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Conversando com um cadáver: as contações de história de Édipo Ferreira, em Ossário




 

No dia 13 de julho de 2023, após um dia de congresso (e praia, porque, afinal, estávamos em Salvador e somos de carne e osso), o poeta Márcio Junqueira convidou para a sua casa antigos e novos amigos (o que era o nosso caso) para escutar Édipo Ferreira ler o seu Ossário. O livro havia sido lançado em outubro do ano anterior e esse não seria nosso primeiro contato com ele. Com o que não contávamos era que, naquela noite, sairíamos com a impressão de ouvir um outro livro, ainda que não soubéssemos bem o porquê.

 

Restou-nos mesmo uma sensação, a de que presenciamos ali uma espécie de contação de história, o que, à primeira vista ­– ou leitura –, não parece ser um aspecto que se destaque no livro. Apesar da presença de muitos poemas eminentemente narrativos (como, por exemplo, “Lembro da manhã em que me dirigi ao cemitério”, “A matança dos porcos”, para citar apenas dois), a linguagem seca e distanciada, ao lado de poemas que simulam uma linguagem jornalística, pouco remete à estrutura oral própria de contações de história. Nessas, é bastante comum que o tal contador lance mão, por exemplo, de vocativos ou perguntas dirigidas a quem o ouve. Este recurso se assemelha em efeito àquele que, posteriormente, ficou conhecido no teatro e no cinema como “quebra da quarta parede". Outro desses dispositivos se dá quando repetições de excertos do “texto” são proferidas como forma de dar ênfase ou ressaltar alguma metamorfose dos fatos. Por fim, um terceiro aspecto seria a preocupação narrativa com a transmissão de conhecimento, onde o eu e o outro assumem um caráter exemplar, de modo que um acontecimento individual e/ou local estão postos à serviço de uma coletividade e de um tempo compartilhado.

 

Se, em um primeiro momento, pouco no livro do Édipo parecia nos remeter a essa figura da tradição – que já estaria, há mais de um século, como defendido por Walter Benjamin, em processo de extinção –, naquela noite a performance dele fez com que alguns resquícios dessas antigas formas de narrar se destacassem. Nos explicamos: mais de uma vez, Édipo anunciou aos seus ouvintes, que, antes de ler um ou outro poema, iria parar para nos “contar uma história”. Tal história, nada mais era do que um de seus poemas, geralmente poemas em que a narrativa girava em torno de uma experiência que poderia ser tida como pessoal do poeta. Inclusive por isso, muito da recepção, na noite da performance, orbitou em torno de questões como a veracidade desses relatos e seus possíveis traumas.

 

Além disso, para quem entrava em contato com o livro pela primeira vez, não ficava claro se aqueles eram textos que de fato compunham o livro, ou se eram uma história que o poeta decidiu, de impulso, contar para ilustrar poemas subsequentes. Essa maneira de performar o próprio texto, por outro lado, para nós dois, de alguma forma acabou deslocando o aparente caráter individual deste Ossário em direção ao compartilhamento de experiência do qual falávamos há pouco. Em outras palavras, talvez um pouco mais adequadas ao lugar da crítica literária, o que víamos ali era algo já bastante marcado na história da poesia: um falseamento do Eu que tenta dar conta de uma experiência pretensamente universal, dando-nos de brinde seu caráter construtivo.

 

É certo que não foram poucos poetas que construíram personas para falar em seus poemas. E tampouco os modos com que fizeram isso. Podemos citar, como exemplo, a Adília Lopes, que investe na construção de seu próprio nome; a Ana Cristina César, que brinca de apagar as fronteiras entre o externo e o íntimo; ou o Fernando Pessoa, cujo Eu é fragmentado em muitos. No entanto, se, de alguma maneira, Édipo parece se servir desse falseamento, os resultados deste movimento vão apontar para uma outra direção. Diante dos “dois livros” do poeta – o que já havíamos lido e aquele novo, que ouvimos naquela noite – nos sentimos impelidos a seguir essa intuição.

 

Antes de mais especulações, vamos aos fatos. Ossário é dividido em três partes (Fim de partida, Falésias e Quando vi o pasto em chamas), assimétricas no tamanho, cujo fio condutor que cria uma aparente unidade seria uma espécie de tentativa de “viver o luto como uma manifestação daquilo que ainda germina”, para citarmos Valeska Torres, que assina a orelha. Ou seja, a primeira parte trata de um luto aparentemente generalizado, fortemente atravessado pela marca da guerra, da catástrofe e do genocídio; a segunda se atém ao luto individual diante da morte de uma amiga íntima; enquanto que a última, que de alguma maneira amarra as formas do luto trazidas nas anteriores, trata do luto da infância.

