romana, constrói um retrato que não se filia a possibilidades miméticas, sendo mais uma abstração parcial do domínio da referencialidade (um problema de ordem pragmática), uma deformidade que tornará, a um só tempo, a inscrição da vida numa outra vida e a construção de um pensamento que fere certa tradição epistêmica.


IV

Em determinado momento, a performer se apoia com os joelhos numa plataforma semelhante a um disco que rotaciona em sentido horário, sobre a qual ela mesma se açoita com a longa trança amarrada no topo de sua cabeça. A reprodução do gesto do autoflagelo, cena que traduz uma moralidade cristã, parece parodiar tal espectro cultural que, em seguida, será driblado pela inserção de um novo elemento: uma fala de Erzulie Fréda Dahomey, divindade (ou loa) do vodu que se presentifica através de uma passagem do romance de Dany Laferrière, País sem chapéu (originalmente publicado em 1996, traduzido no Brasil em 2011).


A obra apresenta a saga da personagem Vieux Os (Ossos Velhos), um escritor, que retorna ao Haiti, sua terra natal e, aos poucos, passa a compreender que a identidade do país se deve muito a sua espiritualidade vodu. Hesitando entre dois mundos, o “país real” e o “país imaginado”, o narrador descobre que o lugar que é habitado pelos mortos é aquele que seria capaz de resolver os problemas sociais e os conflitos religiosos. Em Santa de Sustrato Autónomo, a deusa evocada figura a sexualidade à margem dos ideais colonizatórios eurocêntricos, ainda que também se recorde de sua posição no sincretismo haitiano.


V

Fragmento lido na apresentação em voice over em francês[2], abaixo traduzido por Helena Moreira na edição brasileira:


O que o senhor está fazendo na minha casa?

[...]

Chamo-me Erzulie Fréda Dahomey ou Erzulie Dantor, depende se quero ser branca ou preta. Amor ou morte.

[...]

Então, o meu excelente marido enviou você para me dar bom-dia...

[...]

Estou de regime, só me alimento de calangos atualmente... Então, você acabou de ver Ogou, e ele te enviou. Ele tem esses delicados cuidados com a sua querida esposa.

[...]

Devo dizer-lhe que, desde que o caro Ogou não dá mais no couro, sou obrigada a buscar parceiros entre os mortais, e eles não estão à altura, naturalmente. Posso trepar facilmente um mês inteiro sem parar.

[...]

Escute, jovem, os humanos fazem amor, mas os deuses trepam.

[...]

Digo um mês, assim, no fundo nem sei, pode ser um ano ou mais, não sei contar na medida de vocês. Sou uma analfabeta. A única coisa que posso te dizer é que, tirando Ogou, meu marido, nenhum outro deus consegue acompanhar o meu ritmo.

Quando estou no cio, posso consumir uma quantidade astronômica de humanos... Homens ou mulheres, tanto faz.

[...]

O que ele estava fazendo?

[...]

Meu marido...


VI

A emergência do Kuduro na cena confere a ênfase da abrangência afrodiaspórica da performance: é repertório de corpo da bailarina que desfaz o corpo frígido da santa e, ao mesmo tempo, cruza as margens dos nexos geográficos. O gênero remonta a uma Angola da modernidade, tecnologicamente eletrônica e culturalmente exitosa, especialmente por redefinir as linhas que balizam a movimentação dos quadris, que remontam a uma série de dançarinos pioneiros que atravessaram, feridos e amputados, o período dos conflitos militares e civis do país, e que fizeram de sua corporeidade desviante a norma de tal dança.


VII

Como sinaliza Laurence Louppe, a dança consegue ser capaz de desenvolver “um pensamento que não é parasitário de nenhum outro saber, elaborado ao longo do século [...] e que constitui [...] uma das grandes figuras da ruptura epistemológica que abalaram o conjunto das correntes de pensamento da nossa época”; portanto, faz-se do corpo em movimento o “sujeito, objecto e ferramenta de seu próprio saber” (p. 21, 2012).


O corpo poderia, então, elaborar uma biografia, ainda que se valha de um disfarce, ou melhor, de uma estética da deformidade? O investimento que a dança faz da abstração torna possível a permeabilidade do acesso aos signos mobilizados sem que estes tornem-se conteúdos a serem decifrados, além de conseguir destacar a forma, esse caractere tão marginal das tradições representativas, veiculando outas possibilidades de fazer a vida.


[1] Aproprio-me, aqui, das reflexões de Julio Cesar de Tavares, que incorpora as conceituações do pesquisador Alan Lomax, para quem os quadris “devem ser considerados uma linha de força de uma dada sociedade e, como tal, tornam-se cruciais nos agenciamentos responsáveis pelo desenvolvimento, reprodução, continuidade e adaptação da cultura” (ver Dança de Guerra: arquivo e arma, p. 59). [2]Do original: “— Que faites-vous chez moi? -- Je suis Erzulie Fréda Dahomey ou Erzulie Dantor, ça dépend si je veux blanche ou noire. L’amour ou la mort. Comme ça, mon excellent mari t’a envoyé me dire bonjour... Je suis en régime, je ne me nourris que de lézards, ces jours-ci... Comme ça, tu viens de voir Ogou, et il t’a envoyé me parler. Il a de ces délicates attentions pour sa chère épouse. Je dois te dire que, depuis que ce cher Ogou ne bande plus, je suis obligée de trouver mes partenaires chez les mortels, et ils ne font pas le poids, naturellement. C’est que je peux baiser facilement tout un mois sans m’arrêter. Écoutez, jeune homme, les humains font l’amour mais les dieux baisent. Je dis un mois comme ça, mais au fond je n’en sais rien, c’est peut-être un an ou plus, je ne sais pas compter à votre mesure. Je suis une illettrée. La seule chose que je peux te dire, c’est qu’à part Ogou, mon mari, aucun autre dieu ne peut suivre mon rythme. Quand je suis en rut, je peux consommer une quantité astronomique d’humains... Des hommes ou des femmes, je ne fais pas de diférence. Qu’est-ce qu’il faisait?


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Bianca Gonçalves é poeta, tradutora e performer. Doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp.

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