No dia 10 de dezembro de 2023 foi o aniversário de 40 anos do retorno da democracia na Argentina. Era domingo e meu amigo Gabriel estava em São Paulo. Sugeri que ele viesse tomar café comigo. Em algum momento, dissemos: “ya debe ser la hora”. Javier Milei estava assumindo o governo naquela manhã. Gabriel não queria estar em Buenos Aires. Prestes a ir embora, ele me contou uma cena no Uber que o levou até minha casa. Ao ficar sabendo que era argentino, o motorista tinha perguntado entusiasmado se ele estava feliz com a mudança no seu país.
Foi nesse mesmo dia, em 1983, que Raúl Alfonsín assumiu o governo, depois das eleições que puseram fim à ditadura que teve início em 1976. Minha mãe voltou pela primeira vez à Argentina comigo e minha irmã pequenas. Estava em Buenos Aires, na Plaza de Mayo, para escutar Alfonsín discursar: “Iniciamos una etapa que sin duda será difícil”.
“A aula já começou. Sento-me num canto. O professor está falando sobre dois fracassos que a América Latina precisa encarar na década de 90: por um lado, dos projetos revolucionários dos 60 e 70, todo o imaginário político que girava em torno de Cuba e que se expressava numa nova literatura; por outro, o fracasso das culturas de transição, tentando construir democracias que funcionem. ‘Con la democracia se come, se educa, se trabaja’, havia dito Alfonsín ao assumir o governo em 1983. Vinte anos depois, a exclusão. Seu foco de interesse é o poder do Estado, definir esse poder hoje em relação a um outro poder, que também disciplina a subjetividade e cria suas margens. Sinto alegria por estar ali, ouvindo esse professor que tantas vezes para e pergunta: ¿cómo les parece esto?”
Esse parágrafo fala de um encontro: em 2004 conheci Gabriel Giorgi quando fui fazer um curso com ele. Ele virou personagem do primeiro romance que publiquei, chamado Algum lugar. No livro, o nome dele era Pablo. Ficamos unidos desde então.
Em janeiro de 2024 fomos juntos à primeira grande manifestação contra o governo de Milei em Buenos Aires. Gabriel escreveu sobre esse dia. Traduzo aqui:
“O trem chega. Bastante gente no vagão, temos uma sensação de alegria, porque achamos que é um bom sinal, muitas camisetas de sindicatos, rostos de gente que vai a muitas manifestações. Quando entramos e o trem anda, de outros vagões que estão mais à frente, como se viesse das entranhas da terra, começa a chegar a marcha peronista. Um canto de vagão em vagão. Chega como um alento e um eco. Ganha nosso vagão e continua na direção dos que vêm atrás.”
Ele está escrevendo uma série de textos breves com o título “Notas de escuta”. A “Nota 1” conta a cena com o motorista em São Paulo. Ela é pedagógica em relação ao que se está começando a viver na Argentina nos últimos tempos: “a não-escuta como textura da vida cotidiana”. O que é inescutável ou inaudível é parte da escuta, do exercício de tomar distância e contar com o tempo. Há certa paciência envolvida e, ao mesmo tempo, certa dispersão. E, também, quem sabe, a possibilidade de ficar alerta de repente, como fazem alguns animais, como os gatos que moram comigo.
Observo-os e eles me observam, sentados cada um no seu canto – eu na mesa que me serve de escrivaninha, ele no sofá, ela na poltrona. São modos de observar diferentes. Ou talvez o verbo “observar” não seja adequado no caso deles. “Um animal me olha”, escreve Derrida. Meu filho brinca que esse olhar está prestes a encontrar a compreensão do universo, mas bem na hora se distrai; bem na hora, algo aparece, algo passa, algo que é inaudível para nós, e o olhar se desvia e se fixa, com atenção total.
“A escuta, então, me situa. Mas não sei nunca exatamente diante do quê. A escuta desmancha (e ridiculariza um pouco) as certezas da visão, seu teatro da verdade, seus modos da evidência. Por isso é, acredito, a via de conhecimento para este momento histórico. Estamos situados, tateantes, diante de algo que não sabemos bem o que é. Seguimos o rastro da escuta menos como um chamado do que como uma ferramenta precária, suspeita.”
Traduzo de novo das notas do Gabriel. Penso no trabalho de escuta que está presente em diversos tipos de atividades. Na de professor, com certeza. ¿Cómo les parece esto? Na de motorista de Uber. Na de jornalista ou de psicanalista. Em todas elas, ainda assim, está em jogo o que é inescutável ou inaudível, algo que não sabemos bem o que é, que às vezes entra por um ouvido e sai pelo outro, que pode nos deixar mudos de perplexidade ou nos fazer dizer a primeira coisa que vem à cabeça. Freud ao propor a “atenção flutuante” assumiu isso na técnica psicanalítica, uma espécie de “distraídos, venceremos”.
Lembro de uma cena, também em Buenos Aires: minha mãe, meu pai e eu estamos em um taxi indo assistir a um show da cantora de tango Susana Rinaldi em San Telmo. Meu pai vai na frente, sentado ao lado do motorista. Quando começo a prestar atenção, ele está contando sobre os rottweilers que cuidam da sua casa. Segue-se a descrição da casa e do bairro, menciona-se de passagem uma separação. Meu pai pontua as frases com observações gerais sobre as avenidas pelas quais passamos e o caminho que estamos fazendo. Parece uma conversa desencontrada, mas o outro segue um fio, volta à separação: o sogro não gostava dele porque ele dirigia caminhão de lixo, mas hoje ele tem uma casa com piscina e churrasqueira, mora sozinho, ganha 2000 dólares por mês. Vejo a bolha que se formou em torno deles, uma bolha de escuta, em que o outro pode ser quem ele é, fora por um intervalo das definições que poderiam aprisioná-lo.
Era abril de 2023. Uma cena como essa se tornou mais improvável de lá para cá. Para Gabriel, é possível a conversa com o motorista daqui, mas talvez não com o de lá. Daí que uma escrita da escuta tenha se tornado tão necessária. Escrever sempre esteve no coração da vida do meu amigo, a escrita crítica e teórica, sobretudo. Mas agora ele precisa de outra coisa, que tem a ver com ser menos ativo, com falar menos, com deixar a escuta fazer seu caminho, quem sabe aprendendo com a poesia; com o poeta palestino Mosab Abu Toha em Things you may find hidden in my ear, cujo início Gabriel traduz:
An apple that fell from the table on a dark evening when manmade lighting flashed through the kitchen, the streets, and the sky, rattling the cupboards and breaking the dishes.
“Am” is the linking verb that follows “I” in the present tense when I am no longer present, when I am shattered.
“Una manzana que se cayó de la mesa en un anochecer oscuro cuando un rayo hecho por los hombres relumbró en la cocina, en las calles, y en el cielo, haciendo sonar las tazas y rompiendo los platos.
‘Soy’ es el verbo copulativo que sigue a ‘yo’ en el tiempo presente cuando ya no estoy presente, cuando estoy hecho pedazos.”
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