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Bate-bolas: a fantasia como vingança, a máscara como expurgo

Atualizado: 2 de abr.


Clóvis nos trilhos de Santa Cruz. Acervo Revista Manchete. 1978.

 

A infância carioca dos subúrbios era assombrada por um personagem, em especial, nos dias de carnaval: os Bate-bolas ou Clóvis.


Digo que era somente pelo fator do assombro, pois as turmas há alguns anos voltaram a correr os bairros com suas vestes cada vez mais coloridas e atraentes, produzindo encantamento aos que olham. Mas o elemento do assombro, este acredito que esteja adormecido há mais de 20 anos. E isso não é algo que me deixa nostálgico, apenas com uma estranha sensação de ausência de medo ao andar nas ruas em dias de Carnaval. Essa falta traz uma vontade de sentir de novo um sentimento de assombro, ausente agora, essa fronteira de atração e repulsa que era fundamental no jogo de mascarados e não-mascarados.


O que mais me interessa é observar as turmas de Clóvis ou Bate-bolas como agentes de ruído e conformidade, numa analogia que anda em bando, essencial no fato deles existirem nas margens da cidade. Ainda que na vestimenta sejam semelhantes, há uma desarmonia visível no grupo devido ao modo de caminhar, de comportamentos e personalidade de cada um que optou por estar na mesma turma. O bando anda pronto para a sobrevivência coletiva caso ocorram problemas ou brigas isoladas, mas cada membro possui a sua liberdade de agir enquanto Bate-bola.

 

A energia densa é canalizada pelas figuras de máscara e fantasia em diversas comunidades, e nas mais diferentes sociedades, desde o início dos tempos aos dias atuais –  nos locais em que essas tradições ainda são mantidas. E são preservadas pelas funções psicossociais que elas possuem e que são despertadas ao chegar o momento de atuação dos personagens. Geralmente estes momentos estão vinculados a rituais de passagem, amadurecimento ou de um evento marcante na vida de indivíduos que fazem parte daquele grupo.

 

Em alguns povos nativos, quando o curandeiro ou feiticeiro precisava exercer um trabalho de limpeza pra eliminar algum mal que pairava sobre sua comunidade, ele poderia fazer uso de uma máscara ou de apetrechos de fantasia para que esse mal fosse afastado de forma mais eficiente e duradoura. Ou então ele escolhia alguém capacitado para exercer a função e mediação entre o corpo e a forma sem matéria.

 

O uso das máscaras como defesa também assusta quem usa elas como ataque: quem faz magia teme sempre a magia que podem lhe fazer. O reconhecimento do poder do outro é o mesmo que energiza o poder individual ao lançar algum preparo de substância ou palavras carregadas. A experiência das turmas de bate-bola, na minha visão, está atrelada diretamente a diversos rituais que, pela distância, se desvincularam da fonte – mas que conservam seus pontos de conexão mais intensos. Não é difícil encontrar em pesquisas a identificação dos adereços em outras culturas populares, religiosas ou pagãs, como o palhaço da Folia de Reis, o Caboclo de Lança dos Maracatus, os Papangus do Nordeste brasileiro, a cultura das máscaras do teatro japonês e em manifestações de dança cerimonial dos egunguns na Nigéria.

 

A intenção aqui não é traçar uma origem universal, até porque isso soaria como algo pretensioso e que dificilmente chegaria a algum resultado. Quando se fala de Clóvis ou Bate-bolas, estamos localizados nos subúrbios da Zona Oeste Carioca, entre os anos 1930 e 1940, precisamente no bairro de Santa Cruz. É um caldo que tem, na sua receita, imigrantes japoneses, portugueses e alemães que viviam nas vilas militares da Base Aérea e nas proximidades junto aos trabalhadores do Matadouro do bairro, num carnaval que era considerado o mais impressionante do Rio de Janeiro, com carros alegóricos autorais, máscaras artesanais e fantasias dignas de um filme expressionista.


