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Retrato do poema quando Victor Heringer


1 – Metamorfoses

 

Um escritor vai se tornando cada vez mais aquilo que escreveu. O corpo encarnado pouco a pouco se encaderna. Mas não vamos por isso pensar que sua matéria, – nesse estado vegetal –, se torna mais estável. Não se torna. Muito menos no caso do escritor victor heringer, que não tem cessado de nascer ao longo dos anos, ganhando quilos, novos contornos, modelando um rosto. Até bem pouco tempo o espólio poético do victor se resumia a Automatógrafo, (livro de estreia publicado aos 22 anos), às plaquetes Planetas menores e O escritor Victor Heringer, todos pela 7Letras. Isso, além de publicações esparsas no Facebook, Youtube e colaborações para revistas e blogs, era praticamente tudo.


Até agora, porque de repente cai no nosso colo um colosso chamado Não sou poeta. 373 páginas de poemas reunidos, organizado pelo seu irmão, Eduardo Heringer, e posfaciado por Ricardo Domeneck. No posfácio “Entre o maiúsculo e o minúsculo” Domeneck nos aconselha um método: procurar no menor o maior. É no microrganismo que Victor faz aplicações ao cosmo; e lá no cosmo procura, não a carcaça dos grandes satélites, mas o corpinho esquecido da Laika. Para observar esse fenômeno na prática arrisco um palpite, e esse palpite acho que foi o próprio escritor heringer quem nos soprou em O escritor Victor Heringer. É nesse livrinho, o mais silencioso de todos, com uma coleção de 12 fotografias acompanhada de índice e poema final, que victor escreve os indícios de sua lacônica biografia literária.

 

1)    a mão esquerda do escritor victor heringer

2)    a mão direita do escritor vitor heringer

3)    o passaporte vencido do escritor vivc h.

4)    a carteira de trabalho do scriptor vitto err

5)    os sapatos do pai morto do escovor fito c

6)    o ferro de passar do ex vuitton herr

7)    coisas encontradas pelo estrotter vi.hr

8)    a 2º vez que o pqn esq vh apareceu no jornal

9)    foto duma foto do esc vic erê

10) a comida favorita do escroque vvvv éééér

11) o erê padroeiro do auteur bitorrérim

12) uma pedra de rio do escrriverrérum

 

Quero dizer, no seu menor livro está o núcleo condensado, o centro irradiador, da obra. Uma chave é uma coisa pequena, uma porta é uma coisa grande. Pois as coisas pequenas costumam abrir as coisas grandes.


a carteira de trabalho do scriptor vitto err
a carteira de trabalho do scriptor vitto err

Profissão: “não sou poeta”. O que faz um poeta afirmar que não é poeta? Casos exemplares: Nicanor Parra também não se afirmava como tal. Era um antipoeta ou um fabricante de artefatos, porque em seus livros “La palabra arco iris no aparece en él en ninguna parte, / Menos aún la palabra dolor, / La palabra torcuato. / Sillas y mesas sí figuran a granel” (Advertencias al lector). Já o motivo de Manuel Bandeira era sobretudo etimológico: “Poeta (etimologicamente ‘o que cria’) é o que constrói. Acho que sou mais um lírico que um poeta.” (Carta a Mário de Andrade, 19 de setembro de 1925). Vitto err, por sua vez, não era nem um antipoeta, nem um lírico, por mais que, sim, o fosse. Seus motivos eram sete, e estavam todos declarados no poema que deu nome ao livro [1]. Em ordem cronológica: 1. a idade 2. o emprego estável 3. os sapatos 4. a nudez 5. a mão esquerda 6. os dedos frios 7. a tristeza incomparável à dos barbeiros.


Sete motivos contra 373 páginas de poemas. Pensaríamos: que esforço para ser o que não se é; “¡Qué esfuerzo del caballo por ser perro! / ¡Qué esfuerzo del perro por ser golondrina!” Mas não. Eu arriscaria dizer que vvvv éééér não era mesmo poeta. Era sobretudo poema. Cheguei a essa conclusão enquanto lia sua dissertação Enrique Vila-Matas: A Ironia E A Reinvenção Da Subjetividade. No capítulo “Eu, máscara de mim”, vuitton herr usa como epígrafe o seguinte trecho de Jaime Gil de Biedma, poeta espanhol:

 

Por que escrevi? As minhas respostas favoritas são duas. Uma, a minha poesia consistiu – sem eu o saber – numa tentativa de inventar para mim uma identidade [...]. Outra, que tudo foi um equívoco: eu supunha que queria ser poeta, mas no fundo queria ser poema. [2]

