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a colecionadora de oráculos – ou variações sobre a escuta

Atualizado: 10 de mar.



o texto que você vai ler agora foi escrito por Mariana de Oliveira Campos, astróloga, professora e pesquisadora. convidei a Mari para conversar comigo dessa vez, pelas aproximações que ela desenvolve entre oráculo, linguagem e poesia em suas práticas. é que por conta do módulo oferecido pelo Capilé no curso de formação desvio, poesia e ritmo, eu vinha pensando muito no componente mágico da escrita poética. esse texto não veio ainda, eu sei, mas nem sempre as coisas saem dentro do esperado. oráculo e magia não são a mesma coisa, mas ambos lidam com algum nível de mistério, de linguagem, de destino – como o tempo das coisas, como o tempo dos textos. por sinal, o texto da Mari fala sobre tipos de oráculos, falhas geográficas e divinas, o que dizem ou não os cantos dos bem-te-vis – mistério, linguagem, destino.


espero que goste.

Julya



A colecionadora de oráculos – ou variações sobre a escuta


Olha lá, cantadô, olha lá

É bonito ver um gago grego gaguejar

Xangai


Entre tantos métodos de adivinhação que existiram, havia um, na Antiguidade, que se não existisse, Borges poderia ter inventado. Por escrito, se registravam os pronunciamentos dos grandes oráculos desse período, Delfos, Dodona. Tais registros eram reunidos por um colecionador de oráculos, que, a partir dessas sentenças e situações divinatórias realizadas no passado, respondia as questões que se apresentavam a ele. Esse tipo de adivinho, o colecionador de oráculos, um metaoraculista, é o que primeiro apresento aqui, para listar outros tipos de oráculos, de relatos de consultas feitas aos oráculos, por mim e por outros, e também dispor algumas ideias sobre a relação do oráculo com a poesia, enquanto modo de estar na linguagem, mais precisamente, na língua.


Oráculos que são feitos de letras


Oráculos que são feitos de letras. A sicomanicia, na qual se escreve o que desejamos saber na folha de uma árvore e esperamos que a folha seque para observar o que aconteceu com o que foi desejado. A zairagia, que consiste em vários círculos, uns dentro dos outros, em cujas bordas estão desenhadas as letras do alfabeto, e ao girá-los, palavras se formam. A giromancia, na qual uma pessoa gira no próprio eixo até ficar completamente tonta, aproximando-se, nesse estado, de letras dispostas no chão, geralmente desenhadas na areia, das quais se tiram os presságios; A bibliomancia, na qual, ao acaso, abre-se um livro. O Homeroráculo, no qual se lançam dados cujos números correspondem a uma lista que contém versos da Ilíada ou da Odisseia. A este último, recentemente, eu fiz uma consulta.


A pergunta que fiz ao Homeroráculo foi se eu iria adiante com meus estudos sobre oráculo, linguagem e literatura. Os dados sortearam os números 2 – 3 – 4, que, nos Papiros Mágicos Gregos (PGM), fazem referência ao Canto 19, verso 107, da Ilíada, cuja tradução de Christian Werner, que eu dispunha rapidamente ao lado da minha mesa é a seguinte: “Embusteiro, não levarás a termo teu discurso”. Insatisfeita com a resposta, consultei outra tradução, agora de Frederico Lourenço: “Vais querer mentir sem ter cumprido a tua palavra!”. Embusteira, mentirosa e estou aqui. Contra esse oráculo? E com ele. Fiquei incomodada pela resposta, já que minha primeira leitura tomou o sentido de negação, me percebi provocada e me senti impelida a provar (para quem?) que o oráculo se enganava, que a pergunta que fiz expressava, sim, a minha vontade verdadeira. Assim, decidi reler todo o Canto 19, para compreender o contexto desse verso. Eram palavras de Hera que desafiavam Zeus, maliciosamente, a realizar um juramento, isto porque um juramento feito por Zeus é imperturbável, suas declarações, como seus raios, são irreversíveis. Com isso, o verso 107 passou de um sentido negativo à solicitação de um juramento. Pensei que jurar poderia me levar a um estado olímpico inabalável, que fulminaria a interrogação da minha questão, restando a afirmativa. Mas me senti ridícula sobre como o faria (com as mãos sobre a Ilíada? Apertando três dados contra o peito?). Não fiz nada e já estava tudo feito.


Oráculos que são feitos de falhas


Oráculos que são feitos de falhas. O aruspício, que é feito a partir da entranha dos animais. A hepatomancia, semelhante ao anterior, mas feito especificamente com o fígado. A miomancia, na qual se interpretam os buracos da roupa do consulente feitos por ratos. A oomancia, que é o futuro retratado a partir de ovos, cujas cascas devem ser totalmente quebradas após a consulta para evitar a má sorte. O Oráculo de Delfos, em razão da construção de seu templo ter sido arquitetada sobre uma fissura geográfica.


