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Respondendo ao chamado

Luciana Di Leone

Atualizado: 8 de jul. de 2024


 

Ao longo de alguns anos, Eduarda Rocha, que fez seu doutorado na UFAL, se dedicou a ler, juntar e traduzir belamente os poemas da argentina Fernanda Laguna que compõem Um chamado telepático de socorro, editado pela Macabéa (RJ) em 2023. Edição bilíngue, lindamente impressa, capa colorida que ostenta uma pintura da própria Laguna (também artista plástica), desing impecável, quarta capa da pesquisadora Cecilia Palmeiro. O livro conta com alguns desenhos, e a seleção e tradução irretocável de poemas dos livros Control o no control (2012), La princesa de mis sueños (2018), Los grandes proyectos (2018) e Pañuelo de mocos (2022), além de uma carta a Dilma Rousseff escrita por Laguna no marco da Bienal de São Paulo de 2010.


No prefácio, a própria Eduarda Rocha levanta algumas informações sobre a autora, seu trabalho artístico, o comunitário, e algumas das características dos seus textos que guiam a minha leitura nesta resenha. Em primeiro lugar, a de Laguna é uma poesia que se afirma como compreensível (“fácil”, como diria Leminski). Além disso, certa urgência ou mandato da expressão: escrever às pressas, sem rigor formal, sem nada “importante” para dizer. “Escrever de manhã para publicar à tarde”, é uma das frases mais conhecidas de Fernanda Laguna.

Mas comecemos pelo título. Para quem trabalha com linguagem e associa o chamado a algo dito em um texto, falar de telepatia é estranho ou, no mínimo, desafiador. Como é que se ouve ou se lê um chamado telepático? O linguista Charles Sanders Peirce, em uma conferência de 1903, sobre telepatia, percepção e ciência, diz – fiel à “atitude científica” – que o problema em relação à telepatia não é definir se ela existe ou não, mas que, por ser os fenômenos tão raros e por não haver provas deles – tal como os próprios defensores da existência da telepatia defendem –, ela é impossível de apreender para a ciência e para a comunidade.[1] Certamente, podemos concordar com Peirce sobre a impossibilidade de se ter provas e a raridade da comunicação telepática, assim como sobre a dificuldade dela se instituir como “objeto” científico. Porém, acredito que se há um fenômeno linguístico recorrente no mundo, às vezes enunciado, às vezes em pensamento, esse é o “chamado telepático”. Sim, os chamados telepáticos são muito comuns: todes tentamos chamar deuses, ou alguém, ou algo, telepaticamente. Várias vezes ao longo da vida, ou ao longo do dia...


Já obter resposta é um evento linguístico bem mais raro. Talvez por isso, o chamado telepático poderia ser pensado como o gesto mais genuíno da comunicação, pois de certo modo não depende da resposta (mesmo que a deseje). Isto não é novidade na reflexão sobre poesia, que já mostrou que todo gesto de envio,[2] todo endereçamento,[3] todo vocativo, toda apelação, toda demanda[4], são gestos da literatura que procuram menos a resposta e mais entender a própria enunciação enquanto comum. São os poemas tentando estender um laço, quase a risco de se perder na sua constituição textual, para tentar chegar ao outro.


Talvez seja essa a característica mais marcada do trabalho de Fernanda Laguna – artista visual, ativista, poeta – de modo geral. Característica que é sublinhada pelo título escolhido por Eduarda Rocha para este livro editado no Brasil. Os poemas parecem dar corpo a um gesto de contato, a um pensamento rápido que é, antes de mais nada, um chamado telepático. A urgência, então, é menos a de se expressar individualmente e mais a de “chamar”. Os poemas não são bibelôs trabalhados com esmero, eles têm erros ortográficos, repetições, são rápidos... A urgência é de um “ir até”, mesmo que isso se contraponha a uma concepção de poesia elevada.

 

Poema, o que você faz de mim?

Aonde você me leva?

Por culpa sua os poetas se tornaram meus inimigos (p.25).

 

Vontade de ir ao encontro do outro. Mostrar que a poesia é parte do nosso cotidiano, que é simples e importante, como uma expressão de desejo. Mas também como um trabalho conhecido:

 

De dona de casa a mãe em casa

 

Não tenho muito o que escrever

não estão rolando coisas emocionantes.

Estão acontecendo coisas lindas e sobretudo

sutis.

[...] (p.40)

 

Ou:

 

A dona de casa    

 

A dona de casa

estava cansada

tantas caçarolas

tantas taças

[...] (p.124)

 

 

O cotidiano comparece, de forma “fácil”, inclusive de um modo que foi chamado pela crítica de naif. Mas essa proximidade fala de um jeito não distanciado de tratar a linguagem, e de uma maneira não exclusiva de pensar a própria sensibilidade. Os afetos são ao mesmo tempo muito previsíveis, e vistos com certo espanto. O gesto revolucionário habita em tomá-los desse modo: se surpreender com o mínimo, sem deixar de pensá-los como tal.

