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escrever com fantasmas

Atualizado: 10 de mar.


escrever com fantasmas

notícias sobre o terceiro módulo da formação desvio



1. “um fantasma”


em infância em Berlim por volta de 1900, Walter Benjamin nos conta um episódio em que a casa onde morava com os pais foi invadida durante a noite por ladrões. no dia anterior, nosso pequeno escritor, à época com sete ou oito anos de idade, havia sonhado com um fantasma “que agia num cavalete de madeira, onde sedas estavam penduradas”.[i] no sonho de Benjamin, esse cavalete se confundia com um canto do quarto onde dormiam seus pais, no qual a mãe pendurava seus roupões. para além da impressionante correspondência entre o sonho de Benjamin e a realidade vivida em vigília – o fantasma roubava as sedas do cavalete, assim como os ladrões que invadiram sua casa, fazendo com que seus pais entrassem no seu quarto durante a noite –, esse espaço “conhecido, ainda que inacessível”,[ii] o quarto dos pais, o canto oculto dos roupões pendurados, na mente infantil do filósofo, se desenhava entre a clareza e o ocultamento, entre a luz do paraíso e a escuridão do inferno. havia em torno dele um mistério, que a imaginação dessa criança, que agora escreve, desvenda, ou melhor, imagina, com um fantasma – tipo de aparição que guarda consigo, inevitavelmente, uma ausência.


2. “quem é ela, quem é ela?”


o terceiro módulo da formação desvio, “poesia e narrativa”, foi mediado pela poeta, performer e atriz Luiza Romão. ao longo dos quatro encontros, discutimos alguns elementos que fazem parte ou dialogam com o universo das narrativas – personagens, tempo, espaço, conflito, memória, performance. o exercício da primeira aula foi criar uma personagem a partir do procedimento “quem é ela, quem é ela?”, uma ficha elaborada por Luiza, com questões mais simples, como “qual é o nome da personagem?”, e outras mais complexas, como “o que ela canta quando toma banho?”, “um medo aleatório?”, “como ela vai morrer?”.


antes, porém, lemos alguns poemas juntos, entre eles “Memória amorosa” e “Carta”, de Adélia Prado. no primeiro, o famoso Jonathan surge como “bonito” e “mudo”, adjetivos que causam certa estranheza por estarem lado a lado – depois da beleza, característica tão cheia de parcialidade, não costumamos esperar pela mudez, pelo silêncio, característica aparentemente mais imparcial. por isso há certo mistério em torno de Jonathan – como há em torno de Deus, outra personagem muito presente nos poemas de Adélia Prado. o eu lírico materializa Jonathan aos olhos do leitor por partes do corpo também inesperadas: curva do lábio, testa, nariz, dedos com unhas. o poema encena certa dinâmica amorosa de tentativa, mas ao mesmo tempo incapacidade de apreensão do outro: não conseguimos imaginar Jonathan direito. ele é mudo, não se despede nunca e se esconde por trás de moitas de murici, como um fantasma.


em “carta”, fica ainda mais claro que o que sabemos sobre Jonathan vem do eu lírico, de sua percepção, do que acontece com ele na interação com seu objeto de desejo. por causa da ausência de Jonathan, do seu silêncio, sabemos que o eu lírico, uma mulher, tem medo, está entediada com o cargo na paróquia, cismou de arrumar os cabelos como certas cantoras, não quis saudar o Embaixador e já se surpreendeu grunhindo, beijando o próprio braço, louca de saudade. conhecemos quem fala pela ausência de quem se fala. afinal, quem é a personagem? ou melhor: quem brinca de se vendar e se desvendar?


nos “epitáfios alucinados” de Mónica Ojeda, escritora equatoriana, os fantasmas, em sua maioria, são personagens da tradição literária ocidental, como Clintemnestra, Ifigênia e Desdêmona. nos poemas/epitáfios escritos em primeira pessoa, as personagens se apresentam pelas formas através das quais morreram: “Floresci na adaga da sombra de meus filhos/ Todo criador percorre meus jardins/ e deixa-se morrer/ nas mãos do que fez” – poema/epitáfio “Clintemnestra”.[iii] mas o que assombra a narradora protagonista do livro que guarda esses epitáfios, História do leite, são os aprendizados sobre amor e violência que adquirimos no seio familiar. é também com esses fantasmas que escrevemos.