No início do século XX, a existência dessa falha geográfica foi refutada por cientistas. Ao final desse mesmo século, um novo grupo cientistas se reuniu, entre eles historiadores, arqueólogos, químicos, e concluíram que no local do templo havia um encontro de duas placas tectônicas, cujo desenho formava um x. Exatamente aí é que ficava um banco, o tripé no qual a Pítia, sacerdotisa desse oráculo, se sentava para pronunciar seus versos enigmáticos.


Em Variações sobre a escrita, Barthes[i] diz: “A escrita, em suma, não é outra coisa senão uma fenda. Trata-se de dividir, de sulcar, de descontinuar uma matéria plana, folha, pele, lâmina de argila, parede”. Ele chama a atenção para a materialidade da escrita citando dois tipos de oráculos, que agora se somam a essa lista: “Foi assim que em tempos remotos da China se começou a ‘ler’, com fins divinatórios, as fendas provocadas pelo fogo nas escamas da tartaruga ou os traços das patas de pássaros na areia”. Apesar de todo o apelo à materialidade da escrita, é fácil perceber através de tais exemplos que a escrita, assim tomada por Barthes, prescinde do ato de escrever, e se realiza, como escrita no gesto de leitura. Isto é, o oráculo não se constitui apenas pelo suporte material que o possibilita, o oráculo é como se lê aquilo que o suporta.


Se Barthes, em Variações sobre a escrita, reescreve o que é escrever, Piglia[ii] faz o mesmo com o que é ler. Suas “variações sobre a leitura” são vastamente exploradas em O Último leitor, no qual, já nas primeiras páginas, são apresentados diferentes tipos de leitores, para salvar, de cada um deles, um determinado desvio respectivo ao ato de ler: Quixote, aficionado por ler pedaços de papéis nas ruas, ou Pierre Menard, que, como autor, se revela o mais perfeito leitor. Uma outra história sobre a exatidão: em 1651 o astrólogo inglês William Lilly publicou um pequeno livro de previsões intitulado Monarchy or No Monarchy no qual ele relê e atualiza previsões de calamidades para a cidade de Londres, sobretudo causadas pelo fogo. Catorze anos depois, com Londres em chamas, ele mesmo é acusado de ateá-lo. Pierre Menard, como um oráculo, escreve o que já está escrito – a noção grega sobre destino – e também, como os oráculos, nos destina a questão dos modos de ler. Pierre Menard não é propriamente um autor, como William Lilly tampouco o é, mas ambos passam a sê-lo no exato momento em que são acusados. Seja da perspectiva moral, do plágio, ou da perspectiva política, do fogo, a autoria soa como uma condenação.


Escrita e leitura. Leitura e escrita. Do que se pode dizer da escrita, o Oráculo de Delfos não é grafado, nem precisa sê-lo para se garantir como oráculo, mas se me sirvo do que Barthes diz sobre a escrita é por acreditar que a experiência material com a linguagem dá a ver – ou revela – uma relação que estabelecemos com a linguagem também em sua materialidade sonora. Com isso, podemos passar para a ideia de que, em Delfos, Deus quer falar, que a falha geográfica pode ser vista como uma falha em seu silêncio divino. Os vapores, então, conformariam uma tessitura invisível e imprecisa, seriam a linguagem perfumada e inebriante de um deus que exige a atenção de sentidos além do visual ou sonoro. É justamente nessa ruptura da linguagem sagrada em direção ao desejo de língua que lemos: Deus quer falhar. E para falhar, Apolo precisa de uma língua humana, e se serve da língua da Pítia, sua sacerdotisa, uma mulher. Se a escrita é então uma fala, aqui, o leitor de Piglia volta a nos interessar, mas agora como um ouvinte: “Um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem a melhor visão lê melhor”. Falar e ouvir. Ouvir e falar. Falhando.


Oráculos que são rarefeitos


Oráculos que são rarefeitos. A aeromancia, que é feita pelos sinais observados no ar. A nefelemancia, pelas nuvens. A oniromancia, pelos sonhos. A capnomancia, que é feita pela fumaça de corpo de vítimas incineradas em um altar. A libanomancia, pela fumaça de incensos. A geloscopia, pelo modo como uma pessoa ri. O auspício e a ornitomancia, ambos feitos a partir das aves, seja por sua aparição, quantidade, voo ou canto. Seria possível fazer uma longa lista sobre aves, no que concernem aos oráculos, e um dos motivos para essa relação prolixa é a de que as aves habitam o espaço aéreo, um espaço de cruzamento entre o céu e a terra, análogos ao que é divino e humano, imortal e mortal.

