“O desvio é sempre a possibilidade de um encontro com o outro do qual nosso corpo, por vezes trêmulo e titubeante, aproxima-se quando de si mesmo se afasta.”
Gaudêncio Fidelis
Queermuseu, 2018.
Esse horizonte de medida apresentado nas palavras de Gaudêncio Fidelis – historiador da arte e curador, é o meio através do qual essa entidade corporal se movimenta em direção ao outro; percorre o caminho desviante, que não é um atalho, tampouco um caminho errado. O desvio é a forma desse caminho paralelo àquele constituído e institucionalizado. O desvio constitui uma proposição criativa do pensamento, uma forma antinormativa e, claro, institucionalmente, menos segura de interferências.
Nesse processo des.viado e desviante, quanto mais distante o corpo posiciona-se de si mesmo, mais próximo se encontra da “verdade” do outro. Assim, o desvio encerra o paradoxo de que, ao fugir da norma, encontra-se com o outro que a própria norma tenta evitar. Se evoco, aqui, o desvio é, not only but also, a fuga de estruturas normativas que faz do trabalho de estreia de Leo Nunes – Está na hora de me tornar um homem sério (M.inimalismos, 2023) um acontecimento de transversalidade discursiva capaz de escrever e inscrever este livro em um hall de poetas perenes, híbridos e, na melhor acepção da palavra, desviantes.
Em Está na hora de me tornar um homem sério, o poeta desloca as regras heterocêntricas e heteronormativas e, para tanto, é profundamente vocacionado. Nunes esfumaça gêneros literários, escreve lançando mão de releituras ou reescrituras quando, por exemplo, depois de listar nomes de “entendidos” [1] (ou não), anuncia que vai contar a sua própria trajetória – “uma pequena trajetória de uma bicha da baixada”, filiando-se, por assim dizer, a uma tradição bichíssima que, como dizia o Seu Peru – imortalizado por Orlando Drummond na Escolinha do Professor Raimundo: “é mais um para a irmandadade!”. Essa irmandade, que se constitui também como recorte temático que escolho para tratar neste texto, não significa que é a condição sine qua non para Leo Nunes estar literatura ao lado de tantos outros nomes. É notável a frequência com que as personagens-escritores aparecem sob a forma de assombrações ou fantasmas. O exame dessas ocorrências à luz das reflexões de Jacques Derrida sobre o tema do espectro [2] é elucidativo. “Explicar-se com vários espectros”: não é isso que fazem os escritores e artistas atuais com os antecessores que os assombram? Mortos, os escritores são lembrados ou reaparecem literalmente como fantasmas. Assim, os espectros não são apenas citações ou alusões metafóricas, no sentido de uma memória que assombra a escrita dos novos escritores (sob forma de referência, citação, alusão ou intertexto), mas aparecem como figuras visíveis, invocações. Desse modo, as relações aqui estabelecidas na profusão das bichas citadas no poema de abertura do livro de Leo pertenceriam a várias modalidades: admiração, tributo, emulação, mas também contestação ou acerto de contas.
Fiz toda essa papagaiada textual sobre o desvio... blá blá blá whiskas sachê... para dizer, como Laila Dominique diria: “ – É bicha!”
Livro bicha, livro de bicha, bichérrima, bicherrerrérima, e não tem a menor condição de deixar de ser! (GUSTAVO, Paulo)
Alerta: vinhadinho
Breno de Sant’ana, 2022
3... 2... 1: calma, a resenha já vai começar
Ué, mas a resenha já não começou?
