Em 2022, em uma visita a Santiago, fui a uma leitura pública da qual a poeta Elvira Hernández participaria. Cheguei alguns minutos antes de começar e a vi na entrada do espaço reservado para a leitura no Centro Cultural Gabriela Mistral. Pedi licença, me apresentei e perguntei se autografaria um de seus livros que eu levava em minha mochila: El orden de los días, antologia publicada em 2016 pela Lumen. O livro já trazia uma dedicatória da amiga poeta Catalina Ríos, que estudou a visualidade na obra de Hernández durante sua monografia de graduação. A ela somou-se a assinatura de Hernández, um tímido gesto, de poucas palavras, recusando-se a assumir uma postura de figura pública, de superstar da poesia.
No Brasil, a poesia chilena ainda encontra dificuldade de adentrar nos circuitos de leitura – por uma série de motivos que, grosso modo, envolvem os eixos de interesse do mercado editorial e a falta de políticas de cultura e de integração regional. Aqui, o nome de Elvira Hernández ainda é pouco conhecido. Enquanto isso, no Chile, a poeta é uma das mais proeminentes, ainda que ocupe um lugar menos central, mais afeito ao transitório, ao marginal, ao que é silencioso.
A figura autoral de Hernández, pseudônimo de María Teresa Adriasola, se define pelo interstício e pela silenciosa invisibilidade. Mesmo a escolha do pseudônimo cumpria esse papel, mesclando uma opção ética e uma necessidade política diante da censura e da perseguição iminente durante a ditadura militar. “Hubo una época en Chile de nombres poéticos, simbólicos. Este, en cambio, es el anonimato total”, descreveu Hernández em uma entrevista. Essa postura também se imprime em sua obra poética, de sentidos evasivos, rebeldes a enquadramentos e movimentos controladores ou afiliativos.
Em setembro de 2024, porém, essa postura se encontrou, paradoxalmente, com um reconhecimento: o recebimento do Prêmio Nacional de Literatura, uma das mais reconhecidas premiações culturais em seu país. Rapidamente, jornalistas passaram a veicular uma informação trazida pela própria ministra da Cultura, Carolina Arredondo, segundo quem Hernández seria a única poeta mulher a receber a premiação desde Gabriela Mistral, em 1951. Há, portanto, uma única mulher poeta viva recebedora do Prêmio Nacional. Além dela, uma única romancista mulher, Isabel Allende. De resto, puros hombres.
Além de colocar os holofotes sobre uma poeta que, digamos, "merecia" um reconhecimento institucional à altura de seu reconhecimento público nos meios literários contemporâneos, mas que desejou não ser vista, a premiação levanta questionamentos sobre um sistema literário ainda marcado por hierarquias, exclusões e exceções. Levanta também celebrações interessantes, como a colagem em muros dos poemas de La Bandera de Chile, emulando e relembrando práticas de circulação clandestina dessa obra central de Hernández escrita em 1981, em plena ditadura militar.
Os poemas de La Bandera de Chile circularam clandestinamente durante toda aquela década até serem publicados por uma editora argentina, um ano após a retomada da democracia no Chile. À época, a obra foi uma reação à ditadura; sua intenção política esteve profundamente amalgamada ao trabalho linguístico. Isso se vê nos experimentos do texto, que propõe processos de desestabilização e renúncia à linguagem racional, convencional, oficial – outras formas de renunciar à bandeira, ao Estado, à pátria e a um estado de coisas passivo e hierárquico. Como uma sucessora da antipoesia, Hernández cria sua própria antibandeira.
Procedimentos de rebeldia
Em La Bandera de Chile, isso se dá, por exemplo, nas menções chistosas à história da formação nacional e a seus supostos heroóis, desbancados, dessacralizados. Também acontece nas propostas de usos contraoficiais da bandeira, materializados em poemas visuais que rechaçam seu hasteamento militar. Aparece na corporificação de uma grande bandeira-mulher, metáfora antipatriarcal de tetas viejas e chuchita para el aire. A bandeira também é deslocada como signo de disputa econômica e territorial, trabalhando a relação entre a experiência ao mesmo tempo precária e resistente das ocupações populares e o empobrecimento que fez parte do programa ditatorial, compondo o ambiente asfixiante de repressão. E, por último neste parágrafo, mas transversal a toda a obra, essa experimentação radical acontece no uso de torções e distorções de linguagem, de quebras de sentido, ambivalências e, especialmente, de ironia.
Tomo a liberdade de traduzir um dos poemas de Hernández onde se lê algo dessa escrita acima mencionada.