Essas fantasias iriam continuar produzindo o assombro que citei, pois elas sobreviveram até os anos 1990 e me encontraram em Bangu, sedento por figuras aterrorizantes como Diabos, Mortes com foice, Bruxas, Pais João, Gorilas, Carrascos e claro, os Clóvis. A sensação me fazia ter arrepios, e eu saía de casa justamente pra ter esse prazer de esbarrar em fantasias desse tipo. Nessa época, os Bate-bolas podiam ser qualquer uma dessas fantasias: muitos usavam o termo pra qualquer um dos mascarados, até porque vários deles usavam as bexigas como arma de punição e adereço, independente da roupa ser de  Bruxa ou de Gorila. As bolas de plástico que imitavam as bexigas eram consideradas coisa de criança, fantasia que se preze era com bexiga animal, um bastão de madeira (!) ou um porrete de plástico vendido em lojas, que batia firme e às vezes ganhava um banho de pimenta pra marcar com mais capricho o corpo das vítimas.

 

A tensão começava nos dias que antecedem a chegada da festa. Já sabíamos quem estava preparando turmas e assim podíamos nos preparar para o embate. Duas semanas antes do carnaval e as ruas do Conjunto Habitacional já estavam sendo ocupadas por saídas surpresas de bate-bolas, desgarrados ou em pequenos bandos. As turmas que tinham muitos componentes e faziam um trabalho de cuidado estético visual com mais afinco só saíam no carnaval mesmo, no máximo faziam um teste poucos dias antes como ensaio.


Gorilas são bate-bolas? Acervo Museu de Bangu. Anos 1990.

 

Como se forja um bate bola?

Eu pude testemunhar por dois carnavais o nascimento de uma turma de Bate-bolas na casa da minha Vó Marly. Meu tio Luís Cláudio, na época com seus vinte anos, criou uma turma com os amigos e foi algo como ter um barracão de escola de samba disponível diariamente. Meu tio fez os esboços das vestimentas, do chapéu até a sapatilha (hoje as turmas usam tênis de marca), croquis com as camadas e detalhes, indicação das cores de cada listra da roupa e dos acessórios. O trabalho da costura dos bate-bolas foi passado pra costureira que já tinha experiência, mas ele desenhou cada bolero com lápis pela base molde que ele mesmo tinha feito (intertela), a ser coberta com caneta color preta. Em 1994, o tema era o pôster da animação da Disney A Bela e a Fera, já em 1995 foi o Gnomo, uma ideia original que fez o bate-bola mais comentado daquele ano em Padre Miguel. Depois disso, se cobria o desenho pelos traços usando linha de costura reforçada com paetês e miçangas. E eu, de tanto acompanhar, também entrei na ajuda de bordado do trabalho. Cada um deles foi feito à mão e passou pelo mesmo processo de cobrir com os minúsculos enfeites pra que formassem a imagem nas cores exatamente iguais ao desenho escolhido. Enquanto isso, outro processo acontecia na área próxima da cozinha do apartamento: a preparação das bexigas de boi!

 

Depois de inúmeros banhos e mãos de tinta, as bexigas ficavam penduradas no varal pra secar. O cheiro era uma mistura de cozido com urina velha. Ainda sinto o aroma só de lembrar: era uma sensação de crueza animal latente. Os banhos e dias de molho eram justamente pra que o cheiro amenizasse um pouco, até chegar num nível suportável pra se carregar as bexigas pra todo lado, penduradas numa base de madeira e presas por um barbante de corda, prontas pra bater no chão e nas costas de quem estivesse no caminho, principalmente os colegas e conhecidos. Os inimigos eram bem-vindos também, é claro.

 

Não havia, como hoje, as saídas de turmas com fogos, churrasco e cerveja. As turmas simplesmente saiam pra rua, e era bom você não estar no caminho. Naquele momento, a onda era quanto mais pano melhor, e assim era mais invejada a vestimenta. A da Turma do Gnomo, por exemplo, tinha 120 metros de pano e pesava uns 30 quilos no corpo. Era o modelo de saia rodada que arrastava no chão, com direito a luvas, meiões de crochê personalizados, leques e outros adereços mais. Essas eram as características da área em que morávamos, a estética visual mudava de bairro pra bairro.


