Para disfarçar o quanto acreditam na poesia, alguns poetas costumam chamar atenção para o papel menor dela em contraponto a certa tendência eloquente que a poesia pode ter.
Uma das estratégias para valorizar a poesia como menor, por exemplo, é se concentrar no lugar comum de que a poesia (a de livro) não tem uma ligação forte com o mercado das letras. Em outras palavras, trata-se da velha cantilena: já que poesia vende menos, ela teria uma “liberdade” que outros gêneros literários, comercialmente mais populares, não teriam.
Daí para se chegar ao estatuto de “inútil” é um passo. Muito já se ouviu falar da fama de inútil da poesia e, dependendo da época, tal inutilidade pode até ser reivindicada como força discursiva da poesia.
Outra estratégia que ajuda a camuflar o fato de que alguns poetas gostam muito da poesia e ao mesmo tempo têm vergonha dela se baseia no ato de se colocarem constantemente contra ela. Há várias histórias de autores que se querem menos poetas ou que querem seus poemas menos poéticos só para, de surpresa, alcançarem a poesia.
Desde o elegante “Sou poeta menor, perdoai”, de Manuel Bandeira, até o desconcertante “Poesia”, de Marianne Moore: “Também não gosto. / Lendo-a, no entanto, com total desprezo, a gente acaba descobrindo / Nela, afinal de contas, um lugar para o genuíno.”
Aliás, tal desprezo, por parte de alguns, pode ser tão passional a ponto de desembocar na promessa redentora de abandono da poesia. Mas como se sabe, tirando um ou outro caso, quem desdenha quer comprar.
Por falar em se calar, é hora de lermos alguns versos que mudam um pouco as coisas de lugar. Trata-se de um poema do peruano Mario Montalbetti.
Ninguém disse tudo. Ninguém disse nada.
O melhor é dizer pouquíssimo.
Calar não é o mais radical.
Calar é igual a raspar a cabeça:
o cabelo cresce de novo.
Mas dizer pouquíssimo, dizer o mínimo
que se pode dizer,
isso é o que nos permite dizer algo.
Mario Montalbetti não renuncia à lógica — tão difundida entre determinados poetas — de que ‘menos é mais’, só que ele não faz tal lógica desaguar na direção de uma promessa de abandono ou silêncio. “Calar não é o mais radical”, garante o peruano.
A radicalidade buscada por ele é a de conseguir abrir espaços onde — apesar de toda interdição e mecanização da vida — se pode continuar dizendo algo que escape um pouco das formas de embrutecimento a que constantemente estamos sujeitos.
Ao invés da interrupção definitiva e idealizada, o poema propõe um tipo de atrito por meio da continuidade e da constância, atrito que não exclui interrupções e espaços vazios: “dizer pouquíssimo, dizer o mínimo.”
Em busca dessa história do mínimo e do persistente, vale ler algumas palavras da poeta portuguesa Adília Lopes. É numa entrevista de 2005 que ela diz: “penso estar a deixar de escrever poesia.”
Desde sua estreia em 1985, Adília publicou praticamente um livro por ano. E depois dessa entrevista, Adília não deixou de escrever poesia, nem de publicar. Continuou lançando um livro por ano. Mas os poemas foram deixando a feição mais evidente de poema em prol do formato menor da anotação diária e seguiram encolhendo, às vezes, até a forma do aforismo.
Em 2022, Adília Lopes publicou o livro Pardais, que é dividido em duas seções. Na primeira, há um conjunto desses pequenos poemas. O último deles diz apenas: “Aprendo a escrever com os pardais.”
A segunda seção do livro se intitula “Desenhos feitos com a mão esquerda” e é uma série de doze fotografias de um caderno. Doze vezes um caderno aberto onde lemos sempre: “Penso, logo existo”, frase escrita com a mão esquerda de quem é destro, ou seja, a mão não treinada. Para além da irregularidade da letra manuscrita, o que muda é a data e a hora: “Penso, logo existo. / 11-v-2022 12h13/ lx. 4ªfeira” ou “Penso, logo existo. / 12-v-2022 6h22/ lx. 5ªfeira” (lx. é abreviação de Lisboa) e assim por diante. Junto de cada texto há uma linha longa e emaranhada que perturba ainda mais o pensar e existir da citação cartesiana:
Não sei exatamente onde esses pardais de Adília Lopes nos levam em relação a essa história de tornar menor a poesia só porque se acredita muito nela. Mas esse emaranhado, ao lado da instável caligrafia do “penso, logo existo”, me fez lembrar de outro poema de Mario Montalbetti. Poema em que o autor homenageia um poeta sul-coreano morto prematuramente. Poema também com pardais, caligrafia e certa ideia de ininterrupção. Com ele, termino este texto.
A teoria do poema de Yun Dong-ju
Nevou toda noite.
Esta manhã os pardais
praticaram caligrafia no pátio.
Escreveram “plac, plac”
com suas patas.
Fizeram isso todo o dia.
A única coisa que podem escrever
é “plac.”
Eis a língua materna.
Eis a teoria do poema de Yun.
P.S. Dica de três textos. 1) “Poesia inútil, poesia irrelevante?”, em que Reuben da Rocha historiciza e revê a noção de ‘inutensílio’ de Paulo Leminski. 2) “Contra a poesia, contra o coração”, em que Marília Garcia discute, a partir de alguns autores, uma espécie de bem-vinda “má vontade com o poema.” 3) “O a-ban-do-no”, em que o argentino César Aira comenta, de forma bem-humorada e breve, o mito do abandono da poesia por Rimbaud. Links:
Leonardo Gandolfi para nomes próprios
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