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Correlativo objetivo em ritmo de aventura


Correlativo objetivo em ritmo de aventura

 

Começo com o famoso carrinho de mão vermelho escrito pelo norte-americano William Carlos Williams: “tanta coisa depende/ de// um carrinho de mão/ vermelho// reluzente de gotas de/ chuva// ao lado das galinhas/ brancas.” Aproveitando, vale também lermos esse outro poema do mesmo autor:

 

isto é só para dizer

 

que eu comi

as ameixas

que estavam

na geladeira

as que você

provavelmente

estava guardando

para o café da manhã

me desculpe

estavam deliciosas

tão doces

e geladas

 

As ameixas e o carrinho de mão vermelho ganham vida depois de os poemas tocarem neles. Na verdade, essas duas coisas são criadas pelos poemas. E elas são tão concretas e estão tão ao nosso alcance que parece que nem vemos o texto, mas só o carrinho de mão vermelho e as ameixas.

 

Outro poeta de língua inglesa, T.S. Eliot, ao ler uma peça de Shakespeare, cunhou um conceito que pode nos ajudar a entender melhor essa capacidade de um texto presentificar de forma material uma coisa. Eliot deu o nome de “correlativo objetivo”.

 

Segundo ele, “um conjunto de objetos, uma situação, um encadeamento de eventos que será a fórmula de uma emoção particular; de tal modo que — quando os fatores exteriores, que devem terminar em experiência sensória, estiverem dados — a emoção é imediatamente evocada.”

 

Dessa forma, presentificar objetos, situações ou eventos possibilita também presentificar uma emoção que não necessariamente precisa ser nomeada pelo texto. A partir do objeto, cada leitor e leitora evoca e presentifica a “emoção” encontrada.

 

Tal habilidade não impõe um caminho à leitura, mas lança possibilidades de caminhos. O mesmo William Carlos Williams em outro poema fala: “ideias/ só nas coisas”. Assim, por mais alto que possa ir, o poema mantém os pés no chão.

 

Manuel Bandeira é mestre em apresentar objetos que presentificam emoções. A objetividade, ao invés de diminuir, aumenta a carga lírica dos seus versos. Um exemplo é “Gesso”:

 

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova

— O gesso muito branco, as linhas muito puras —

Mal sugeria a imagem de vida

(Embora a figura chorasse).

 

Há muitos anos tenho-a comigo.

O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja.

Os meus olhos, de tanto a olharem,

Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.

 

Um dia mão estúpida

Inadvertidamente a derrubou e partiu.

Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos, recompus a figurinha que chorava.

E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pátina...

 

Hoje este gessozinho comercial

É tocante e vive, e me fez agora refletir

Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

 

A estatuazinha de gesso detém, primeiro, pureza e ingenuidade (“as linhas muito puras”) e, então, o tempo age sobre ela, criando uma relação simbiótica com a voz do sujeito do poema, afinal o tempo também agiu sobre ele. A estatuazinha então se comporta como uma extensão da voz, mas extensão que habilmente “desinterioriza” tal voz.

 

E quando o “gessozinho comercial” é destruído e remendado tal relação se intensifica. Quanto mais vemos as fissuras e feridas do velho gesso colado, mais ele se enche de vida e ganha valor porque dá a ver o próprio sujeito fora de si.

 

Orides Fontela, João Cabral de Melo Neto, os angolanos Paula Tavares e Ernesto Lara Filho, cito só alguns autores cujos livros estão aqui em cima da mesa, ao alcance das mãos. A lista de poemas pode ser infinita. Porque, procurando bem, dá para ver correlativos objetivos em muitos textos.

 

Tem um poema de Carlos Drummond de Andrade de que me lembro sempre. Ele se chama “Cerâmica” e é bem curtinho:

 

Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

Sem uso,

ela nos espia do aparador.

 

Esse poema é quase irmão do anterior de Bandeira. Aliás, os dois títulos nomeiam os materiais de que são feitos os objetos: “cerâmica” e “gesso”. Os dois poemas também têm em comum o fato de darem a ver objetos que, depois de quebrados e remendados, ganham outra vida. Se o de Bandeira é “tocante e vive”, o de Drummond nos olha de volta.

 

Quando olhamos para algo, agimos sobre ele. Da mesma maneira, quando somos olhados, quem nos olha também age sobre nós. Em outras palavras, quando lemos um poema, olhamos para ele. Acontece que o poema também nos olha e nos lê de volta. Essa é a magia.

 

Nos versos de Drummond, essa xícara colada — inutilizada pelas linhas mal encaixadas dos seus cacos — está em cima do móvel da sala de estar. E se a espiamos, ela nos espia de volta e sabe-se lá o que vê.

 

A xícara de Drummond dá um passo além e não coincide exatamente com a ideia de correlativo objetivo, porque ela se emprenhou tanto de vida que já parece ir na direção daquilo que é conhecido como “personificação”, que é quando o objeto ganha subjetividade e passa também a ser sujeito do discurso.

 

Assim, mais do que duplo ou extensão da voz do sujeito do poema, o objeto se tornou um segundo sujeito que desloca a voz do sujeito do poema, fazendo com que tal voz, que tenderia a se autocentrar, se veja também como alteridade.

 

Agora, dos livros em cima da mesa, passo para um velho disco na estante. Esse efeito comentado no parágrafo anterior — mistura de correlativo objetivo e personificação — me lembrou alguns versos de uma canção de Roberto e Erasmo Carlos que se chama “Os seus botões”:

 

Os botões da blusa

que você usava

e meio confusa

desabotoava

iam pouco a pouco

me deixando ver

no meio de tudo

um pouco de você

 

A canção apresenta uma cena de amor. E tal cena é construída, sobretudo, pelos objetos e roupas ali no quarto onde estão os amantes. São os botões da blusa, um a um, desabotoados, que mostram o corpo que se despe para o amor. Um pouco mais à frente, já durante a cena erótica:

 

Chovia lá fora

e a capa pendurada

assistia a tudo

não dizia nada

 

No trecho, o foco está de novo num objeto. E é por muito pouco que essa capa de chuva pendurada não começa a falar. Na verdade, é quase só por discrição que não temos aí um monólogo dramático.

 

Enfim... O poema costuma estar nas palavras que foram ditas. Mas acontece às vezes também de estar naquelas que não foram.

 

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