Sim, assim como em Está na hora de me tornar um homem sério, Leo Nunes lança uma contagem regressiva para iniciar o “conteúdo interno” do livro, enquanto, na verdade, o poeta também já o tinha começado. Afinal, quando e por onde a pessoa leitora começa a leitura de um livro? Pelo título, pela capa, contracapa, epígrafes, orelhas, folheando ilustrações, ou, no caso do meu exemplar de Leo, na dedicatória? São numerosas as portas de entrada para os poemas de Leo Nunes. Enfim, muitas informações importantes que julga-se frequentemente serem coadjuvantes ao “conteúdo interno” do livro, mas, definitivamente, não o são. Quantos e quais caminhos de leitura pode a frase que inicia a minibiografia do poeta impressa na orelha do livro - “Leo é poeta quando dá”? Fala-se, aqui, da dimensão do gozo que a poesia pode propiciar? Teria isso algo a ver com o “conteúdo interno” dos poemas de Leo? Em uma de suas epígrafes, o poeta assina: “Não me interessa a dor”. Anunciando que dores não prevalecerão como fogo no rabo para uma escrita menos preocupada em responder às expectativas monotemáticas da norma, Leo se filia e se comunica com os versos do poeta Francisco Mallmann: Não vou / perpetuar a imagem / já tão difundida / de nós chorosas / lamuriosas não [3]”. Já que mencionei a dedicatória como informação paratextual importante, faço questão de citá-la tal qual consta do meu exemplar: “Para Edmar, que já me conhece da viadagem e agora lê este testemunho”. Ora, o termo testemunho não pode passar de maneira despercebida. Um testemunho pode ser uma narrativa de vida. É também um gênero textual, assim como as biografias, as confissões, as autoficções. Ao afirmar na despretensiosa e carinhosa dedicatória que se trata de um testemunho, Leo anuncia que dirá de experiências particulares, íntimas. Notem que todas essas informações periféricas ao texto compõem o texto e já trazem meios contundentes para a pessoa leitora explorá-lo.
Deu veado na cabeça ou Jogo da bicha Lucas Assumpção, 2019
Capa é importante! Mexe diretamente no sistema límbico da pessoa leitora. Capa é o cartão de visita, os dentes do livro. Uma chave de leitura que gostaria de explorar começa pela imagem que ilustra a capa de Está na hora de me tornar um homem sério, cuja edição é muito bem cuidada pela casa M.inimalismos. A imagem ilustrativa da capa pode remeter a pessoa leitora à experiência de uma leve apertada no birro de um spray de tinta azul real em um papel de fundo amarelo; se penso em regras cromáticas, não as da Lady Gaga, falo das cores... a imagem poderia remeter à ação de quem tenta secar a escova de dentes passando os dedos nas cerdas da escova, fazendo aquele tsi tsi tsi; espirrando a água ainda contida. Agora, imaginem uma escova lambuzada daqueles produtos avioletados, matizadores de dentes viciados em café, vinho ou qualquer tipo de fumaça. O efeito seria mais ou menos o mesmo: essas pintinhas azuladas marcando a capa. No entanto, para a economia do texto e para a possibilidade de leitura que apresento podemos ler essa mancha azul sob fundo amarelo como uma constelação – um grupo de estrelas, um campo de brilhinhos, um punhado de purpurina.
Realce! Realce! Quanto mais purpurina melhor
A imagem da constelação evocada sugere um percurso teórico que permite fundamentar uma reflexão sobre o fenômeno “agrupamento de estrelas”; agrupamento do qual Leo faz definitivamente parte, pois não somente é legitimado pelos pares, mas pela acertada indicação a final do Prêmio Jabuti 2024, na categoria estreante em poesia. Quando trago a imagem da constelação, refiro-me aqui à Teoria do Campo Literário, do sociólogo Pierre Bourdieu. [4] O Campo literário, na teoria proposta pelo sociólogo, representa um espaço simbólico no qual as lutas dos agentes determinam, validam e legitimam representações. Nele se estabelece uma classificação dos signos, do que é adequado, do que pertence ou não a um código de valores [5]. No campo da arte, por exemplo, as lutas simbólicas determinam o que é erudito ou o que pertence à indústria cultural, quais valores e quais rituais de consagração serão legítimos dentro do campo. O que é importante e reitero aqui, é que Está na hora de me tornar um homem sério é uma produção que compõe essa constelação, que faz parte do campo literário da poesia brasileira contemporânea, realçando-o em toda a sua purpurina.