Desse entre lugar, as aves cantam. É o que me interessa. “Ouvir é mais dramático do que ver”. Com Bachelard,[iii] podemos ser exatos com a imagem das aves, e pensá-las antes por seus cantos do que por suas formas, cores, etc. Uma ave é sempre, ou quase sempre, um canto, um som, um sinal. Sonhando assim, o canto de uma ave seria a tradução da matéria aérea, e não exagero ao pensar que, tal qual o bicho-da-seda de Derrida, a ave se anuncia como ave ao cantar, e por isso ela mesma é feita da matéria de sua geografia aérea.


Dessa mesma forma, defendo que a oralidade é intrínseca ao oráculo, é nela que ele se faz e dela que ele é feito. Da matéria aérea que emergia do chão do templo de Delfos. A ela, aliás, nos referimos como um gás, mas que, segundo Johnston,[iv] antigamente ocorria por variações de palavras como neuma (espírito), atmos (vapor), rheuma (fluxo), euōdia (fragrância) e anathumiama (emanação). A maioria dos oráculos, independente de seus métodos divinatórios e tipos de instrumentação serão intermediados pela linguagem humana, e por essa razão, defendo que os saberes sobre a linguagem devem conformar parte dos estudos oraculares, sobretudo os que se apresentam nos limites de Saussure frente à teoria do valor e diante dos hinos homéricos a Apolo, das funções da teoria comunicativa de Jakobson, da lalangue, da linguisteria, do aturdito de Lacan, em tudo do que na língua é do sujeito. Sobretudo a poesia, como uma arte na qual inscrevemos o estranhamento do mundo pelo estranhamento da língua.


Uma pequena história sobre aves, cantos e nomes: ao ouvir um bem-te-vi, reportei a um amigo argentino que o bem-te-vi o via. Imitei o passarinho, cantando “béém-ti-víí”, e rindo, meu amigo me respondeu “bíícho-fêêo”, bicho-feo, bicho feio. Mais tarde soube que em outras línguas, bem-te-vis dizem, segundo seus ouvintes, outras coisas. Na Guiana Francesa, qu’est-ce?, uma pergunta que causa graça por seus ares de mau humor: que foi?


Ao interrogar um oráculo, esse tipo de coisa pode acontecer. Plutarco,[v] que registrou por escrito algumas das consultas feitas ao Oráculo de Delfos, conta em uma delas o seguinte:


Aos atenienses, que sobre a expedição à Sicília interrogaram, o oráculo mandou buscar de Eritra, a sacerdotisa de Atena: chamava-se Hesíquia (tranquilidade) a mulher.

O oráculo dá uma tarefa aos atenienses: que busquem Hesíquia. Por Hesíquia, se o oráculo quis dizer que não façam a expedição, que permaneçam em repouso, esse seria um procedimento comum à poesia. Uma coisa pela outra, metáforas, metonímias, analogias são, em boa parte, do que a poesia é feita. Outra possibilidade seria que a sacerdotisa de fato pudesse ajudá-los com algo ritualístico. Ou ainda seria possível acrescer que sendo uma sacerdotisa de Atena, uma deusa bélica e estratégica, os dizeres oraculares soavam como uma incitação a uma invasão calculada.


Essa multiplicidade e mutabilidade de sentidos podem ser provocados por alguns procedimentos, sejam eles escritos ou orais, mas são, em última instância, “variações sobre a escuta”, mesmo quando acidentais. Por fim, quero terminar com um outro oráculo mencionado por Plutarco, sobre Bato, um homem gago, que ao perguntar algo – não sabemos a pergunta – sobre o incômodo que tinha com a sua voz, o Oráculo de Delfos o faz rei:


Mas por essa razão, creio, a Bato, que tinha vindo aqui para saber sobre sua voz, o enviou como colonizador da Líbia, porque era certamente tartamudo e de voz débil, mas com dotes de rei, homem de estado e prudente.

[i]Barthes, Roland. O prazer do texto precedido de Variações sobre a escrita. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 66. [ii]Piglia, Ricardo. O último leitor. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 19. [iii]Bachelard, Gaston. O ar e os sonhos. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 233. [iv]Johnston, Sarah Iles. Ancient Greek Divination. West Sussex, Wiley-Blackwell, 2008, p. 45. [v]Plutarco.The Oracles at Delphi No Longer Given in Verse. Moralia. Volume V. Trad. Frank Cole Babbitt. Cambridge/Massachusetts/London: Harvard University Press, 1936.

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