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Um, nenhum e cem mil

Atualizado: 25 de mai. de 2023

notas sobre Extraquadro, de Ricardo Aleixo

por Gustavo Silveira Ribeiro





No penúltimo poema de Extraquadro (LIRA/Ed. Impressões de Minas, 2021), de Ricardo Aleixo, o poeta propõe um singular exercício de filologia pessoal. Nos versos curtos que compõem a sua única estrofe, e que desdobram-se como variações de sentido de um mesmo verbete, o poeta trata de inventariar alguns dos significados de seu próprio sobrenome, como quem tenta, no gesto inventivo de uma escrita etimologicamente orientada, descobrir e fixar um traço decisivo sobre si – e quem sabe também sobre sua obra. A associação de sentidos que parece fundamental a esse poema em estado de dicionário dá-se em torno à ideia da distância. “a.lei.xar = afastar-”, lê-se logo no título, em minúsculas. Depois, na sucessão veloz de versos-verbos, armados a partir de um sufocante arranjo de rimas, empilhadas umas sobre as outras, rebatendo-se com diferenças mínimas, prossegue a apresentação do conjunto de significados que devém desse mesmo motivo: [a.lei.xar =] “deixar-se, /desviar-se/(...) distanciar-se, /exilar-se/partir-se”. A lista continua por mais algumas linhas. A negatividade que o sujeito procura inscrever em si (a partir da ativação que faz e da acolhida que dá a alguns dos sentidos aprisionados no prenome familiar) assinalam, quem sabe?, o repúdio a toda obediência e gregarismo. O poeta traria o desvio e a distância gravados em seu nome, como partes da sua assinatura.


Lido como síntese do livro, o poema indica que a errância e o gosto por alijar-se do caminho prescrito e palmilhado são questões estéticas e políticas. Arte e vida se encontram nessa afirmação que o poeta faz do dissenso e de uma condição voluntária e permanentemente estrangeira. É algo como uma diáspora em modo íntimo o que parece estar em jogo em Extraquadro, diáspora assinalada como destino pessoal (o nome) e assumida como identidade. Ainda sobre o poema: o sujeito rompe e escapa “para/dentro/ou para/fora/de si”, em movimento pendular que indicia um modo de isolamento ou fechamento em si. Longe ou recolhido em seus próprios limites, recusa contato e mantém-se só. Tal atitude não deixa de ser um modo de expor um orgulho pessoal e de clã – o que também, por outro lado, parece ser uma retomada, sob outros termos, da velha questão da soberba dos poetas.


Entretanto, em meio a esse acúmulo de sinônimos, o poeta informa também que outro significado para o seu sobrenome, Aleixo, é “dispesar-se”. Além da ideia da deriva que essa nova acepção contém (questão importante que aponta para a distância e para o desencontro de si), ela acrescenta um dado importante para a compreensão de Extraquadro, a multiplicidade. Outro poema põe o problema numa imagem: “mesmo qu/ando/só eu só/ando/em b/ando”. O sujeito que se desvia e afasta é o mesmo que, em si mesmo, abriga multidões. Nesse sentido, será entre os dois roteiros anunciados por seu prenome que o poeta vai erguer este novo livro, e será também entre eles que pode-se compreender boa parte da sua atividade poética e performática anterior.


Poeta experimentador, “poeta-buscão” (conforme a feliz expressão que João Cabral de Melo Neto, leitura decisiva para Aleixo, cria para referir-se a Joan Brossa), descontente do estado de coisas do mundo – e da poesia –, o poeta diverge e se afasta. Assimila para si uma espécie de ética do não. Resiste, procura: mantém-se no extraquadro, à margem da cena. Por outro lado, e ao mesmo tempo, o poeta mantém-se tambémdisperso, aberto. O eu que encena e enuncia em seus poemas não coincide integralmente consigo, é outro, quer ser muitos ao mesmo tempo, retalhado em fragmentos ou assumindo inúmeras identidades. Inquieto, é vário como a linguagem poética (sempre em estado de metamorfose) ou o corpo em performance que lança-se à ação, isto é, ao risco e à reinvenção de si.


