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Ensaio sobre ver demais

Atualizado: 6 de out. de 2023

uma projeção do Holograma, de Mariana Godoy


por Beatriz Malcher




I.

por volta dos anos 70

do século xviii

um juiz genovês

conhecido como sr. lullin

jurou

enxergar símbolos brilhantes cores

fortes manchas iluminadas quando não

animais pessoas e outras figuras

complexas


você deve estar imaginando

que você também

vê muita coisa

complexa

e isso não é motivo de espanto


as diferenças entre lullin e você

além dos séculos que os separam

são duas:


primeiro, lullin estava

praticamente cego

por conta de uma catarata avançada.

na época já existia cirurgia para tratar

do problema, mas não existia sutura

e os pacientes deveriam permanecer

imóveis

com sacos de areia

ao redor da cabeça

até a cicatrização total

- o que gerava risco

de

embolia pulmonar.





e já que lullin optou pelo ar

em detrimento das imagens

o fato dele agora enxergar

esse monte de figuras

complexas

por si só

já seria uma surpresa.


a segunda diferença entre

você e ele

é que os símbolos cores manchas

objetos animais pessoas

que ele via

não estavam presentes

diante de seus olhos brancos

- ou, se estavam

ninguém mais via -

o que levou familiares e amigos

à conclusão de que o juiz

estava louco



II.

por volta dos anos 10

do século xxi

a minha avó jurou que enxergava

pessoas com a cara do seu passado

cachorros e gatos que há muito já haviam morrido

além de objetos perdidos

reaparecendo

e sumindo

de sua mesa de cabeceira


minha avó estava praticamente

cega há mais de dez anos

por conta de um glaucoma

para o qual já havia

cirurgia anestesia sutura colírio,

mas nada disso

deu certo com ela. logo,

enxergar todas essas coisas seria provavelmente

- e assim concluíram familiares e amigos

alucinações próprias de uma mente

senil e feminina


no ano 23 do mesmo século

mariana godoy me conta em versos

sobre a sua própria avó

que acordava de noite

e enxergava, dormindo ao seu lado

ou caminhando da cama até o banheiro,

o marido morto

a ilusão faz parte do sonho dos cegos

o 3D de uma visão fictícia


o livro de godoy é todo atravessado

por essas imagens

tridimensionais

fictícias ou quase


a essas aparições ou fantasmas

ela dá o nome de holograma

título de seu livro que

chegou em minha porta

pelo círculo de poemas -


seria bom agora poder mentir pra você

dizendo que a primeira coisa que pensei

quando li a palavra

holograma

impressa na capa azul

foi no termo grego holos

que significa todo, inteiro, conjunto

e no sufixo gramma

letra, ou algo escrito

talvez mensagem


mas dizer holos ou gramma

é falar grego

provavelmente escapa

da minha tradução

a origem total das palavras

porque, como me diz godoy

é o que normalmente acontece aos tradutores

que trabalham no campo da memória

como ela, como eu

e talvez como você também,

quem sabe


mas arrisco te dizer que as imagens

imaginadas neste livro

são e trazem sim mensagens inteiras

de algo já perdido

como um homem

que morreu há três anos

mas que ainda cuida do jardim

no google maps

ou como os livros herdados por uma mulher

que provam como

a comunicação de um pai com a filha

através dos livros

é interestelar


fica


mensagens inteiras

hologramas

que marcam a permanência

do que parte (ou partiu) em quem


fica



III.

outra mentira que eu gostaria

de poder te contar é de que eu

não precisei consultar um professor

de mecânica quântica do centro brasileiro

de pesquisas físicas

para que ele me explicasse que

os hologramas nos dizem sobre

os mecanismos da luz que,

incidindo sobre estruturas bidimensionais

, produzem imagens

em 3D

– como as que as avós

da mariana godoy

e a minha

assim como o juiz genovês

enxergavam -


e que hoje a holografia

é inclusive utilizada

em física de fronteira

para tentar partir

de quatro dimensões

deste mundo

(1 do tempo e 3

do espaço)

para chegar às outras

(quantas?)

dimensões

(quais?)


nem sei se entendo

o que ele me disse

mas arrisco que seja algo como:


uma imagem em 4D

(do passado)

meu pai me chama na cozinha

incide na superfície em 2D

(o papel do poema)

deve estar querendo alguma coisa

que só eu sei onde está

o açúcar

o filtro de café

a droga da tampa do liquidificador

e se projeta em outra dimensão

(o presente)

grito já vou

e lembro que o enterro dele

foi ontem

como holograma



IV.

