cantos de trabalho cantos de preceito
notícias sobre o quarto módulo da desvio
I. o que danças?
o que é exu? quando a dança se afasta muito da música aparece. o mesmo acontece com a poesia. fazer do poema um jazz. coltrane procurava por uma voz por acordes num instrumento que não produz acordes. boa parte dos improvisos do jazz segue algumas convenções. é a religião que faz nascer o blues e o jazz. exu é ordenador.
não danço esta dança nem outra em
não-erigir sobre
o totem que amadureceu a ovulação do
verbo em não-erigir sobre nada em não-
erigir se fez o destino
do enganado pelos sinais de pedra e musgo
não danço o barco
da grande tartaruga
não
o vértice do lagarto
não danço os dentes
da hiena
o fôlego antílope
a guinada da lebre
não danço
a argila o sangue a
dança que se antecipa
ao corpo
não danço o que danço o que não danço danço
para estupor da autoridade quem vai ao campo
não sabe se retorna no entanto deixar-se ir é
um atrito cujos
laivos ficam menos
na pele que no pensamento salvem pois o
que não dança
senhor-ninguém dos ossos e medula erro
na coreografia animal sem nome e culto
que tem o abismo por mensagem
o que não dança a pergunta “o que
danças?” escava
os calcanhares e se dança retira das
vísceras um mito zero em sintaxe
o corpo sonoro do poema está no ritmo não nas palavras. metro-fantasma. a repetição da negativa como uma espécie de anáfora. exu é um fantasma do poema. “é a cabeça que andará o mundo”. disputa sonora entre a dança e a não dança. o que o poema faz é o que ele diz.
II. arranjos
como transportar arranjos para coisas escritas? o quanto Ulisses de Joyce rearranja a Odisseia? talvez rearranje Shakespeare já que quem inventa a noção de humano é este. Joyce rearranja o humano. a tradução seu lugar é um espaço onde se consegue produzir um arranjo. a autoria é uma questão moderna. barroco romantismo etc. brasileiros são grandes traduções. mixagens de culturas muito diferentes entre si que vinham da Europa. a tradução é o velho comércio das coisas humanas.
III. magia
sem o espaço religioso, jazz, blues, choro e samba não existiriam. worksongs: cantos de trabalho cantos de preceito. preceito: segredos de orientação para trabalhos. magia para sobrevivência. cantos de trabalho: em que medida ainda podemos criar rezas? a magia está na nossa capacidade de produzir indeterminação.
IV. algum acontecimento de leitura e escuta poética
pensar o ritmo do poema é um lugar áspero. o rap tem uma dimensão lírica em que as palavras tem outro peso. até que ponto o letrista é compositor? a voz da Elis é uma voz que autora a canção. se entendemos que a poesia nasce com a música nessa quase disputa de sentidos (nasce para ser cantada) a modernidade é que tira a voz. a poesia vira papel e tinta. no Brasil é pela canção que consumimos poesia. compramos discos no lugar de livros. o jazz e o blues nos EUA são a música popular vinculada a um protestantismo empretecido. no Brasil esse processo acontece dentro dos terreiros. o samba é resistência contenção. o rap é ataque.
“homem invisível”, Edi Rock e Mano Brown: ritmo o tempo todo marcado assim como o esquema de rimas. neopentecostalismo e toda uma perturbação.
“nikit city”, Black Alien e Speed: egotrip. disputa territorial de um sujeito. lugar do artista. o Brown tem uma memória cancional muito mais frequente do que o Speed. a enunciação do Speed não é a mesma do Brown. Speed mostra para nós que o verso livre não está tão dentro do prosaico assim, nem fora da dimensão do ritmo.
“ca-já”, Caetano Veloso: o tom vai subindo a cada vez que retorna ao começo. uma conversa do Caetano com o piano. todo um sentido harmônico perturbado por um ruído do sintetizador ao fundo. é possível “ser” sem “estar”’. Caetano convoca a presença pelo “estar”. Caetano fala o tempo todo sobre tempo. converter o universo do tempo em coisa. no refrão “agora” não rima com nada: o que aterra é a ausência. a ausência é assombrosa para nós agora nesse espaço. tudo que acontece é ausência. a rima abreviada entre “linda”, “ainda”, “mim” e “capim” realiza a presença da falta pelo som. embora o ritmo pareça regular a voz de Caetano e a canção irregularizam.
toda a nossa organização de sentido se dá no ritmo também, no corpo. e de vez em quando abrimos mão disso. a prosa de ficção é quase escrava só do sentido. o prazer do texto acontece quando algo acontece no corpo. o poema não diz, ele faz. tudo que vimos não foi imediato, mas uma espécie de preparação de algum acontecimento que virá depois. algum acontecimento de leitura e escuta poética. escrever até que o poema se torne estranho até para si.[i]
[i] no quarto módulo da formação desvio, mediado pelo André Capilé, falamos sobre as formas nos poemas. quer dizer, o Capilé falou. e não, isso não é uma crítica. é que falar de forma, é falar de ritmo, que por sua vez diz respeito ao que acontece com nosso corpo, nesse caso, diante de um poema. muitas vezes, é pela escuta que o corpo acessa o ritmo. agora faz todo sentido aquela orquestra de silêncios regida pela voz do Capilé. no texto que você acabou de ler, reuni frases ditas por ele nos encontros. por ele, mas também um pouco por mim, já que no afã de anotar o máximo que podia produzi uma corruptela ou outra, certamente. o trecho citado em itálico é de um poema do Edmilson de Almeida Pereira. esse é o texto com mais cara de diário que faço. espero que tenha gostado.
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