3. “mas eu já não sou eu/ nem já é minha a minha casa”

no segundo encontro do módulos, discutimos de que formas incorporar conflitos em poemas narrativos. mas também observamos, nos textos poéticos lidos em aula, como aspectos espaço-temporais podem contribuir para a elaboração imagética e sensorial desses conflitos. um poema sem título de Gregório Duvivier, por exemplo, encena, comicamente, o conflito pessoal de abordar ou não alguém por quem a gente se interessa em espaços públicos como o mercado. com quebras estranhas do verso e sem pontuação, o poema traz um eu lírico cujo fluxo de pensamento acelerado fica imaginando o que poderia dizer para se aproximar de quem deseja a cada setor do mercado: “se o leite desnatado por acaso caísse/ da sua mão no chão da seção de laticínios/ bastava para eu enxugar o piso encharcado/ de batavo e perguntar seu nome e fazer/ alguma piada envolvendo a expressão chorar/ pelo leite derramado e nós dois teríamos/ uma longa-vida eu e você (...)”. nesse poema, conhecemos a personagem, o eu lírico, pelo conflito. e o que faz com que nós, leitores e leitoras, visualizemos esse conflito é a maneira como os espaços do mercado interferem nos pensamentos da personagem: “(...) mas você já está/ no setor de limpeza e eu penso que se espirrasse/ água sanitária no seu vestido eu poderia/ dizer sou advogado e isso vale um processo/ ou se você tivesse dúvidas quanto à validade/ de um queijo minas eu sei tudo sobre queijo/ minas (...)”.


em “romance sonâmbulo”, de García Lorca, também o espaço contribui para a formulação de conflito, mas de um jeito muito diferente. bastante ritmado e sonoro, o poema de Lorca traz uma paisagem que, embora seja fundamental para a construção de uma atmosfera de mistério, não se confunde com os pensamentos das personagens. o maior detalhamento dessa paisagem, feito por um narrador em terceira pessoa, produz uma temporalidade mais lenta e densa: “Verde que te quero verde./ Verde vento. Verdes ramos./ O barco sobre o mar/ e o cavalo na montanha./ Com a sombra na cintura,/ ela sonha na varanda/ verde carne, cabelo verde,/ com olhos de fria prata./ Verde que te quero verde./ Debaixo da lua cigana,/ as coisas a estão olhando/ e ela não pode olhá-las”.


é interessante que esse poema carregue no título o nome de um gênero narrativo, “romance”, o que nos leva de volta ao título do terceiro módulo da desvio, “poesia e narrativa”. mas além de “romance”, esse poema é “sonâmbulo”, está entre o sono e a vigília – e talvez por isso possamos voltar também aos fantasmas. a morte ronda esse poema de Lorca. aparece, por exemplo, num diálogo em que um dos personagens está muito ferido: “– Compadre, quero morrer/ decentemente em minha cama./ De arma branca, pode ser,/ com os lençóis de cambraia./ Não vês a ferida que tenho/ do peito até a garganta?/ – Trezentas rosas morenas/ leva teu peitilho branco./ Teu sangue respinga e cheira/ ao redor de tua faixa./ Mas eu já não sou eu./ Nem já é minha a minha casa”. os dois últimos versos desse trecho, que formam um dos refrãos do poema, têm um tom fantasmagórico, porque quem fala se define pela negação, por alguma ausência de si e de um espaço que já foi seu, mas também por alguma afirmação que parece restar da repetição desses duplos – “eu/eu”, “não/nem”, “já/já”, “minha/minha”, “sou/é”.


4. “estou diante de você sem que saiba”


a princípio o terceiro módulo da desvio nada tinha a ver com fantasmas. mas depois de tanta insistência nessa imagem, ainda que talvez não tenha sido de propósito, fiquei me perguntando o que isso poderia dizer sobre narrativa. ou sobre poesia e narrativa. no primeiro caso, penso que criar personagens, conviver com seus medos, manias e obsessões, por exemplo, pode ser algo próximo de lidar com fantasmas – de si, de outros. ficcionalizar é, entre outras coisas, perceber as tantas camadas possíveis, virtuais, espectrais, de pessoas, paisagens, objetos, épocas, cheiros, cores, memórias, etc. mas isso diz também sobre poesia. na última aula do módulo, falamos sobre memória a partir do documental. Luiza preparou uma tradução livre de partes de Hospital del aire, livro de ficção de Ernesto García López que aborda um acontecimento real: um acidente aéreo que aconteceu em Madrid em 1983.


