"Olho muito tempo o corpo de um poema / até perder de vista o que não seja corpo": de autoria da escritora Ana Cristina César, esta é uma das epígrafes que iniciam o livro de poemas de Bianca Monteiro Garcia, já revelando um pouco da proposta que estrutura a obra. Com publicação em parceria pelas editoras 7Letras e Macabéa Edições – a última dirigida pela própria autora – breve ato de descascar laranjas se concebe de maneira expandida, entrelaçando temas complexos como o luto paterno, a loucura e a memória familiar a partir da poesia e da cianotipia.
A obra é dividida em quatro partes, cada uma respectiva a uma das estruturas que compõem o planeta Terra, como "descontinuidade de Mohorovicic", "crosta", "manto" e "núcleo". A ordem dessas estruturas, porém, não segue a lógica convencional, com a descontinuidade de Mohorovicic, que separa a crosta do manto, nomeando a primeira seção de poemas do livro. A ideia é recompor (ou compor de uma nova maneira) todo o bolo subjetivo e afetivo que acompanha as perdas do eu lírico, iniciando-se na lembrança do pai falecido, como explicita o poema homônimo (p. 27):
descontinuidade de mohorovičić
de madrugada
descascar laranja
ritual de sonâmbulo
faca prato
tv no volume mais baixo
camadas da terra
como perdoá-las?
crosta manto núcleo
setembro de 2004
tv ligada no mudo
futebol no pano de fundo
descascar a laranja
pra filha caçula gostar de ciências
e passar de ano
passar
de
ano.
descascar a laranja
amparada por uma bacia
e a faca tramontina rente à casca
explicar o movimento de rotação da terra
setembro de 2019
sentado sozinho na mesa da sala
descascar laranjas de madrugada
e mesmo sonâmbulo
alinhar a faca à crosta
fazer o movimento de rotação
da terra-laranja
desmanchar o manto com apetite insone
cuspir o núcleo
fazer o último movimento de rotação
com a laranja-terra
inacabar o ano
não começar o próximo
nem o próximo
nem o próximo
pausar o movimento de rotação
da laranja-laranja
naquele átimo de segundo
suspiro breve
leve e sozinho
na garagem do prédio
dentro do carro recém-estacionado
último sopro:
largar o prato
a casca
a faca
a casa
congelar em setembro de 2019
passar a laranja
a faca
o prato
a casa
o hábito
para quem cultiva a madrugada
e permanece insone
descascando laranjas
e descobrindo no google
não ter transformado a casca em vela
por ter descascado
do jeito errado
a vida toda.
Neste texto, fica evidente a escolha de Garcia pela analogia do planeta, além de explicar o título do livro, breve ato de descascar laranjas. Rememorando o ano de 2004, a primeira estrofe do poema nos revela uma atividade quase banal, em que o pai ensina a filha a descascar laranja com o intuito de apresentar a formação da Terra, parte de um exercício escolar. Aqui, o tom do texto explora uma interessante sonoridade, como se vê nas rimas dos versos "tv ligada no mudo / futebol no pano de fundo" e no deslocamento dos versos finais da estrofe, indicando visualmente o movimento de descascar a laranja. Ainda assim, observa-se uma voz melancólica por parte do eu lírico.
Essa voz se torna mais evidente na segunda estrofe, que discorre mais explicitamente sobre o luto e a complexa carga emocional que o envolve. Isso se verifica pela metrificação dos versos, bem como as repetições (caso de "nem o próximo / nem o próximo") que, dando o efeito de "corte" ou "cisão" rítmica, compõem aquilo que, no senso comum, chamamos de "bola de neve". A confusão entre passado e presente, frustração e aceitação, denota o tom central da estrofe, que, agora, não reporta o ano de 2004, mas o de 2019, referindo-se à então morte do pai – que acaba sendo o tema principal desta seção, atravessando todo o corpo da obra.
A segunda seção, "crosta", também parte da memória e do luto familiar, desta vez, porém, dirigido à avó e com um tom mais objetivo do que a anterior. Aqui, vale destacar a importância das imagens impressas em cianotipia, que dão, ao lado dos poemas, uma ideia de documentação ou de arquivo. O eu lírico se mostra interessado em reunir e compor a história da avó e, por conseguinte, de sua família. Isto se observa no poema "supermercado ideal":
arlette era vista como mulher miúda
ignoravam a fortaleza nos ombros
ao suportar as arrogâncias do nelson
e dum mundo teimoso
num perigoso progresso
ia ao mercado todo dia
até que dezembro desabou
numa tarde de terça-feira
arlette escalou cacos de vidro
estantes derrubadas em efeito dominó
restos de materiais
cortantes
até o sangue jorrado de suas
pernas
tardava
sua fuga-ascensão
rumo à luz no cume de corpos
depois de muito derrapar
alcançou a saída sem fim
da estrutura metálica
sobre o bolo dos mortos
45 anos e três gerações depois
inúmeras cicatrizes ilustram
um mapa em suas pernas
dizem que seu corpo de agora é frágil
que não aguenta um resfriado
esquecem que este mesmo corpo
sustentou no dorso
o peso de um mercado
Este poema se torna mais interessante quando percebemos que ele acompanha, na página à esquerda (48) o registro de um jornal antigo, em cuja manchete se lê "Catástrofe emociona a guanabara", atestando que o acontecimento retratado no poema (o desabamento do supermercado) é real.