Em outros tempos
representa a Bandeira do Chile
uns 15% ali onde brilha a estrela para 10%
representa
de brancos uns 20% de muito pálidos
representa a Bandeira do Chile em vermelhos a Bandeira
do Chile
nunca 100% nunca
o 100% do branvermezul compacto
hoje
Os elementos que formam a bandeira se confundem, se desestabilizam entre si devido às ambiguidades provocadas pela ausência de pontuações, pelas inversões sintáticas e pelos cortes de verso abruptos, formando encavalgamentos ou encadeamentos. Na desagregação do poema, da bandeira e da linguagem, há uma conta que não fecha: a soma dos valores apresentados não chega sequer à metade de 100%. O texto se parece muito aos históricos decretos militares que descrevem a composição oficial da bandeira, mas nele tudo está bagunçado. Em 1994, a crítica Nelly Richard já se atentava para a recorrência do procedimento paródico entre a geração dos anos 1970-80, em uma luta de textualidades capaz de questionar as convenções, tradições e vocabulários oficiais, e, em última instância, o próprio ato da conceitualização pela linguagem. Des/reordenando a composição simbólica da bandeira, suas cores e formas, o poema também diz sobre a conturbada composição social do país, cifrada pelo mercado e pela censura.
Signos de prisão e liberdade
A Bandeira do Chile é usada de mordaça
e por isso seguramente por isso
ninguém diz nada
—----
A Bandeira do Chile declara dois pontos
seu silêncio
Em 2020, durante um discurso performático ocorrido no contexto uma exposição chamada "Canción Nacional" – que, a partir da efervescência política e cultural do estallido social de outubro de 2019, reunia obras de arte relacionadas à crítica transgeracional à truculência nacional – a artista plástica Cecilia Vicuña relata: "recuerdo otras líneas que escribí en honor de Elvira. Ella dijo, o yo la oí, o yo pensé oyéndole, que este era un poema que no podía ser impreso y que acabó como un prisionero". No momento de sua elaboração, a obra foi prisioneira da censura: sua primeira versão, que se publicaria na revista Vanguardia, do Movimiento de Izquierda Revolucionario (MIR), foi confiscada pela Central Nacional de Informações (CNI) da ditadura, junto com diversos outros materiais do movimento.
Por cinco dias, também Hernández ficou presa no Quartel Borgoño, então um dos espaços principais de operação da CNI, localizado em Santiago e atualmente considerado um sítio de memória, desde decreto de 2016. Segundo a poeta, a prisão foi 'por engano' tendo sido confundida com uma militante procurada sob o codinome de Mujer Metralleta, antes ainda de escrever sua primeira obra e de eleger seu próprio codinome. "Ser prisioneiro de guerra é uma situação limite ao extremo", relatou certa vez Hernández em uma entrevista sobre esse acontecimento.
Também a própria bandeira em certo momento foi prisioneira, em um sequestro orquestrado pelas Milícias Populares do MIR, um ano antes da escrita da obra por Hernández. Apostando na ação direta simbólica como estratégia política de enfrentamento ao regime ditatorial, o movimento raptou a histórica bandeira do Chile datada do período da Independência, reivindicando a retomada de alguns dos valores transformadores daquele momento histórico. O sequestro, que durou décadas, seria, naquele caso, uma reivindicação de liberdade. E é inspiração para um dos poemas de La Bandera de Chile, no qual uma bandeira foge do repouso cego da história guardada nos museus: "A Bandeira do Chile escapa para a rua e jura voltar/ até a morte de sua morte".
A volta da bandeira
O sentimento confinado nessa bandeira prisioneira pôde encontrar vazão no período pretensamente democrático subsequente, como um aparato de memória, um dispositivo testemunhal para interagir com o passado e o presente. Assim, quatro décadas depois, a obra faz parte de um conjunto contemporâneo de ações políticas e artísticas que chacoalham os limites das instituições, questionam certas ideias de "chilenidade" e revelam contradições e relações de poder. A poesia de Elvira Hernández, inclusive as diversas obras que se produziram depois, como Carta de viaje (1989), Santiago Waria (1992), Seudoaraucana y otras banderas (2017) e Pájaros desde mi ventana (2018), entre outras, está aterrada nos territórios comunais das lutas populares e do que é cotidiano, menosprezado e subalternizado. Assim, segue sendo um elemento na formação de comunidades críticas e utópicas.
São diversas as menções atuais aos versos de "La Bandera de Chile" na última década de manifestações populares no Chile – da revolta estudantil pingüina de 2011 ao estallido de 2019 e suas decorrências políticas, entre vitórias e derrotas. Além disso, as aparições desviantes de bandeiras indígenas, vinculadas a princípios plurinacionais ou antinacionais, como a Wenüfoye e ao Wünelfe mapuches, assim como bandeiras chilenas em versão preta e branca são rebeldias estéticas que seguem dialogando com as palavras de Hernández. Essas movimentações, entre passado e presente, trabalham para desconstruir o símbolo nacional e, por conseguinte, desconstruir o próprio sujeito nacional, com seu imaginário, seus pressupostos, tradições, linguagens e horizontes. Leiamos!
Helena Zelic é poeta, professora e pesquisadora. Mestra em Teoria e História Literária na Unicamp, estuda a poesia de Elvira Hernández e Raúl Zurita. Publicou "A libertação de Laura" (2021), "Durante um terremoto" (2018), entre outros livros e plaquetes.
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