no avião, havia um grupo de escritores e artistas que voltavam pela primeira vez à América Latina, depois de anos de exílio forçado pelos governos totalitários de seus países, para o I Encuentro Hispanoamericano de Cultura, na Colômbia. resumindo, o livro traz fragmentos de notícias sobre o acidente, alternados com poemas que exploram o assunto por outros ângulos. as notícias apresentam uma linguagem mais impessoal sobre os acontecimentos, claro, enquanto os poemas focam em uma perspectiva talvez mais subjetiva. mas, digo “talvez” porque essa subjetividade não é, ao mesmo tempo, muito localizável. por exemplo, um dos fragmentos de notícia da “Parte 1. Voo 011 da Avianca” apresenta hipóteses sobre a causa do acidente. em tese, “a parte traseira do avião chocou-se com um montículo situado entre as localidades de Loeches e Mejorada del Campo”.[iv] o poema que acompanha esse fragmento começa assim: “Costa./ Frankfurt, direção Bogotá// Estou diante de um sedimento/ de algo que se dói de si/ de uma menina que vela o cadáver/ de uma febre morna nas pernas/ de um plantio/ um arrozal/ um delta onde desemboca o rio manso/ uma melodia articulada depois da qual se tornam homens/ as mulheres e mulheres os homens (...)”.[v]


parece muito que quem fala é o piloto do avião, mas a princípio ninguém da tripulação tinha “Costa” no sobrenome.[vi] outro mistério diz respeito a “Frankfurt, direção Bogotá”, uma vez que o avião saiu de Paris e caiu antes de chegar ao destino final, Bogotá, quando tentava pousar em Madrid, onde faria sua primeira escala. então, quem fala no poema? que itinerário é esse? localizamos algumas correspondências entre a notícia e o texto ficcional: o piloto, a cidade de destino, o “sedimento” com o qual o avião teria colidido, os cadáveres, uma paisagem vista de cima. por outro lado, há também informações que nos confundem: quem é “Costa”? por que Frankfurt? novamente, estamos diante de fantasmas.


outra questão desse livro parece ser a insuficiência da linguagem frente às tragédias: “Estou diante de uma palavra que não consola/ que não ronda/ que envenena com mentiras/ que respira o mecanismo dos mortos// Estou diante do não/ do sim/ do acaso/ do quanto não somos capazes de escavar/ (...) do desejo que irrompe em desamor/ do desamor que arrasta solidões/ de solidões que encerram a criatura da angústia// Estou diante de você sem que saiba –”.[vii] o último verso desse trecho, assim como o que destaquei do poema de Lorca, tem um tom fantasmagórico. dessa vez, é a afirmação da presença, junto à negação, ou ausência, de uma consciência sobre ela, que parece dar forma a esse tom. o eu lírico, que é nomeado no poema, mas não localizável entre os destroços do acidente, diz que está diante de mim, de você, sem que saibamos. ao mesmo tempo, ele diz, nos informa, onde está. lidamos, então, com seu espectro, com sua presença ausente, assim como a dos ladrões fantasmas de Benjamin, por um jogo de linguagem e de escrita. talvez seja nesse sentido que a fantasmagoria diga também sobre a poesia.







[i] Walter Benjamin. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 118. [ii] idem, p. 117. [iii] Mónica Ojeda. História do leite. São Paulo: Jabuticaba, 2022. [iv] Ernesto García López. Hospital del aire. Barcelona: Candaya, 2022. trad. livre de Luiza Romão. [v] ibidem. [vi] “O capitão era Tulio Hernández, de 58 anos (...). O primeiro oficial era Eduardo Ramírez, 36 anos (...). O engenheiro de voo era Juan Laverde, de 57 anos (...). Havia também dois engenheiros de voo substitutos a bordo: Daniel Zota e Julio Florez Camacho (...)”. disponível em: http://desastresaereosnews.blogspot.com/2020/11/aconteceu-em-27-de-novembro-de-1983-181.html. acesso em 21 jun. 2023. [vii] Ernesto García López. Hospital del aire. Barcelona: Candaya, 2022. trad. livre de Luiza Romão.


Obra da arte do post: Gravura do Hammersmith Ghost na revista Kirby's Wonderful and Scientific Museum, volume II (Londres, 1984).

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