uma projeção do Holograma, de Mariana Godoy
por Beatriz Malcher

I.
por volta dos anos 70
do século xviii
um juiz genovês
conhecido como sr. lullin
jurou
enxergar símbolos brilhantes cores
fortes manchas iluminadas quando não
animais pessoas e outras figuras
complexas
você deve estar imaginando
que você também
vê muita coisa
complexa
e isso não é motivo de espanto
as diferenças entre lullin e você
além dos séculos que os separam
são duas:
primeiro, lullin estava
praticamente cego
por conta de uma catarata avançada.
na época já existia cirurgia para tratar
do problema, mas não existia sutura
e os pacientes deveriam permanecer
imóveis
com sacos de areia
ao redor da cabeça
até a cicatrização total
- o que gerava risco
de
embolia pulmonar.

e já que lullin optou pelo ar
em detrimento das imagens
o fato dele agora enxergar
esse monte de figuras
complexas
por si só
já seria uma surpresa.
a segunda diferença entre
você e ele
é que os símbolos cores manchas
objetos animais pessoas
que ele via
não estavam presentes
diante de seus olhos brancos
- ou, se estavam
ninguém mais via -
o que levou familiares e amigos
à conclusão de que o juiz
estava louco
II.
por volta dos anos 10
do século xxi
a minha avó jurou que enxergava
pessoas com a cara do seu passado
cachorros e gatos que há muito já haviam morrido
além de objetos perdidos
reaparecendo
e sumindo
de sua mesa de cabeceira
minha avó estava praticamente
cega há mais de dez anos
por conta de um glaucoma
para o qual já havia
cirurgia anestesia sutura colírio,
mas nada disso
deu certo com ela. logo,
enxergar todas essas coisas seria provavelmente
- e assim concluíram familiares e amigos
alucinações próprias de uma mente
senil e feminina
no ano 23 do mesmo século
mariana godoy me conta em versos
sobre a sua própria avó
que acordava de noite
e enxergava, dormindo ao seu lado
ou caminhando da cama até o banheiro,
o marido morto
a ilusão faz parte do sonho dos cegos
o 3D de uma visão fictícia
o livro de godoy é todo atravessado
por essas imagens
tridimensionais
fictícias ou quase
a essas aparições ou fantasmas
ela dá o nome de holograma –
título de seu livro que
chegou em minha porta
pelo círculo de poemas -
seria bom agora poder mentir pra você
dizendo que a primeira coisa que pensei
quando li a palavra
holograma
impressa na capa azul
foi no termo grego holos
que significa todo, inteiro, conjunto
e no sufixo gramma
letra, ou algo escrito
talvez mensagem
mas dizer holos ou gramma
é falar grego
provavelmente escapa
da minha tradução
a origem total das palavras
porque, como me diz godoy
é o que normalmente acontece aos tradutores
que trabalham no campo da memória
como ela, como eu
e talvez como você também,
quem sabe
mas arrisco te dizer que as imagens
imaginadas neste livro
são e trazem sim mensagens inteiras
de algo já perdido
como um homem
que morreu há três anos
mas que ainda cuida do jardim
no google maps
ou como os livros herdados por uma mulher
que provam como
a comunicação de um pai com a filha
através dos livros
é interestelar
fica
mensagens inteiras
hologramas
que marcam a permanência
do que parte (ou partiu) em quem
fica
III.
outra mentira que eu gostaria
de poder te contar é de que eu
não precisei consultar um professor
de mecânica quântica do centro brasileiro
de pesquisas físicas
para que ele me explicasse que
os hologramas nos dizem sobre
os mecanismos da luz que,
incidindo sobre estruturas bidimensionais
, produzem imagens
em 3D
– como as que as avós
da mariana godoy
e a minha
assim como o juiz genovês
enxergavam -
e que hoje a holografia
é inclusive utilizada
em física de fronteira
para tentar partir
de quatro dimensões
deste mundo
(1 do tempo e 3
do espaço)
para chegar às outras
(quantas?)
dimensões
(quais?)
nem sei se entendo
o que ele me disse
mas arrisco que seja algo como:
uma imagem em 4D
(do passado)
meu pai me chama na cozinha
incide na superfície em 2D
(o papel do poema)
deve estar querendo alguma coisa
que só eu sei onde está
o açúcar
o filtro de café
a droga da tampa do liquidificador
e se projeta em outra dimensão
(o presente)
grito já vou
e lembro que o enterro dele
foi ontem
como holograma
IV.
talvez, ao dizer isso, eu seja perseguida
em pesadelos ou alucinações
pelo holograma careca
de theodor w. adorno
mas a verdade mesmo é que
quando leio
holograma
automaticamente penso
em indústria do entretenimento
lembro por exemplo de um show
do festival de música coachella
de 2012
onde o tupac shakur,
morto em 1997,
cantou ao lado do snoop dogg
relatos de quem esteve no festival
dão conta de mostrar
que muitos acreditaram
se tratar de um sósia
não de um tupac feito
em computação gráfica
a partir dos movimentos
e da aparência do original
- e como definir o que é
o original de alguém? -
um tupac animado
- sem anima -
projetado
no chão do palco
que, por sua vez, refletia
a imagem na direção de um plástico
(chamado mylar)
criando este fantasma:

ou um espectro fantasmagórico;
rememoração de um passado
não ultrapassado
da poesia política estadunidense
eu diria - e de fato disse, quando vi
as imagens do show
mas a empresa digital
domain media group
responsável por
dar forma à memória
chamou este fantasma de holograma
os hologramas são imagens
(as vezes imaginadas)
que ocupam dimensões espaciais
(as vezes sonoras)
sempre fixas em um tempo
mas que, incidindo
sobre uma estrutura bidimensional
- o chão de um palco,
o plástico mylar, o papel de um livro -
chegam a outras dimensões
espaciais ou temporais
mas esse holograma em particular
é de uma espécie
que me assombra atrai intriga
por conta de sua morbidez
- ainda que pop -
de seu sadismo
- ainda que espetacular -
e de sua função estranha em um (não)
trabalho de luto
o curioso disso é que pensei
em fantasmagorias deste tipo
ao ler o título do livro da godoy
e, ao abri-lo, notei que
apesar de ele ser construído por
mensagens inteiras
e também por
atravessamentos multidimensionais
ele ao mesmo tempo ironiza
sem deixar de homenagear
os hologramas que nos perseguem
nos espelhos escuros
do computador da tv do celular
poderia te falar de como
ela traz isso desde a epígrafe
"mas o que é o luto, se não o amor que perdura?" (WandaVision)
ou citar novamente
o poema sobre os espectros
que assombram o google maps
mas prefiro trazer
por gosto pessoal e
também sonhar em reconstruir
casas perdidas no tempo,
este aqui:

o quase-holograma que projeta essas
pessoas que poderíamos ter sido
opera com a mesma lógica
desses outros hologramas do entretenimento;
com similar morbidez, sadismo
e tentativa meio falha de
trabalhar o luto
sem bem saber
o que o luto quer
dizer ou mesmo se ele diz
qualquer coisa.
mas está excluído desse processo
o espetáculo
aqui, projetar hologramas
tem a função de dilatação temporal
& de reconfiguração do real pela
ficção
se o tupac cantando num palco
é pura ficção
mas não parece ser - parece sim
ser pessoa
animada
sósia -
em godoy o ficcional é escancarado:
gente comum pode aterrizar
foguetes
e ninguém morre
de câncer
a dimensão fantasmática da
indústria do entretenimento
é apropriada pela autora mas
a ilusão de realidade aumentada
é negada
é como se esse poema cumprisse
uma tarefa anunciada em outro
espectro sonoro:
colocar os fantasmas em seus devidos lugares é também uma forma de proteção
os fantasmas têm seu lugar
e ele não é o mesmo
que o nosso
e ainda que eles
venham nos visitar
eles são só
fantasmas:
as poltronas permanecem vazias
e ninguém aqui tem um prisma sobre
cabeça que vai se encher
da cor azul
V.
por volta dos anos 10
do século xxi
a minha avó foi levada
ao psiquiatra para tratar
das alucinações visuais
que vinha experimentando.
o diagnóstico no entanto
não falava da senilidade
ou de uma loucura feminina
como familiares e amigos
acreditavam:
o fato era que a minha
avó estava cega
há mais de dez anos
por conta de um glaucoma
mal operado. logo,
ela podia enxergar mais,
como é comum
aos cegos.
por volta dos anos 70
do século xviii
o biólogo e filósofo genovês
charles bonnet,
observando o seu avô,
o sr. lullin, que estava
cego por conta de uma catarata
não operada, percebeu que
as alucinações visuais
que ele experimentava não eram
loucura, mas sim uma
hiperexcitabilidade
de circuitos neurais centrais
causada pela redução de aferência visual
promovendo a formação de imagens
complexas
ou seja,
o cérebro do senhor lullin
estava preenchendo com
imagens imaginadas
a falta
a esse fenômeno
foi dado o nome de síndrome
de charles bonnet
penso em quando
a avó de godoy
via a sombra de seu marido
dormindo ao seu lado
ou em quando a minha avó
via o cachorro de seu irmão
correndo pelo corredor
ou em quando você faz
como o poema a criação
e ergue o seu dedo mindinho
ao segurar um copo de café
copiando o movimento de teu pai
já morto e assim sente
que o toca
penso em tudo isso
e acho que sim,
é disso que devem se tratar
os hologramas:
produções de nossos cérebros
e olhos
cegos o suficiente
para conseguir preencher
a falta
VI.
foi no ano 23 de nosso século
que a mariana godoy me contou
em versos
que a cegueira não significa
apenas
a falta
da visão, mas também
o seu perfeito contrário:
quando,
em sentido figurado, se torna
afeto extremo por alguém
que nada mais é
que ver demais
sim.
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