Nunca peguei um dicionário tão fino.
Os dicionários que já consultei têm algumas centenas de páginas; uns mais velhos, normalmente em brochura; outros mais novos, com capa dura, mas nenhum fino. O dicionário ou pai dos burros, como era chamado aqui em família, frequentemente, é uma obra de referência que contém uma lista de palavras organizadas em ordem alfabética, acompanhada das definições de uma palavra, às vezes da pronúncia e da classe gramatical a qual ela pertence: se é substantivo, se é adjetivo, se é verbo ou advérbio etc. Frequentemente, o dicionário apresenta também exemplos de usos daquele termo. O dicionário de Camila Prando não é um dicionário qualquer. Se a pessoa leitora considerar o sentido literal, trata-se de um Dicionário de palavras subterrâneas, ou seja, de palavras encobertas, enterradas. Mas, em um átimo metafórico, poderia se referir a palavras-ideias, palavras-pensamento ou palavras-sentimento. Todas elas não expressas abertamente, mantidas ocultas.
Dicionário finíssimo!
Insisto na fineza, pois a materialidade do livro importa: objeto-sujeito, sujeito-objeto. Gérard Genette, teórico literário conhecido por seus trabalhos sobre a transtextualidade[1], conceito que abrange diversas formas de relação entre textos, fala da noção de paratexto, das informações paratextuais[2] – aquelas que estão à margem do texto, na periferia do texto, que não são o texto em si, mas que fazem parte da compreensão do dito cujo. Genette cita como exemplos de paratexto, o prefácio, o posfácio, eventuais notas de pé de página, ilustrações, mas também a capa, a orelha, informações sobre a tiragem, a dedicatória etc. A noção de paratexto quebra, por assim dizer, com a diferença entre o que está na capa, o que está dentro do livro ou o que está na quarta capa, por exemplo.
O Dicionário de palavras subterrâneas, de Camila Prando, publicado pela editora Avá, em 2021, faz um mix de tudo isso, na melhor acepção da palavra, além de apresentar-se nesta “zona indecisa” entre o dentro e o fora. Quer-se dizer que o gênero/suporte, aqui, é subvertido. Espere um dicionário com palavras, mas frases inteiras também. Bem inteiras! Espere por um dicionário cujos verbetes não trazem sua transcrição fonética, mas mergulham nas texturas e sons evocados nas imagens e notícias que os acompanham. Sim, trata-se de um dicionário com imagens, também visuais, mas não o reduza a um dicionário ilustrado.
São as informações paratextuais, que parecem estar fora do texto, mas que são também o texto, que nos permitem pensar em não ter “fora do texto”. Tudo é texto. Tudo é dentro. Por exemplo, a pessoa leitora de Prando não pode passar desatenta sobre o fato de que Camila nasceu em uma cidade chamada Telêmaco Borba. T.E.L.Ê.M.A.C.O. B.O.R.B.A. Telêmaco Borba não é um nome qualquer que pode passar despercebido. Com respeito à cidade, para a possibilidade de leitura que ora apresento, vou deixar o sobrenome de lado. Vou guardar o Telêmaco, que por si só já encalacra muita trama. Histórias que trazem duas chaves de leitura para falar do Dicionário de palavras subterrâneas, de Prando.
Telêmaco é filho de Penélope – aquela que cose e descose esperando o boy dela voltar da Guerra de Troia – o Ulisses. Esse camarada não estava a fim de ir para a guerra, de se juntar ao exército para lutar lá na tal da batalha e tudo mais. Ele finge loucura justamente para poder se afastar da possibilidade de ser convocado. No entanto, essa loucura é posta à prova: o filho dele é colocado diante de um arado e lhe dizem: se você está louco, passa com o arado por cima do seu filho. Evidentemente que ele não consegue cumprir com a ordem, provando sua sanidade mental. É assim, portanto, que o Brad, com Pitt e tudo, é enviado à guerra.