 

É possível que vvvv tenha motivos o suficiente para não ser poeta. Talvez, recusando o posto, tenha tido enfim sucesso ao se tornar poema. É exatamente essa sua tese quando defende ao final do capítulo citado, – argumentando contra a morte do autor –, que “teríamos que abandonar a escrita (deste trabalho, digamos) e empreender, nós mesmos, a metamorfose: teríamos que nos tornar obras de arte”. [3] Nesse sentido, vi.hr é a radicalização de um fenômeno que constitui o testemunho da transformação do sujeito em objeto de si. E, na tradução da carne em poema, é natural que alguma forma se deforme.

 

O escritor Victor Heringer → vitor heringer → viv´c h. → scriptor vitto err → escovor fito c → vuitton herr → estrotter vi.hr → pqn esq vh → esc vic erê → vvvv éééér → auteur bitorrérim → escrriverrérum.

 

uma pedra de rio do escrriverrérum
uma pedra de rio do escrriverrérum

Ou seja, cada vez mais a identidade se esvai e vai de escritor victor heringer à escrriverrérum, nessa espécie de riverrun joyciano. Isto é, nesse riocorre. Isto é, naquela gentileza de Heróclito que, ao dizer que “não entramos duas vezes no mesmo rio porque o rio já não é o mesmo”, permite que nós mesmos cheguemos na conclusão subterrânea de que “nós também não o somos”. Isto é, de que somos a marca que a água esculpe na pedra. Isto é, o último estado físico, nosso e do escrriverrérum.

 

2 – Herança

 

os sapatos do pai morto do escovor fito c
os sapatos do pai morto do escovor fito c

A família de um escritor é um pouco maior do que a família de um não escritor, por menor que seja sua família. Isso porque um escritor descende de três árvores, a materna, a paterna e a literária. A terceira delas costuma ser a mais importante, porque é dela que herdamos nossa voz. Mas a família de onde herdamos os bens do nosso sangue não pode ser ignorada. No caso do auteur bitorrérim, a família verdadeira confirma a postiça. Em ambas, o humilde “brasão é desenhado a creiom de cera”: filho que herda do pai morto um sapato surrado e neto das pequenas façanhas cotidianas, vic eré é ele próprio, por imposição atávica, um construtor dos mini monumentos.

 

Meus pais se conheceram na fábrica de tecidos Nova América

hoje um shopping center temático.

 

Em 1824, a bordo do Argus, meu antepassado

alfaiate ou joalheiro de Munique

aportou em Niterói

 

[...]

 

Os do outro lado vieram de al-Ândalus

simétricos bárbaros de cabelo longo

e tardes últimas e sangue e música.

 

é a linha que liga um ponto ao outro:

 

Você.

Você, o mais médio dos homens, bissetriz.

Você tem cara de turista.

Suas raízes são aéreas

como as de certas árvores.

 

(Sebastianópolis (Abandonada)

 

E além de bissetriz que conecta os de cá                                          e os do outro lado,

é também o ponto final; o produto de uma história que foi se minusculizando; uma linhagem que foi dos grandes crimes do tataravô aos pequenos delitos do avô:

 

O meu avô criava caramujos

e dizia que era escargô.

Ele jogava suco de beterraba

em cima de açúcar União

e vendia para os da cidade grande

dizendo que tinha extraído o açúcar

da beterraba. A turistada comprava.

 

(No colo do futuro)

 

Até chegar em si: “Você é tataraneto de crimes históricos, / mas individualmente é inofensivo.[4] A terceira árvore genealógica também se faz muito presente. O pqn esq vh sempre revelou sua descendência literária. Não por acaso elege para sua família postiça os grandes escritores humildes que escreveram com a pena da galhofa & o auxílio da lupa: Machado de Assis e Manuel Bandeira.