Leo Nunes faz originalmente parte do campo quando evoca opacidade no poema “alteridades”; a mesma opacidade que reivindicam Édouard Glissant e Jota Mombaça; ou ainda, quando em “ato falho”, confessa: “conto histórias de viadagem / uma ou outra psicose / uso palavras em pajubá”, que evocam outros poetas contemporâneos como Rafael Amorim, João G. Júnior, Caio Balaio e outres; Leo Nunes inscreve-se originalmente no campo literário quando afirma de maneira breve em “banquete”: “eu / como / metáfora” que, mesmo depois de bater bolos, a “Shiva da baixada” – a de quatro braços, “busca ser astuto o suficiente / para se manter de pé” no “Samba”, mas também nos corres das “Corredeiras” de parques temáticos convertidos, hoje, em condomínios e nos “Piques” a toques de caixa que lhe faziam resfolegar.
Figuras de broderagem
Edmar Guirra, 2024
3... 2... 1 ou 1... 2... 3 e já!
Eis a contagem regressiva que indica o ponto de partida do livro de Leo, mas pode demonstrar, igualmente, o retorno a um estado anterior. A contagem regressiva está presente antes de se empreender uma tarefa. Inicia-se a tarefa depois de contar 3, 2, 1, em sua mente; como uma criança que vai mergulhar na piscina ou que vai iniciar um pique; como se a coragem e o ímpeto de energia viessem seguidas dessa contagem. Esse modo de contar que debuta o livro de estreia de Leo Nunes cria um senso de urgência e diminui a oportunidade de racionalizar a procrastinação de ler seus poemas. É um 3...2...1 que cria vontade, que gera expectativa, que dá ânimo para a leitura; é um 3...2...1 que, se des.viado fosse, seria 1... 2... 3 e já! Esse “já” de que precisa a literatura, a escrita e a leitura. Não que para sua sobrevivência, a literatura necessite de uma defesa teórica, nem a sua promoção por instituições e, ainda menos, o seu gerenciamento pela indústria cultural. A sobrevida da literatura reside, inclusive, no desejo de escrever e no prazer de ler que estão garantidos no livro Está na hora de me tornar um homem sério. A possibilidade de escrever e publicar nunca esteve ao alcance de tantas pessoas como atualmente, e se isso inflaciona a quantidade de escritos publicados, também aumenta a chance de aparecer, entre eles, algo digno de nota e louvores (Rosana nas alturas!) como o livro de Leo. Quanto à fruição, ainda não há prática melhor e mais completa de autoconhecimento, de conhecimento dos outros e de reflexão sobre o mundo do que a leitura. Enquanto permanecer vivo o desejo humano de contar e ouvir histórias, de buscar uma formulação verbal mais significativa do que as que nos cercam e nos anestesiam no cotidiano, essa instituição chamada literatura continuará existindo.
Desejo que des.viados e desviantes, como Leo Nunes, sigam sempre presentes, atentos e fortes no campo. Nem que seja para bater uma bolinha.
Feito no Rio de Janeiro, em 13/11/2024
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Edmar Guirra (1984). Bicha que escreve, é pesquisador e professor no Ensino Básico da rede pública. O tempo curra tudo (M.inimalismos, 2024) é seu primeiro livro de poeresias.
[1] Prefiro arriscar certa antipatia e pedantismo para com quem já conhece o termo, mas “Entendida; Entendido” é gíria dos anos 80/90 para falar de pessoas LGBTQIAPN+. Hoje, no Rildy, anda rareada essa expressão.
[2] Cf. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho de luto e a nova internacional. Rio de Janeiro: Rlumé-Dumará, 1994.
[3] MALLMANN, Francisco. Haverá festa com o que restar. São Paulo: Urutau, 2018, p. 26.
[4] Ainda que com algumas restrições, a Teoria do Campo Literário, do sociólogo Pierre Bourdieu, cujo funcionamento é explicado a partir da leitura de A Educação sentimental, de Gustave Flaubert (1869), apresenta elementos que podem ser explorados ainda hoje. O funcionamento do campo análogo ao campo econômico, a ideia das filiações, os agentes e seus capitais (editores, tradutores, livrarias, saraus, feiras, escolas formadoras etc.) e suas ações nesse espaço de lutas simbólicas, entre outros, são aspectos que nos autorizam a lançar mão da noção de campo literário e a localizar a obra de Leo Nunes nesse espaço simbólico.
[5] Cf. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Trad. Cássia Silveira & Denise Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 149-168.
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