talvez, ao dizer isso, eu seja perseguida

em pesadelos ou alucinações

pelo holograma careca

de theodor w. adorno

mas a verdade mesmo é que

quando leio

holograma

automaticamente penso

em indústria do entretenimento


lembro por exemplo de um show

do festival de música coachella

de 2012

onde o tupac shakur,

morto em 1997,

cantou ao lado do snoop dogg


relatos de quem esteve no festival

dão conta de mostrar

que muitos acreditaram

se tratar de um sósia

não de um tupac feito

em computação gráfica

a partir dos movimentos

e da aparência do original

- e como definir o que é

o original de alguém? -


um tupac animado

- sem anima -

projetado

no chão do palco

que, por sua vez, refletia

a imagem na direção de um plástico

(chamado mylar)

criando este fantasma:





ou um espectro fantasmagórico;

rememoração de um passado

não ultrapassado

da poesia política estadunidense

eu diria - e de fato disse, quando vi

as imagens do show


mas a empresa digital

domain media group

responsável por

dar forma à memória

chamou este fantasma de holograma


os hologramas são imagens

(as vezes imaginadas)

que ocupam dimensões espaciais

(as vezes sonoras)

sempre fixas em um tempo

mas que, incidindo

sobre uma estrutura bidimensional

- o chão de um palco,

o plástico mylar, o papel de um livro -

chegam a outras dimensões

espaciais ou temporais


mas esse holograma em particular

é de uma espécie

que me assombra atrai intriga

por conta de sua morbidez

- ainda que pop -

de seu sadismo

- ainda que espetacular -

e de sua função estranha em um (não)

trabalho de luto


o curioso disso é que pensei

em fantasmagorias deste tipo

ao ler o título do livro da godoy

e, ao abri-lo, notei que

apesar de ele ser construído por

mensagens inteiras

e também por

atravessamentos multidimensionais

ele ao mesmo tempo ironiza

sem deixar de homenagear

os hologramas que nos perseguem

nos espelhos escuros

do computador da tv do celular


poderia te falar de como

ela traz isso desde a epígrafe

"mas o que é o luto, se não o amor que perdura?" (WandaVision)

ou citar novamente

o poema sobre os espectros

que assombram o google maps


mas prefiro trazer

por gosto pessoal e

também sonhar em reconstruir

casas perdidas no tempo,

este aqui:





o quase-holograma que projeta essas

pessoas que poderíamos ter sido

opera com a mesma lógica

desses outros hologramas do entretenimento;

com similar morbidez, sadismo

e tentativa meio falha de

trabalhar o luto

sem bem saber

o que o luto quer

dizer ou mesmo se ele diz

qualquer coisa.


mas está excluído desse processo

o espetáculo


aqui, projetar hologramas

tem a função de dilatação temporal

& de reconfiguração do real pela

ficção


se o tupac cantando num palco

é pura ficção

mas não parece ser - parece sim

ser pessoa

animada

sósia -

em godoy o ficcional é escancarado:

gente comum pode aterrizar

foguetes

e ninguém morre

de câncer


a dimensão fantasmática da

indústria do entretenimento

é apropriada pela autora mas

a ilusão de realidade aumentada

é negada


é como se esse poema cumprisse

uma tarefa anunciada em outro

espectro sonoro:


colocar os fantasmas em seus devidos lugares é também uma forma de proteção


os fantasmas têm seu lugar

e ele não é o mesmo

que o nosso

e ainda que eles

venham nos visitar

eles são só

fantasmas:


as poltronas permanecem vazias

e ninguém aqui tem um prisma sobre

cabeça que vai se encher

da cor azul


V.

por volta dos anos 10

do século xxi

a minha avó foi levada

ao psiquiatra para tratar

das alucinações visuais

que vinha experimentando.

o diagnóstico no entanto

não falava da senilidade

ou de uma loucura feminina

como familiares e amigos

acreditavam:

o fato era que a minha

avó estava cega

há mais de dez anos

por conta de um glaucoma

mal operado. logo,

ela podia enxergar mais,

como é comum

aos cegos.


por volta dos anos 70

do século xviii

o biólogo e filósofo genovês

charles bonnet,

observando o seu avô,

o sr. lullin, que estava

cego por conta de uma catarata

não operada, percebeu que

as alucinações visuais

que ele experimentava não eram

loucura, mas sim uma

hiperexcitabilidade

de circuitos neurais centrais

causada pela redução de aferência visual

promovendo a formação de imagens

complexas

ou seja,

o cérebro do senhor lullin

estava preenchendo com

imagens imaginadas


a falta


a esse fenômeno

foi dado o nome de síndrome

de charles bonnet


penso em quando

a avó de godoy

via a sombra de seu marido

dormindo ao seu lado


ou em quando a minha avó

via o cachorro de seu irmão

correndo pelo corredor


ou em quando você faz

como o poema a criação

e ergue o seu dedo mindinho

ao segurar um copo de café

copiando o movimento de teu pai

já morto e assim sente

que o toca


penso em tudo isso

e acho que sim,

é disso que devem se tratar

os hologramas:


produções de nossos cérebros

e olhos

cegos o suficiente

para conseguir preencher


a falta



VI.

foi no ano 23 de nosso século

que a mariana godoy me contou

em versos

que a cegueira não significa

apenas


a falta


da visão, mas também

o seu perfeito contrário:


quando,

em sentido figurado, se torna


afeto extremo por alguém

que nada mais é

que ver demais



sim.





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