 

É claro que a infância é tematizada em primeiro plano nesta parte, mas o que está ali, e também em todo o livro, é o luto pela infância da linguagem, aquela condição que nos revela que todos fomos e somos atravessados por experiências que queremos (e tentamos) dizer, mas às quais as palavras falham. A brincadeira que aparece nessa parte final (“vamos brincar/ de matar porco?” ou “brincar de guerra era a brincadeira / de que a gente mais gostava” ou “uma criança brinca / com os anjinhos de mármore / corre pelo ossário / sorri pra você e te dá tchau”) não se limita a ela própria. Ela reforça o movimento que atravessa, talvez de modo mais velado, toda a estrutura do livro, que desde sua primeira parte já anuncia o “incessante fim de jogo / que insistimos em ignorar”.

 

Talvez seja sob o signo da persistência, defendido por Marcelle Ferreira Leal no posfácio de Ossário, como se tratando de seu movimento primordial, que podemos pensar como Édipo trabalha a impossibilidade de dizer a experiência diante de um jogo acabado que, ainda assim, insistimos em continuar a jogar. O que o poeta faz em seu livro poderia, assim, lembrar vagamente à máxima defendida pelo dramaturgo Valère Novarina, que ­– em uma inversão das proposições de Ludwig Wittgenstein (“o que não se pode falar, deve-se calar”) – , aposta que “aquilo que não se pode falar, é isso que é preciso dizer”. Mas como dizer se, segundo o próprio Édipo, “escrever é uma forma leviana / de lidar com os fatos”?

 

O que arriscamos propor aqui é que a resposta encontrada entre os livros – o que lemos e o que ouvimos – estaria justamente no gesto de fazer persistir a deslocada figura tradicional do contador de histórias, que aqui transita entre as ruínas de uma “Terra devastada”. Um adendo importante: a persistência dessa forma aqui em nada diz respeito a um movimento redentor, ou a uma tentativa, por parte do poeta, de dar uma solução fácil, positivada e mistificadora ao fato de a nossa História ser este “amontoado de ossos”. Mas retornaremos a este ponto em breve.

 

O interessante neste momento é pensar que esses “amontoados de ossos” relegam resquícios formais das antigas narrativas orais, que, como já notamos, visavam transmitir uma forma específica de conhecimento, hoje desprezado enquanto tal: a sabedoria presente na experiência. O caráter construtivo do Eu nos poetas que mencionamos lá em cima – Adília, Ana C. e Pessoa –, acusa a falsidade de sua unidade e indivisibilidade em busca de uma experiência pretensamente universal, que, por sua vez, nos revela teores mais verdadeiros (realistas?) da própria condição do Eu. Já o “contar histórias” de Édipo, imprime um movimento dissonante: o Eu falseado é aparentemente uno, marcado por experiências supostamente “íntimas”, mas se desfaz na (tentativa de) transmissão de uma experiência geral, nos revelando teores próprios da condição de uma coletividade, ainda que esta também não canse de mostrar seus fins.

 

Como vínhamos falando, existem alguns resquícios das narrativas orais enterrados na forma com que os poemas de Édipo se apresentam. Talvez o que mais nos chame a atenção – ainda que apenas notado por nós após a noite do dia 13/07 –, são espécies de “pequenas teses” apresentadas em alguns poemas, em especial na primeira parte do livro, mas não exclusivamente. Elas podem ser encontradas, por exemplo, em “tenho as mãos trêmulas”, “Nomear o chão”, “Lembro da manhã em que me dirigi ao cemitério”, “Estou lendo a biografia de Primo Levi”, “revirar a memória”, “são muitos os nomes que me vêm à memória”, “Prender a respiração”, “o que é a história”, dentre outros. Vejamos um desses casos um pouco mais de perto:

 

O poema que se inicia com “Lembro da manhã em que me dirigi ao cemitério”, conta, de maneira fria, distanciada, quase impessoal, a experiência de um Eu que precisa “realizar um trâmite”: exumar os restos se seu pai, “tirá-lo da terra e levá-lo para a gaveta”. A narração deste acontecimento dá conta de falar da naturalidade com a qual o coveiro coloca “com indiferença própria/ de quem realiza trabalhos rotineiros / todos os ossos, um por um, em uma bolsa / para seu definitivo destino”; e também de como, ao abrir o caixão, o Eu do poema se depara com os sapatos de couro com os quais o pai foi enterrado, que resistiram ao tempo.

 

Vale citar: “[...] os sapatos do meu pai resistiram / dentro de cada um deles, pequenos e já livres / dos fibrosos ligamentos que os mantiveram unidos em vida/ lá estavam intactos todos os ossos dos pés”. Assim, a situação narrada e a sua forma impessoal de narração poderiam nos levar a pensar a respeito de um Eu cindido entre a experiência e a linguagem, que tenta dar conta de uma situação radicalmente pessoal frente a um aparato burocrático, por um lado, e, por outro, à inescapável e violenta passagem do tempo que tudo destrói – apesar de deixar pequenos rastros, como os ossos e os objetos que nos sobrevivem. No entanto, o poema não termina aí. A sua estrofe final nos direciona para outro lugar: após recolher os ossos e se desfazer dos sapatos, o que fecha o poema é uma dessas “pequenas teses” das quais falamos aí em cima: “Também é isto a morte: / um pequeno conjunto de ossos soltos / dentro de um sapato”.