 

Machado de Assis e Manuel Bandeira são meus dois pais. As obras me influenciam como autor, mas sobretudo ajudaram a forjar minha identidade, que aos poucos (esta é a esperança do ficcionista) vai se diluindo nos meus próprios livros, até que eu possa ser ninguém em paz. Machado me deu os olhos, Bandeira me deu o coração. [5]

 

De Machado herdou principalmente a ironia. A ironia enraizada desde a construção frasal até a contrução heterodoxa de seus romances. O bruxo do Cosme Velho esteve com ele desde o início:

 

O primeiro livro que pedi para comprarem para mim foi um Dom Casmurro desses de banca de jornal, quando ainda mal sabia ler. Algo na capa, talvez a foto barbuda do autor, me encantou. Anos mais tarde, descobri a família intelectual à qual ele pertencia: Machado era filho de Laurence Sterne (como admite em Memórias póstumas de Brás Cubas), tataraneto de Luciano de Samósata, irmão dos irônicos alemães… Sou um agregado dessa família, vivo de favor num quartinho qualquer. [6]

 

Os traços de Manuel Bandeira são mais visíveis na sua poesia. Por mais que o poeta tenha morrido sem deixar herdeiros, já dizia em seu “Testamento”, “não tive filho de meu”, Bandeira é pai ou avô de metade dos poetas em atividade atualmente, mesmo que não saibam da nobre linha humilde da qual descendem. Este é disparado o poeta mais referenciado por vitor, seja nominalmente ou pela evocação de um tema, de uma técnica. Compare por exemplo “Armarinho” (VH) com “Camelôs” (MB). Mas o Bandeira da influência de v.h é sobretudo o Bandeira sob influência de Mário de Andrade. Só quando Victor provoca os limites do que é ou não poesia é que percebemos as semelhanças mais insuspeitas entre pai e filho: quando compõe ao seu modo um “poema tirado de uma notícia de jornal”:

 


a 2º vez que o pqn esq vh apareceu no jornal 
a 2º vez que o pqn esq vh apareceu no jornal 

ou quando transforma em poema o recibo das compras semanais no supermercado Zaffari ou no Hortifruto:

 


fragmento de “poema reduzido: 7 dias”
fragmento de “poema reduzido: 7 dias”

ou quando encontra um manuscrito escrito por uma criança no deque da praia do Flamengo:

 

“No deque da praia, a giz” [7]
“No deque da praia, a giz[7]

Esses exemplos demonstram, dentre outras coisas, que na poesia o escovor fito c é também capaz de maiusculizar o minúsculo; de transformar a poesia mais chã, a circunstancial, na mais ousada. Além de se implicar no poema não somente pelo simples e desgastado artifício do vocábulo “Eu”, e sim pelas próprias provas (fotos, notícias, recibos) de uma existência.

 

3 – Permanência

 

o passaporte vencido do escritor vivc h.
o passaporte vencido do escritor vivc h.

Um passaporte vencido, em última instância, quer dizer: Eu vou ficar aqui. Não vou-me embora, não há Pasárgada, nem cânon nem fuga. Em suma, o voumimborismo que alimentou boa parte da nossa literatura é recusado. Um passaporte vencido quer dizer:

 

Quando partiram as caravelas

eu fiquei na praia

não praguejei.

Pus os óculos escuros e sorri.

            Deixa ir, deixa ir.

 

(Noturno para astronautas)

 

Não que essa permanência seja somente imposição dos prazos de validade, e sim da vontade. A vontade de permanecer profundamente brasileiro:

 

Ó o meu país

o meu país é de fumaça

e eu amo vocês inteiros

mas não tenho para onde ir.

Quero ficar.

 

(Noturno para astronautas)

 

e permanecer profundamente carioca:

 

Não sou de ferro, não tenho armada. Sou mui leal, não sou heroico. Mas não me deixem morrer fora do Rio.

 

(Sebastianópolis (Abandonada)

 

Paráfrase da famosa glosa de Gonçalves Dias, “Não permita Deus que eu morra / Sem que eu volte para lá”, mas do ponto de vista de quem ficou, arraigado na terra de nascença; do ponto de partida que é não partir. O dado espacial de Gonçalves Dias é emparelhado ao dado temporal de Drummond, quando ambos, (“Canção do exílio” e “Nosso tempo”) são glosados juntos, em nova edição revista:

 

Ele diz o nosso tempo: tempo de por que não?

Ele diz ninguém mais tem saúde para canções de exílio.

 

(Sebastianópolis (Abandonada)

 

O que nesse discurso teria de circunstancial, logo ganha contornos cosmológicos: “Desarrumei as calçadas do planeta, não tenho mais como fugir.” Vemos sua sanfona tomar fôlego ao expandir e assim fundir numa só urdidura o micro ao macro para confirmar no todo o que já tinha sido confirmado no particular: a permanência.

