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FERVE A PISTA QUANDO DANÇA O TEXTO

Atualizado: 10 de mar.




o texto que você vai ler agora foi escrito por Natasha Felix, poeta, performer e curadora. convidei a Natasha para conversar comigo esse mês, por sua pesquisa em torno dos personagens no contexto da poesia. "o que isso tem a ver com fantasmas?", perguntei a ela. "j." foi o espectro que me chamou a atenção para os poemas da natasha. primeiro de seu nome, foi amor à primeira vista. mas a ideia do convite não veio só daí. há uns meses atrás, a Natasha postou um texto muito forte falando dos rituais a que os escravizados eram submetidos para esquecer, um deles era dar voltas em torno da árvore do esquecimento. é que a Natasha esteve em Luanda recentemente, convidada por seu trabalho como poeta. em seu texto, ela traz um pedaço de seu diário de viagem, mas também fala um pouco de Lázaro, outro personagem (fantasma?) que tem aparecido em seus trabalhos.


espero que goste.

Julya



FERVE A PISTA QUANDO DANÇA O TEXTO



Pousei em Luanda enquanto os angolanos ainda viviam o óbito de Nagrelha, morto aos trinta e seis anos, consagrado em vida como o maior kudurista do país. O Estado Maior do Kuduro, carinhosamente apelidado Nana pelos fãs, foi um dos maiores responsáveis por inscrever esse movimento cultural na história da música, além de estreitar a relação entre arte e política no território. No maior funeral do país, milhares de pessoas inconformadas ocuparam as ruas da capital para se despedir de quem há pouco cantava, o kuduro sem o Nagrelha é como uma caserna sem plantão,





No Brasil, o sentido de óbito é um só: declaração de falecimento. Em Angola, é o período de luto coletivo, como me contaria mais tarde uma das zungueiras da Rua do Mercado. Estava, portanto, impresso nos doze dias que permaneci na cidade uma fina camada no ar, um desejo de fazer vibrar para além da perda. Não foram raras as vezes que, andando pelas ruas, escutava Nagrelha vive. Nas madrugadas em que dançávamos, os joelhos flexionados, cuca na mão. Naquela altura, aprendi, eu também estava vivendo o óbito de minha avó Antenora e recebendo incansáveis visitas, histórias e presentes do outro lado do Atlântico. Isso também era


Nagrelha vive.

De cima para baixo, é a penúltima gaveta. O coveiro termina de cimentar o túmulo, equilibrado no andaime do Cemitério da Consolação. A argamassa fresca espera o último ajuste. O coveiro recolhe um graveto do chão de terra batida e aponta. O filho mais velho se apresenta, sobe o andaime, e coloca a data de morte. Deixa o nascimento para depois, improvisando. Não se lembra. A família debate, ele escreve, muda de ideia, passa as costas do braço no cimento e toma outra decisão. Seria o último gesto, não houvesse um pequeno cantil, o primeiro gole e um punhado de pessoas dando pequenos cortes na cachaça.


São maneiras de estabelecer um pacto com aquilo que vibra porque deve vibrar.


A vibração conduz o tempo, é por meio dela que se movimenta também o que gosto de chamar de suingue do texto. Texto esse que depende dos movimentos da noite, daquilo que o escuro oferece como segredo. Quando escrevo, algo inscreve de volta no ar, retorna ao corpo.

Em uma das línguas bantu, do Congo, da mesma raíz, ntanga, derivam os verbos escrever e dançar, que realçam os variantes sentidos moventes, que nos remetem a outras fontes possíveis de inscrição, resguardo, transmissão e transcrição de conhecimento, práticas e procedimentos, ancorados no e pelo corpo, em performance.[i]

O óbito dança até a pista. E o que ferve é baile, é o chão do texto. Isso é parte do processo de criação de Lázaro, personagem que vem aparecendo em meus poemas nos últimos dois anos. Lázaro, Lázaro, Lázaro. A quem tenho me dedicado a perguntar tudo o mais sobre os retornos. Sobre as formas como um corpo adoecido pode emergir. Retomar os sonhos e a mesma vigília, deslizar pelas emboscadas. São esses os milagres mistérios, diria Stella do Patrocínio. Lázaro, quem me traz o espanto. E tem montado comigo essas coreografias de um corpo que não encaminha jamais seus movimentos para onde o público espera que ele vá. Lázaro é também um kudurista. Seu corpo, dessa vez, é ingovernável.