Movendo-se “para/dentro/ou para/fora/de si”, sempre dessemelhante, o poeta quer fazer-se no estranhamento. Ora mergulha fundamente em si, isolando-se, como quem faz da própria pele um escudo, ora mistura-se de modo selvagem à matéria do mundo, confundindo-se com ela – outro sentido possível para o verso-verbo “partir[-se]”, no qual a destruição da unidade e a multiplicação do sujeito podem implicar, também, a necessidade de sair de si e ir em direção exterior, escapando aos limites estreitos da consciência e do corpo (e às vezes da própria condição humana, como propõe no poema visual “Programa”: só rastejo/quando quero/ouvir o pulso/do mundo/quando sou/cobra coral/ao rés/da noite/do mundo”, um muito interessante exercício de perspectivismo que se apresenta num poema em forma de S, no qual os vazios entre as palavras criam a silhueta sibilante de uma cobra). Entre esses dois vetores, amiúde misturados e inseparáveis, fraturado entre o desejo de conhecer-se e resguardar o próprio espaço, e o impulso que leva além e àquilo que não se é (ainda), são construídos os poemas deste livro – e também, como ficou dito, parte significativa da obra poética indisciplinada (vocal, plástica, dançante, videográfica, pictórica, musical) do autor.


Veja-se, como exemplo dessa ambiguidade estruturante do livro, um dos primeiros poemas de Extraquadro, “Mim mesmo”. Disposto em duas colunas paralelas, uma delas irregular, exibindo, em alguns versos, deslocamentos espaciais que funcionam como zonas de silêncio e marcadores rítmicos, o texto apresenta o relato entrecortado de uma experiência extática. Nele, revela-se o momento em que o sujeito perde-se, a rir e a dançar alucinadamente numa cena indefinida que tanto pode ser o relato de uma performance poética quanto a narração de um transe místico e ritual. Só pela rememoração do instante epifânico – isto é, pela escrita do poema – é que o eu se recompõe. Em pleno ato cerimonial (o que se depreende pela referência ao ‘manto’, vestimenta especial sagrada, e que no contexto geral da obra de Ricardo Aleixo, é peça poético-performática, o “poemanto”) ele já não dançava, mas antes



O movimento que indicia a saída de si do sujeito, a perda da consciência do tempo e dos limites perceptivos do seu corpo (num tipo de esvaziamento), é o mesmo que assinala a passagem da individuação ao horizonte da multiplicidade. O movimento vai do chão ao ar, da estabilidade pesada do corpo à leveza dispersiva. É preparação de voo. No caso de “Mim mesmo”, o arranjo gráfico do poema cria uma fenda por entre a qual passa tudo aquilo que escapa ao controle. Reposta de diferentes maneiras, essa fenda permanece em Extraquadro servindo como linha de fuga e perspectiva em devir. As consequências desse ponto de passagem não serão, nos demais poemas do livro em que ela se repete e se refrata, tão somente espirituais. Ser outro (ou recusar-se a ser quem se espera, denegando papeis pré-definidos) tem implicações ético-políticas incontornáveis, assim como incide sobre a experiência amorosa e a representação da intimidade.


A visualidade e a questão do olhar têm lugar decisivo no livro, conectando poesia, artes visuais e história. Desde o poema título, estão em jogo em Extraquadro aquilo que se vê e o que não pode ser visto, posto fora da cena. Nesse texto, a partir da evocação de uma fotografia antiga, reproduzida na contracapa do livro, como que escondida sob a folha desdobrável que lhe serve de guarda, o poeta descreve dois mundos numa mesma imagem. Universos conectados, mas distintos: em primeiro plano, estão várias crianças sentadas num desses brinquedos giratórios dos playgrounds de clube. Crianças brancas e negras. Ao fundo, adultos vigiam a cena, que parece se passar numa tarde de domingo feliz. No entanto, nem todos sorriem (e nem tudo o que importa aparece na foto). As crianças brancas gargalham, as crianças negras estão sérias.