As crianças podiam ser mascotes das turmas, geralmente filhos e parentes dos membros, e recebiam uma fantasia igual pra andar durante o dia com eles. Esse sonho não pude realizar, ser filho único de mãe recém-divorciada não é das fantasias mais libertadoras.


Dois membros da Turma do Gnomo em Bangu, Luís Cláudio (direita) e Adriano (esquerda). Acervo de família. 1995.

 

A violência não é o oposto da paz

A frase acima é um critério importante pra entender as turmas de Bate-bolas e os desdobramentos que ocorreram no início dos anos 2000, quando a existência dos Clóvis esteve ameaçada. Uma lei proposta por um deputado na ALERJ tentou proibir a venda de máscaras durante o carnaval. Essa lei estadual não foi pra frente, mas a lei das facções do crime sim. Devido aos inúmeros acertos de contas com fatalidades entre as turmas, algumas facções proibiram o uso de Bate-bolas e assim durante anos ficamos sem vê-los na Zona Oeste.

 

Com o aumento de casos de violência gratuita, vivemos hoje uma verdadeira campanha de ojeriza aos atos de violência civil. Essa violência gratuita é algo indiferente para os seus criadores e os que usam esses casos como plataforma de valores conservadores, mas o maior retrato de uma sociedade fragilizada é justamente quando a violência que ela produz não pertence aos seus meios de vivência em comum: uma violência não-ritualizada, gratuita pois não transforma seus participantes, exceto por uma dor que fracassa em formar sentido e por isso tritura todos ao redor. A decadência das turmas de Bate-bola em produzir assombro está ligada ao período em que diversos membros utilizam o anonimato das máscaras para produzir violência de morte. As bexigas deram lugar às armas de fogo e a violência que está intrínseca nas fantasias e em muitas brincadeiras do carnaval suburbano deixaram de ser um expurgo e uma epifania para serem um extermínio e um apagamento do outro (o espelho do semelhante no jogo da fantasia). As brigas entre turmas começaram para eliminar aquele que já se sabia quem era debaixo do personagem. O eu da fantasia, ao matar o correspondente da sua própria realidade enquanto encarnado, rompe a fronteira entre atração e repulsa pra ficar somente com a confusão consciente.

 

E se a ilusão não é mais permitida, só ficamos com a ignorante certeza de que sabemos o que somos. Aí o jogo das diferenças é fechado: já não há pra onde andar no tabuleiro se as peças não atuam em oposição constante.


O espaço entre o branco e o preto do xadrez é o que leva ao movimento, e quando isso desaparece as dualidades idem. O jogo social a que as turmas de bate-bolas e os brincantes aderiam era praticado com a mesma máxima do esporte de lutas, em que a violência é permitida enquanto os brincantes aceitam, inclusive, serem castigados pelas bexigas.


Nenhum boxeador digno vai acertar um golpe no seu adversário fora do ringue. Esse fato histórico de apagamento do outro também se deu em outras manifestações populares dos subúrbios como os bailes funks e as disputas entre bairros rivais, em que a violência praticada como rito e descarga de repressão deu lugar a uma série de atos de eliminação da vida.

 


Turma Brasileirinhos de Realengo. Acervo pessoal. Anos 1990.


Provocação e o desejo de ser percebido

O corpo de uma criança em formação é indefeso. Por isso mesmo torna-se o corpo possível para encarar certos desafios e demandas dentro da vida suburbana. Quando ficávamos nos portões dos prédios aguardando as turmas que certamente iriam passar por ali, já estávamos num estado de êxtase e berrando as músicas que sabíamos pra provocar e chamar a atenção dos mascarados. Quando apareciam, a corrida se iniciava pra ver quem conseguia fugir e quem caía nas mãos dos Clóvis.


Quando um deles dizia o seu nome com uma entonação cheia de deboche, era bom ter pernas rápidas pra correr. O sujeito conhecido dentro das turmas (alguém que sabia seu nome e te reconheceria) era muito mais temido do que os fantasiados que não sabiam nada de você. A identidade anônima era uma via de mão dupla. Protegia quem estava na fantasia, mas também era um exercício de dúvida. Pra quem estava exposto nas ruas e sem máscara, adivinhar quem estava fantasiado, ou seja, revelar o nome do seu algoz, era perder completamente o assombro do instante. E o desmoralizado tentava de todo modo nos enganar sem abrir mão do disfarce, mesmo quando era tarde demais.