 

O estar aqui e agora é aceito porque é trapaceado. O estar aqui é estar em todo lugar. O estar no agora é estar o tempo todo em todo o tempo. O pantempo de uma dimensão circular que ele tirou do T. S. Eliot, quando ao acaso encontra em Londres um companheiro que batalhou ao seu lado nas galerias de Mylae em 260 a. C.: “There I saw one I knew, and stopped him, crying: Stetson! / You who were with me in the ships at Mylae!” (Waste Land). Escrriverrérum, por sua vez, vê passar o vendedor ambulante de vassouras do séc. XIX: “Não foi você / aquele fotografado por Ferrez no século retrasado?” (Sebastianópolis (Abandonada). É a concepção de um tempo circular que o permite afirmar “meu avô é o futuro” ou ver a história passar na sua frente, infelizmente se repetindo. Mas nunca desconfiando do poder que nos é permitido de mudá-la, deixando entrar por um ouvido e sair por outro o conselho de Albert Camus:

 

teve aquele conselho do camus pro gerardo mello mourão

os escritores devem sofrer a história

não tentar fazê-la

sei não sei não

 

(Paulistanas

        

A História não trata do que aconteceu. A Poesia não trata do que poderia ter acontecido. Talvez para Aristóteles. Mas o que se confirma nos poemas do vi.hr é que a Poesia trata da História que ainda vai acontecer, porque ela mesma é a fábrica. Talvez por isso esteja sempre tão conservada, com aparência tão jovem: ela se move em um estado anterior aos fatos. Espero que por conta disso o poeta victor heringer esteja também sempre por acontecer entre nós. Seus poemas com certeza têm propulsores o suficiente para atravessar a difícil atmosfera do futuro. O que eu posso desejar apenas é boa viagem.

 

4 – Últimas palavras

 

Bom, as luzes já estão se apagando então temos que terminar logo nosso ensaio. Vou terminar assim mesmo, de maneira incompleta porque me rendo. Quando aceitei o convite de escrever sobre a poesia do scriptor vitto err, não sabia o tamanho do buraco que eu estava me metendo. Ou melhor, do buraco que eu mesmo estava cavando, com colherzinha de chá. Não sou poeta dá a sensação de quem se diverte num sítio arqueológico, toda hora achando pérola, jóia, pedras de toque. Mais do que isso, me deu a sensação de que eu estava na companhia de um novo amigo. Uma noite, já tarde, eu falava eufórico com a Bea sobre os poemas do v.h. A Bea olhou pra mim antes de ir pra cozinha e disse: vocês provavelmente seriam amigos. De minha parte digo que com certeza sim. Sei disso porque o sou agora, na vida que podia ter sido e que não foi. Mas tudo bem. Eu vim aqui só pra dizer, em termos literários, que Victor Heringer permanece enquanto poema, porque sua poesia é o que podemos chamar de uma poesia da permanência. 12.12.24. 02h03.

 



 

  

Escrito para A bobina por Lucas ferreira, que nasceu em 1998 na cidade de Barueri (SP). É poeta, editor da Fictícia e da revista Parque dos parquinhos. Estuda literatura brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

& agradece

a Lenio Carneiro Jr.

Beatriz Malcher

e Bea Aragão


[2] Nota de VH: A breve nota autobiográfica de Biedma, da qual transcrevemos apenas um trecho, é citada por Vila-Matas em Bartleby e companhia, p. 43.

[3] Heringer, Victor. Enrique Vila-Matas: A ironia e a reinvenção da subjetividade. Dissertação de Mestrado defendida em 2014 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 76.

[4] Transcrição do comentário feito por Lenio Carneiro Jr. na margem desse texto: “Não sei se cabe aqui, mas vai de curiosidade. A questão da herança não é uma coisa só nos poemas. Nos dois romances dele, isso é bem central, principalmente no Glória. Como alguém que pensou mais a ficção dele do que a poesia (embora eu ache difícil pensar a poesia dele longe da ficção), é bom ver que esse traço da família também é algo que chama atenção quando se olha só pros livros de poema dele :)”.

[5] “Sobre escrever, segundo métodos diversos”. Caderno 4: Modos de escrever, Lisboa: Enfermaria 6, nov. 2017. Apud. “Entre o maiúsculo e o minúsculo”, Ricardo Domeneck.

[6] “Uma maneira de estar no mundo”. Entrevista concedida a Fabiane Secches. Publicada pela revista Deriva em 9, fev. 2017.

[7] Nota VH: Transcrição de um desenho de criança encontrado no deque da praia do Flamengo no dia 26 de maio de 2013. Madeira e giz branco. Sumiu no dia seguinte: “01987654321⋂”

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