Entretanto, Garcia aqui insere um fundo mais subjetivo, com a personagem Arlette (sua avó), frequentadora do Supermercado que teria desabado, no contexto de seu casamento, cerceado pelo ciúme e pelo controle masculino. O desabamento do Supermercado Ideal, portanto, é apenas um elemento no poema, que, na realidade, foca na construção da força e da coragem de Arlette (como se vê logo nos primeiros versos "arlette era vista como mulher miúda / ignoravam a fortaleza nos ombros").
Deste modo, podemos entender que a "crosta" - tanto no nome da seção quanto em seu significado, que indica a porção mais exposta do planeta Terra - desvela a memória ou, ainda, a história de uma família, que vai se tornando mais densa, como se observa na seção anterior, "descontinuidade de Mohorovicic".
Essa densidade ganha outra forma na próxima seção, intitulada "manto". Ao invés de tratar da história ou do luto familiar, os poemas passam a falar da experiência direta do eu lírico no contexto de uma internação psiquiátrica.
Uma das maiores diferenças desta porção da obra para com as outras é o fato de as páginas serem azuis e não brancas. Isto pode ser explicado pela epígrafe da escritora mineira Maura Lopes Cançado, "uma cidade triste de uniformes azuis e jalecos brancos" (p. 61) referindo-se aos enfermos. Entretanto, outra interpretação é a de que esta escolha poderia representar o feeling blue (expressão inglesa para "tristeza") do eu lírico ao processar o sentimento de luto, encarado socialmente enquanto patologia.
Nesse sentido, observa-se que "manto" apresenta uma poética mais desinibida e experimental, com uso de recursos como o black-out e o hipertexto, indicando uma exploração de uma voz autoral mais imponente. Isto se vê no poema "atividade de terapia coletiva II" (p. 88), que parte de um diálogo com "O Reino dos Bichos É o Meu Nome", da poeta Stella do Patrocínio (conhecida também por sua experiência enquanto interna de um hospital psiquiátrico) para tecer uma crítica irônica ao ambiente opressivo:
em um teste de múltipla escolha
25 perguntas sobre autoconhecimento
descobri que sou
44% águia
28% gato
8% tubarão
16% lobo
foi um pesquisador americano
william edward “ned” hermann
quem inventou o teste de bicho
mas a psicóloga que comanda
a terapia em grupo
achou o conteúdo em um site coach
provavelmente cinco minutos antes de chegar
ao hospital psiquiátrico
tal como o gabarito das questões
sou bicho nenhum sou todos os bichos
A potência mais questionadora e incisiva da poesia de Garcia, que aqui ganha um contorno contemporâneo ao partir de uma situação cotidiana, revela, então, outra característica do eu lírico. Inicialmente apresentado ao leitor em sua melancolia e confusão, ele vai se mostrando mais investigativo e, por fim, mais irônico.
Podemos dizer, assim, que breve ato de descascar laranjas vai traçando, a partir da dor e do resgate à memória, a subjetividade do eu lírico, que vai se adensando, como as camadas de um planeta. É na seção final, "núcleo", porém, que nos damos conta disso de maneira mais direta.
Esse momento, que fecha o corpo do livro, apresenta o eu lírico referenciando a si próprio, mas, dessa vez, partindo do banal. Trazendo elementos como plantas de plástico, joelhos ralados e desenhos de coelhos, "núcleo" parece ter a função de ressignificar as cisões que compõem cada parte do livro. O eu lírico desta parte se expõe no âmago da própria identidade, como indica o título "núcleo", que é formada e reformada após ser atravessada pela experiência desorganizadora do luto. Isto se observa no poema final do livro, "a performance" (p. 116), que diz:
não há potes de ouro
língua também é corpo
e outro dia me lembraram
não há troféu na linha de chegada
Tomando tanto este poema quanto a epígrafe de Ana Cristina César que inicia a obra, podemos dizer que breve ato de descascar laranjas, então, se propõe enquanto a construção de um corpo poético e subjetivo que vai se afirmando de forma mais proeminente conforme as seções. Como um planeta, ele é cisão e camada, memória e identidade, azul e branco – essencialmente, vida.
Texto de Laura Redfern Navarro para a bobina. Laura (2000) é poeta, jornalista, fotógrafa experimental e crítica literária. Graduada pela Faculdade Cásper Líbero (FCL) pesquisa corpo, linguagem e liminaridade. Foi vencedora do ProAC em 2022 com o projeto "O Corpo de Laura", que consiste em um livro e uma plaquete.
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