 

O movimento impresso neste poema atravessa grande parte do livro: a narrativa de uma experiência particular – seja de um Eu, seja de um outro, seja de uma situação com contornos de local e data muito bem definidos – tem como ponto de chegada uma espécie de “moral da história”. É precisamente este o caráter de exemplaridade sobre o qual falamos anteriormente.

 

Aqui, essa experiência particular, que serve de exemplo para transmissão de um conhecimento caro à sobrevivência de um coletivo, operaria como um resquício ou, ainda, permanência das formas orais de narração – ainda que esta permanência só possa acontecer a partir de sua transformação. Desta forma, pouco importa se essa experiência é factual – como a linguagem quase “jornalística” dá a ver – ou ficcional.  Vale notar, ainda, o que Benjamin nos diz em “O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, isto é, que essa experiência transmitida deve guardar sempre espaço para a interpretação. Assim, as pequenas teses, em Édipo, não buscam reduzir a experiência em chaves de leituras programáticas, mas incitam o leitor a participar da história narrada, bem como aqueles recursos utilizados pelo próprio poeta ao ler seu livro perante o público. Esse participar da história, é, sem dúvida, o que incita à/a participação em uma sabedoria que suplanta o conhecimento individual.

 

Aqui as coisas não terminam, os mortos não morrem. Aqui, assim como no começo de Fim de partida, que Samuel Beckett faz Clov anunciar “Acabou, está acabando, quase acabando, deve estar quase acabando”, as palavras emulam a vida e os destroços de nossa época. No entanto, eles se põem, como anuncia o poeta na epígrafe adaptada da Bíblia (Ezequiel 37 1:14) à espera de um sopro. Se os fatos são assim tematizados, poderiam nos questionar o por quê de narrar? E, sobretudo, por que essa narrativa faz questão de se mostrar como um retalho de outros textos? 

 

Nos poemas de Édipo Ferreira, se misturam as vozes de autores como Baudelaire, Rimbaud, Cortázar, Ana C., T.S. Eliot, com as de amigos. Diríamos que, longe de se propor como cinismo, postura inerente à total descrença, a ética do livro se lança entrelaçada à sua estética. Isto é, busca no barulho dos ossos secos, “um som de chocalho” que os façam se juntar e, como em um passe de mágica, ganhar novamente vida. E esses fragmentos de texto apenas ganham novamente vida, porque esse sopro se dá a partir de elementos concretos da própria vida: se notarmos os agradecimentos do livro, vemos essas presenças – das afinidades eletivas e das eleições afetivas, desculpem-nos o clichê – lado a lado. Ou seja, arriscamos dizer, que são os amigos que sopram os ossos secos da tradição. É assim, que as “janelas fechadas” de Baudelaire, ou os navios (não) afundados de Ana C., ganham vida diante da ruptura brusca da morte de sua amiga Ingrid, por exemplo. O que é bonito nesse movimento, nos parece, não é apenas a equanimidade entre o cânone e a vida, mas que ao serem trazidas “para respirar / na superfície”, compõem uma espécie de saber comunitário e coletivo.

 

Em suma, Ossário segue um movimento quase sísifico de escrever dentre as ruínas de uma época em que “qualquer coisa é maior que a vida”. Tentando sempre falar a partir de fins que não cessam, o único fim que não parece ser tematizado é justamente o fim da arte de contar histórias – a despeito das previsões benjaminianas. Em um tempo como o nosso, onde os horizontes revolucionários inexistem e todas as tentativas de mudança nos parecem levar ao mesmo e ao sempre-igual, o poeta, aqui, se nega a dar conclusões fechadas ou falsas possibilidades de redenção e escape desta situação. Mas também não vai recair em um fatalismo, ceticismo ou individualismo radicalizado. Nem aderindo cegamente à nossa época, nem negando-a de modo acrítico, Édipo Ferreira faz uma aposta: contar histórias; transmitir experiências como a maneira de fazer persistir qualquer coisa de humano no meio desse amontoado de ossos – “ainda que não soubéssemos pra quê”. 

 

Referências

 

BECKETT, Samuel. Fim de Partida. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

BENJAMIN, Walter. “O Narrador:considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:_____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 8ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 197-221.

FERREIRA, Édipo. Ossário. Rio de Janeiro: 7Letras, 2022.

NOVARINA,  Valère.  Carta  aos  Atores  e  Para  Louis de Funès. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.

WITTGENSTEIN,  Ludwig. Tractatus  Lógico-philosophicus. São Paulo: EDUSP, 2001.


Beatriz Malcher (1990) é crítica literária, poeta e faz pós-doutorado em Teoria Literária na UFRJ.

Gabriel Gonzalez (1987) é poeta, engenheiro e estuda poesia contemporânea na UFF.

 

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