Coser e descoser, como a Penélope, é metáfora conhecida para falar de texto, da trama do texto; o tecido a ser fiado, desfiado. É uma imagem démodée (igual a essa palavra...) super batida, mas ao mesmo tempo eu transformo essa afirmação em pergunta: é uma imagem batida, a noção de texto como tecido, trama, costura?
O livro de Camilla Prando apresenta uma outra maneira de lidar com essa trama, um outro modo de tornar o texto literário coeso, de trazer uma narrativa, servindo-se de outras maneiras de alinhavar texto e imagem – essa informação paratextual, cuja importância tem de ser sublinhada.
Meu segundo mergulho no Dicionário é sobre arrastar do arado do pai do Telêmaco. Dessa vez parece que o arado passa sobre as palavras. O que sobra desse arado que passa sobre essas palavras? Treze! Sobram treze palavras.
Organizadas de Urubu à Gravidade, ou seja, daquilo que voa àquilo que faz cair – de urubu à gravidade, de U a G. Da última vogal aprendida na escola à letra G. Caminho inverso? Ordem desalfabética? Ora, já sabemos que este dicionário não é em nada um dicionário ordinário. É finérrimo!
Finérrimo, mas o urubu está atento à carne. No início da leitura, ele mostra uma atenção à carne, fareja a morte... “a menina fareja a morte se preparando para devorar sua carne”, “a menina fareja a morte se preparando para devorar sua carne”... sua carne? a sua própria carne ou a carne da morte?
De qualquer forma, faminto começa esse dicionário. Dicionário de carne e osso. Carne não enterrada, carne à mostra, exposta. Os leitores desse dicionário poderiam pensar também em um livro de aventuras e voltar para a história de Telêmaco, Penélope. Essa leitura é uma possibilidade muito proveitosa para se tomar todos os riscos de uma aventura. Falo aqui de aventura no sentido mais “Jules Verne” da palavra; aquela aventura errática, iniciática, ao fim da qual se aprende alguma coisa ou se aprende algo sobre si mesmo.
A gravidade - termo que fecha o livro, é a mesma que faz peito, bunda e pau caírem. É aquela que faz tudo procurar a direção do chão, o centro da Terra. A gravidade é a pá de cal para o “descomeço”, segundo Prando – para esse corpo que afunda na terra e inicia, talvez, outro momento.
Terras em camadas, terras que se apresentam sedimentadas tal como em outro paratexto do livro: sua capa. Ora montanhas, ora corpo de mulher; ora terra, ora água. Por que fugir de uma perspectiva vida e morte que também é apresentada nesse dicionário? Como dissociar vida e morte? Termos tão diferentes, às vezes notados como antagônicos, mas que podem se refazer, se recoser, se pensarmos na perspectiva do gozo, do orgasmo; vida e morte juntas no mesmo momento. Há em francês o termo metafórico la petite mort – a pequena morte. Um apelido para o orgasmo... Petite mort, expressão que implica êxtase e ao mesmo tempo transcendência momentânea. Como nos ensina Liana Padilha – a cantora que adora DJ’s e já deixa muita saudade: “o oposto da morte é o sexo.”[3]
Entre vida, sexo e morte e a minha relação BDSM com o Dicionário de palavras subterrâneas, de Camila Prando, vou deixar as últimas palavras da música Erotica [4], da Madonna, com o objetivo de instigar a leitora, o leitor, a se aventurar e se reaventurar, no strings attached, na leitura deste refinado dicionário.
Erotica
Romance
I’d like to put you in a trance
Erotica
Romance
Put your hands all over my body
Only the one that hurts you
Can make you feel better
Only the one that inflicts the pain
Can take it away
Edmar Guirra (1984). Bicha que escreve, é pesquisador e professor no Ensino Básico da rede pública. O tempo curra tudo (M.inimalismos, 2024) é seu primeiro livro de poeresias.
[1] GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris : Seuil, 1982, p. 13.
[2] Cf. GENETTE, 1982, p.14-15.
[3] Contra dança, de Liana Padilha e Lucas Freire, 2022.
[4] Erotica, Madonna, 1992.
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