O desajuste entre elas está no centro do poema e da história do país: as crianças negras, filhas do zelador, cuja casa não aparece na imagem (“fica/ali no extraquadro/’a esquerda”) brincam com os filhos dos sócios do clube em aparente harmonia, mas o instante decisivo da fotografia revela o dissídio. Os sinais gráficos e a pontuação utilizadas no poema reforçam o estranhamento: forçam pausas mais longas, dispostos na página como versos autônomos, interrupções de natureza visual. A separação entre os pequenos, na imagem e no texto, vinha negar o mito da democracia racial, mito propalado, naqueles anos de ditadura em que a cena se passa, como discurso oficial no país. O espaço da diversão comum talvez não fosse percebido por todos da mesma forma, como o país não era sentido do mesmo modo por todos os seus habitantes. Talvez tenha sido a presença da câmera que materializou um incômodo latente. Não importa: para o poeta, o ato casual das crianças que não sorriem constitui ação rebelde: elas recusam-se, sem plena consciência disso, a tomar parte na farsa: “e agora//que podem/ajudar a//passar/para a posteridade//uma imagem/de como//no/Brasil da Redentora//a Roda da Fortuna/girava para todos// ‘/sem exceção//’/fazem/”negrinhagem”.


As crianças negras (o poeta entre elas, pois este é um poema memorialístico e autobiográfico, como também boa parte do livro) expõem o desconforto onde devia estar a alegria. A seu modo, o poema repercute a recusa ao gregarismo que já estava inscrito no nome do poeta, bem como dá continuidade à desobediência civil antirracista que é o tema de “Quase épico”, texto no qual o pai do poeta – ainda jovem, muitos anos antes de ser pai, na Belo Horizonte dos anos 1920 – desafia convenções segregadoras da cidade ao caminhar livremente “bem na parte/do passeio/da Praça da Liberdade/destinada aos brancos”. Como se vê, neste livro a passagem entre o pessoal e o político é decisiva. Será, na maior parte das vezes, a partir de poemas fundados na experiência da vida comum que as questões sociais e históricas mais complexas vão surgir.


Extraquadro é um livro inquieto, curto, rápido. Experimento tátil que reúne tipografia, escrita caligráfica e gestual, cores e tonalidades. É o livro em que o elemento visual prepondera, desde a introdução de fotografias e grafismos entre os poemas. Em todos os espaços do livro (capa, contracapa, folha de rosto, colofão, além da guarda que o recobre, um pôster desdobrável) há algum jogo gráfico, alguma intervenção inventiva: todo tipo de distribuição da mancha gráfica no papel está lá, cobrando o seu lugar, assim como signos, desvios tipográficos, costuras com letras e desenhos. Depois de alguns livros graficamente mais convencionais (Impossível como nunca ter tido um rosto Edição do Autor, 2015], Antiboi [LIRA & Crisálida, 2017] e a antologia Pesado demais para a ventania [Todavia, 2018]), em Extraquadro Ricardo Aleixo parece ter trazido de volta o ímpeto experimental (do ponto de vista da edição) que marcou a fundo algumas de suas publicações anteriores – ímpeto que, neste volume, vem reforçar e complexificar o coeficiente político-social dos poemas, propondo, de saída, a sua leitura como um desafio e um convite à reflexão.


O livro pode ser lido, ainda, como o marco inicial de um desvio memorialístico que a obra do autor parece ter tomado nos últimos tempos. Aleixo abre com Extraquadro uma série (provavelmente ainda em desenvolvimento) de textos voltados para a perscrutação da memória, nos quais a vida pessoal se cruza com vivências coletivas e sociais num mosaico de fragmentos que trazem à tona a figura dos pais e da família, as leituras e experiências formativas do artista, mas também a sombra dos ancestrais afro-brasileiros e de toda a memória histórica da escravização e da resistência negra – incluindo aí um passeio pela história da cidade de Belo Horizonte e de alguns aspectos da vida da periferia e da cultura popular. Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite (Todavia, 2022), Campo Alegre (Conceito, 2022) e Diário da Encruza (LIRA/Segundo Selo, 2022), publicados em sequência e divididos entre a prosa narrativa e a poesia vêm completar esse conjunto de livros recentes nos quais a presença do passado (e de questões comunitárias e raciais) vem mostrando-se decisiva.