Lázaro, esse que coleciona comigo narrativas de regresso.


Quando Saidiya Hartman narra sua viagem até Gana, em Perder a mãe, conta que os escravizados eram submetidos a rituais, banhos, chás, magias, para esquecerem seus parentes, amores e a terra. Em Ajubá, um estudante narra que aqueles que seriam escravizados eram conduzidos até uma mata que induzia ao esquecimento. Ou que davam voltas na chamada árvore do esquecimento antes de embarcarem. As mulheres, sete voltas. Os homens, nove. O estudante brinca: estratégia não funcionou, Saidiya havia voltado. No que ela responde “isso não faz sentido. Por que eles querem que os que esqueceram retornem?” O estudante se dedica a sorrir. Essa é uma história contada apenas para estrangeiros. Seria mentira dizer que pensei nessa passagem quando estive no Museu Nacional da Escravatura, no Morro da Cruz, em Luanda. Mas tive a chance de pensar nela enquanto subia a pequena colina até a casa para onde eram levadas centenas de pessoas. Não fosse a imponência a memória, a quem devemos tanto, a casa pareceria quase inofensiva, de longe, talvez. É um lugar lindo. Sobretudo o imbondeiro imenso em frente à casa. Seu tronco, coberto de pregos enferrujados, me dizia menos do que eu gostaria. Só deixava pistas entre a ferrugem e o tempo. As histórias todas ali, dando voltas e voltas. É possível pensar, aqui, que a beleza nos conduz até ela própria, sim, mas também à distração. Mas também que uma paisagem não é nunca uma paisagem. E que o terror convive com a beleza. Que a distração, afinal, é para poucos. Já outros, mantemos o olho vivo, o faro fino, sempre. E o estudante sorrindo.[ii]

Lázaro, invariavelmente, começa católico, filiado ao Evangelho Segundo João. Estamos no capítulo 11 mas não permanecemos aqui. A figura adoece, e, após quatro dias sepultado, é convocado à vida por Jesus. Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo. Mas, se andar de noite, tropeça, porque nele não há luz. Esta é a pedagogia da madrugada, das errâncias. Sem qualquer escolha, sua volta é determinada pelo desejo divino, jamais por sua própria vontade. A madrugada permanece no meu Lázaro, faz bom uso de seu corpo.


Me interessa justamente o que Nicanor Parra faz no poema O anti-Lázaro. Parra desafia Deus, convencendo Lázaro a permanecer morto.


Afinal de contas, o que você ganharia retornando?


continua a dormir homem continua a dormir

sem as ferroadas da dúvida

senhor e amo do teu próprio caixão

na quietude da noite perfeita

liberto de inutilidades

como se nunca tivesses estado acordado[iii]


Lázaro volta, por fim. À procura de seus rituais, de suas próprias magias. Qual textura, de que maneira a pele do texto se firma na pele de Lázaro. De que adiantaria voltar, sob quais circunstâncias. Quais os cenários, quais os pactos. O que é inegociável, quais os sonhos, que música toca quando seu corpo pede mais. Com quem você quer falar, Lázaro. O que você não pode esquecer. Como você prefere fazer o corpo dançar.


[i] Leda Maria Martins, Performances da oralitura: corpo, lugar da memória, 2003, p. 64. [ii] Trecho do diário de Lázaro postado no Instagram, 15 de julho de 2023. [iii] Trecho de “O anti-Lázaro”, de Nicanor Parra, em Hojas de Parra (1985), tradução desconhecida.

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