 

Havia casos de inversão também, quando a maioria da turma não te conhecia. Aí você bem poderia argumentar uma defesa ou saída, como blefe, e fugir da sanha.


O problema era encontrar aquele colega que já não ia muito com sua cara ou que tinha rixas por acertar nesse momento propício. Podia ser uma briga antiga ou mesmo uma derrota na bulica do jogo de bola de gude. Tudo era motivo pra deixar as contas novamente equilibradas. Haviam pouquíssimas mulheres que vestiam um bate-bola, muito menos turmas unicamente de mulheres como hoje vemos. Esse era um processo em que a masculinidade estava completamente na base de aplicação e também era um motor de produzir assombro, ainda que ao vestir a fantasia esse personagem estivesse fundido aos outros que aparecem na atuação e no improviso, de acordo com quem você se permite ser como um mascarado. Alguém que está sob a proteção e a condução de um ser que lhe dará vida enquanto o jogo permanecer sendo brincado. O fato de meninas e mulheres não vestirem com frequência as vestimentas não as impedia de participarem das provações com a gente nas ruas e da expiação das bexigas.

 

Não é novidade que muitas demonstrações masculinas de afeto entre homens passam por gestos de violência como reconhecimento de companheirismo. A lógica da agressividade possível pela confiança no outro exerce um papel de permissividade que amadurece gradualmente através de gestos que exibem os valores que são partilhados. Já com as meninas, muitos utilizavam o momento da expiação para coroar um desejo não realizado de aproximação e intimidade.

 

O expurgo não produz morte, produz renascimento, ressurreição e renovação nos caminhos da vida e da natureza dos que passam por ele e chegam ao fim da sua jornada. Essa é a simbologia das máscaras suburbanas. A fantasia é a possibilidade de vingar a si mesmo e aos outros que contribuem para o bom funcionamento do jogo. Enquanto se aceita participar, estamos fazendo parte do enredo. Com complexidades, é claro, porque a vilania está presente e a servilidade está em disputa. Mas ela não é nunca estagnada e não exerce poder se ficar somente de um determinado lado: a passagem de vencido pra vencedor é fluida. A máscara é o expurgo dessa operação enquanto esconde seu iniciado e nunca arrebata por completo o que não usa a máscara. E, às vezes, permite inclusive a fuga com a promessa de um novo encontro, para uma melhor performance – que poderia ser ainda mais bruta.

 

O ciclo se fechava na passagem futura apenas até o próximo ano. O fato da experiência e do espírito de combate serem transformadores é parte da expectativa que é gerada. Ao fim do carnaval, o personagem não morre, é posto em descanso, na vigília, e assume novamente as sombras que lhe são características na quarta-feira de cinzas.

 

Nunca vi um bate-bola fora do carnaval e não acho que quem saiba o poder de sua figura sinta-se confortável em assumir essa função em dias atípicos.

 

As máscaras possuem repulsa e atração. O desejo e o devir em ser um personagem temível e abominável surge junto ao temor de que eles nos façam mal. E isso é mais do que necessário nos ritos de passagem para qualquer pessoa situada de maneira incontornável numa comunidade fechada em seus próprios mimetismos. Dos nossos antigos ancestrais, a Máscara é aquele que está sempre prestes a se revelar, mas nunca por inteiro. Nunca ao ponto de sabermos se o reflexo que vemos de nós é um Arquétipo ou a Panacéia para o fim dos nossos egos atemporais.


Clóvis de antigos carnavais em Santa Cruz. Acervo NOPH. Sem data.

 

  

Esse texto é dedicado ao pesquisador Gabriel Billy, que possui um trabalho fundamental sobre os carnavais de Santa Cruz, e ao meu Tio Luís Cláudio, por relembrar aquelas tardes de fantasias e imaginação.

 


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