Como antes ficou dito, reflexão metapoética, derivas existenciais e interrogação política confundem-se em Extraquadro. Num plano mais imediato e basal, será na própria forma dos poemas (seus filamentos sintático-semânticos em desagregação, as pesquisas sonoros em direção ao canto – ver, nesse sentido, “Misturam-se ao rumor do mar” ou “Matamba”, peças para voz – e a aventura da imaginação visual) que a sobreposição desses três planos irá ocorrer, num processo em que uma instância potencializa e complexifica as demais. Ressalte-se que em nem todos os textos essa mistura ocorre. Há poemas de circunstância no livro, e há textos fazem avançar as buscas do autor por formulações novas. Predomina, no entanto, o território da invenção.


Dentre as muitas variações formais que vão acumulando-se para dar corpo a Extraquadro, talvez a mais significativa delas, por inusual nos trabalhos anteriores do autor, seja a que aproxima poesia e ato dramático, cena teatral. Os poemas “Uma história antiga”, “Houve casos em que o passado veio mais de uma vez” e “Igual como?” foram compostos como diálogos, nos quais duas vozes embaraçam-se e sobrepõem-se em conversa afetiva, os versos dispostos como diminutos blocos de prosa, grafados em caracteres reduzidos, uns na frente dos outros, em disposição opositiva, a sinalizar a dimensão agonística que os atravessa.


Esses são todos poemas de natureza subjetiva e exposição íntima, e em todos eles a sombra de um conflito organiza a composição e lhe dá sentido particular. Seja a resistência ao sono e a saudade da mãe ausente (“quando é que ela/volta do lugar/pra onde ela foi?”), que o filho pensa, em conversa com o pai, ter se mudado de casa depois de uns dias distante para tratamento de saúde, seja o nonsense do diálogo noturno entre amantes, seja ainda a sucessão de perguntas sobre duras questões raciais e históricas brasileiras que novamente a criança, com inocência e agudeza desarmantes, faz ao mesmo pai. Trata-se de uma reflexão, tecida com os fios da curiosidade e da perspicácia, sobre pertencimento e ancestralidade, palavras ainda desconhecidas para o menino, mas já decisivas de sua experiência do mundo: (“você é tão velho, você foi/escravo?”; “escravo é gente ou é bicho?”).


Em todas essas cenas da vida privada a partição da voz em duas arma o palco – o poema como pequeno palco – para um jogo de máscaras mais sofisticado. O poeta assume outras identidades e perspectivas, sua voz modula-se a partir do conflito com o outro – expõe-se à diferença e à contradição. O lirismo se adensa nessa operação dramática, cuja construção vem reforçar o descentramento do sujeito poético, que mantém-se mais radicalmente distante de qualquer ideal de unicidade ou coerência. O eu é um outro: a cada vez outro, em desacordo consigo e numa profusão de máscaras. É a criança que lamenta a mãe ausente e é também o pai que canta e consola. É, ao mesmo tempo, a mulher e seu amante que conversam sobre o amor. Não há, nesse sentido, condicionamento biográfico, cultural ou ideológico que sirva como anteparo seguro para a leitura desses poemas. Elaboração poética, ficção da linguagem, experimentação ontológica, quase poderíamos dizer: os textos escapam, inscrição dialógica, abertos ao conflito e à incerteza. Os poemas (e o poeta) já não são os mesmos. A política (como lógica do dissenso) arma-se como zona de alteridade e campo de buscas.


Extraquadro é o melhor livro da fase mais recente da produção de Ricardo Aleixo. Merece ser lido junto – suporta a comparação – a Trívio (Scriptum, 2002) Máquina zero (Scriptum, 2004) ou Modelos vivos (Crisálida, 2010), até agora seus volumes mais bem realizados. O livro atual retoma procedimentos e dá continuidade a pesquisas que o autor vinha empreendendo há muito, mostrando que o que há de vivo e pulsante na sua obra continua a se transformar. Ao mesmo tempo, Extraquadro inventa novas possibilidades, assinala outros caminhos por onde o trabalho em movimento, a “obra permanentemente em obras” de seu autor pode seguir. As muitas vozes que, em algaravia, somam-se e chocam-se umas contra as outras nos poemas desse livro são o que ele tem de melhor: é com o “granulado dos/ seus timbres” que o poeta pensa e escreve – em viva contradição e ao arrepio dos consensos.


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Gustavo Silveira Ribeiro (1980) é professor de literatura da UFMG e um dos editores da Ouriço - revista de poesia e crítica cultural.

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