Os poemas de Laguna, sem mistérios, se dirigem a um você, que é chamado, convocado, provocado, inclusive, porque a experiência convocada é uma experiência comum. Os textos perguntam, indagam, pedem, se queixam com um você que ora é um amante (onde você está?/ Está numa praia me esperando?, p.49), ora o leitor, um animal, um absorvente, uma flor (onde posso te procurar? Apareça!”, p.51), ora o próprio poema (“poema, o que você faz de mim, aonde me leva?”, p.25; “Querida poesia // Escrevo pra te dizer que te amo muito e para te contar que estou com febre”, p.24). Os poemas de Fernanda Laguna estão vivos, se levantam, são vocativos ampliados, só estão pedindo que a gente responda.


Aqui se leva a sério a necessidade de não levar a sério a poesia, já que essa desauratização parece ser o único modo da poesia realmente acontecer na vida, e de que ela chegue a alguém. É tornar a sua feitura algo realizável. Um poema pode ser resumido no pular de linha. Se esse corte de verso pode ser estudado como aquilo que define filosófica e epistemologicamente a poesia, pode de forma mais amigável ser descrito como “apertar enter”: “Acho engraçado sentir respeito por minha poesia. // Vou apertar o enter final/ para a comunicação/ com o presente”, p. 53. Assim, se o texto se endereça a o “outro”, se em alguma medida um texto é capaz de juntar, ele tem que estabelecer uma força de união legível, que não coloque barreiras de exclusão, sem estranhezas.


Mas a desauratização do poema, como Eduarda aponta no prefácio, não é apenas um comentário à poesia ou uma intervenção apenas nos circuitos literários. O trabalho de Fernanda Laguna sempre envolveu um fazer coletivo, desde a galeria e a editora Belleza y Felicidad, passando por seus poemas “compreensíveis”, até o impactante Belleza y Felicidad Fiorito.[5] Villa Fiorito, bairro muito empobrecido da periferia de Buenos Aires – conhecido por ser o lugar de nascimento de Diego Maradona – ganhou, em 2003, momento em que as galerias argentinas tentavam abrir sucursais na Europa, uma galeria de arte pensada por Fernanda. Hoje Belleza y Felicidad Fiorito é um espaço experimental de criação e um comedor. Um projeto de ativismo cultural, a partir do qual se articulam diversas ações diretas paliativas da pobreza, como o comedor, mas principalmente atividades de dignidade cultural: o comedor é gourmet, porque todes deveriam ter acesso não apenas à comida, mas a uma comida digna e escolhida. É a partir desse espaço, também, que várias poetas catadoras – Mayra Giménez, Gisela Rivas – começaram a escrever e publicar, que outras mulheres começaram a fabricar objetos hoje comprados inclusive pelo Museo Moderno de Buenos Aires. E este projeto não é uma “resposta” ao chamado telepático das comunidades, como poderia ser pensado desde um olhar caridoso. Belleza y Felicidad Fiorito é um chamado telepático para que os laços comunitários se ativem, um espaço para propiciá-los.


Hoje, o presidente argentino, paradoxalmente, também se comunica telepaticamente com o seu cachorro morto, é ele quem do além – dizem às más línguas – dá as principais diretrizes de governo. Até o momento, o cão tem tomado medidas indignas para es trabalhadores e a sociedade: ajuste dos salários, demissões massivas, corte das ajudas sociais. Mas, na verdade, nessa comunicação com o cachorro morto o que acontece é a obliteração do desejo em chamar a comunidade. É tirando o corpo fora que se cortam os laços comunitários em um dos mais violentos avanços da direita neoliberal. É sem se aproximar de nenhuma pessoa, de nenhuma criança, que se governa com mortos e para mortos.


O livro e seu título ganham, perante a realidade política argentina, camadas de sentido. Se ele fecha com uma carta de 2010 em apoio a Dilma sendo atacada antes da eleição, parece urgente mandarmos uma carta em apoio à Fernanda, ao trabalho de todas as “chicas” de Belleza y Felicidad Fiorito, que sustentam esse espaço, o comedor, as oficinas de arte, as crianças. Que sustentam tudo. Uma carta para uma vida em comum que está sendo atacada de forma frontal. O chamado telepático de socorro de Fernanda Laguna, embora ela nos diga que é “péssima em adivinhar o futuro/ e também em telepatia”, é urgente e necessário. É um chamado que pede uma resposta. Uma resposta da ordem do prazer, do gozo, da vida, e da comunidade. Perante tanta morte. Uma resposta agora, mesmo que ela também seja telepática.


 

Texto de Luciana Di Leone para a bobina


[1] Charles Sanders Peirce. Telepatia e percepção (Tradução de Lucia Ferraz Nogueira de Souza Dantas). Cognitio, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 344-375, jul./dez. 2017.

[2] Cf. Jacques Derrida. “Envío” [Discurso inaugural do XVIII Congresso da Sociedade francesa de filosofia sobre o tema “a representação”]. (trad. de Patricio Peñalver), en Derrida, Jacques. La desconstrucción en las fronteras de la filosofía, Barcelona: Paidós, 1996. Disponível em: elartedepreguntar.wordpress.com/wp-content/uploads/2009/08/envio.pdf­

[3] Cf. Antonio Andrade [et al], Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2018.

[4] Cf. Jean Louis Chrètien, La llamada y la respuesta (trad. Juan Alberto Sucasas). Madrid: Caparrós, 1997; e Jean Luc Nancy, “Tacto”, El sentido del mundo (trad. Jorge Manuel Casas). Buenos Aires: La marca, 2003.

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