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O poema como uma curva no espaço-tempo

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Quando saio para caminhar com meu pai ao redor de sua casa, ele se ocupa com questões de espaço-tempo. É ele quem decide o quanto vamos andar e em que ritmo. Enquanto isso, eu me ocupo de nossa conversa fiada. Gosto tanto dela quanto da boa dose de silêncio que fazemos juntos. Digo fazemos porque esse silêncio também fica falando entre nós.

 

Quando comecei a ler poemas no final da adolescência meu pai e eu estávamos em uma fase mais difícil. O nosso silêncio não era uma coisa com a qual eu gostava de lidar, ao contrário do que acontece hoje. Então eu o empurrava para baixo de algum cômodo da casa. Engraçado como isso influenciou minha a relação com a poesia. Nessa mesma época, ela era para mim uma arte das palavras, do som e do sentido. Só muito mais tarde eu fui prestar atenção no vazio, no silêncio e no sem-sentido da poesia.

 

*

 

Você conhece aquele poema de Oswald de Andrade, publicado em 1927 e certamente um dos menores poemas do mundo:

 

Amor

 

Humor

 

Se você é um adolescente que está constantemente ocupando os ouvidos com alguma coisa ruidosa que possa manter o silêncio escondido em alguma parte da casa, você pode escutar as cordas de uma guitarra elétrica soando desse poema. Let it be or let it bleed, that’s the question!

 

Mas é só quando você desliga o rádio interior que você pode escutar o som da estática entre o título do poema e o primeiro e único verso. O que isso quer dizer? Que existe uma distância espaço-temporal entre as duas palavras, uma fenda significativa, que contribui com o que o poema tem para dizer.

 

Amor, o poeta começa: é uma anunciação. Essa palavra traz um tema importante da tradição lírica da poesia. E então um silêncio. É só depois desse silêncio que escutamos o verso que rebaixa a palavra, e que, a um só tempo, ataca e sublinha essa tradição lírica.

 

A palavra “humor” retira a seriedade do tema, a partir não só do seu sentido, como também do gracejo que é fazer esse chiste. A palavra se dobra sobre si mesma enquanto cobre e vela a palavra “amor”. E, simultaneamente, ela recupera a maneira elementar pela qual o amor sempre foi tratado na poesia lírica, isto é, com o corpo. Com os humores do corpo. Assim, também revela a palavra. Velar, rebelar, revelar.

 

É no gap do significado entre as duas palavras que se aparentam que o silêncio trabalha, alterando o sentido das coisas a partir de uma metamorfose mínima, de um único fonema: a/u.

 

Agora estou pensando em John Cage. Ele disse certa vez que construiu a peça “4’33” com muitos pedacinhos de silêncio.

 

*

 

O poema de Oswald de Andrade brinca com a forma do mal-entendido. Essa é uma das coisas que eu mais gosto na poesia em geral. Na Odisseia, por exemplo, o mal-entendido é um dispositivo ou uma ferramenta sempre à mão de Odisseu.

 

Como no episódio da Ilha dos Ciclopes, em que Odisseu e seus companheiros são capturados por Polifemo, que deseja jantá-los. Parte do plano de Odisseu começa de uma forma simples. Apresenta-se a si mesmo com um nome falso: “Eu sou Ninguém”. Depois, na calada da noite, aproveita a embriaguez do seu captor Polifemo e o atinge no seu único olho. Cego, o ciclope grita por socorro, mas não consegue ajuda. Por quê? Porque quando seus amigos perguntam “quem te feriu, Polifemo?”, ele fica repetindo: “Ninguém me feriu!” Que talento de Homero para a comédia!

 

Mas não precisamos ir tão longe no espaço-tempo. Há um poema mais recente, de Eucanaã Ferraz, que eu gostaria de mencionar. Ele se chama “Se” e está no livro Escuta, de 2015:

 

Se

 

Finjo que não percebo

faço que não há falta.

 

Simplesmente não sabe dizer

amor.

 

Faço que não percebo

finjo que não faz falta.

 

Mas o não dito vai largando

fios por onde passa

 

se aloja nos cantos do quarto

agarra no azul do casaco.

 

Finjo que não vejo. Até que

certo dia

 

peço que diga.

Não diz.

 

Digo e peço que repita

faço como quem guia uma criança

 

que se alfabetiza, amor,

repita,

 

ator, diz;

não, digo, amor;

 

insisto, amor;

interruptor, diz;

 

amor, digo, diga comigo,

diz intempérie.

 

Recosto-me sobre meu espanto paciente

e suave peço que escreva soletro

 

cada letra enquanto a caligrafia desenha

clara a palavra

 

peixe-espada.

Tento dias depois:

 

á-eme-ó-erre;

 

e a mão escreve qualquer coisa como

garrafa.

 

Não adianta, penso,

desista, penso, mas

 

em vez disso repito

a palavra trinta vezes no dia

 

como quem empurra

pela goela de alguém a cápsula de vitamina,

 

peço, digo assim não posso,

você não quer, acuso;

 

e vejo – você está de costas

ou talvez tenha saído – arder

 

entre nós a transparência mortal

da palavra não.

 

Esse poema consegue ser triste e engraçado ao mesmo tempo. A sua melancolia é mais visível. O desencontro amoroso aparece sob a forma das palavras equívocas. Digo, do ponto de vista do amante, o amado se esquiva do amor com chistes.

 

Tudo começa pela troca da palavra “amor” pela palavra “ator”. Assim, é do ponto de vista do amado que esse poema se torna engraçado: ele brinca com as palavras, se comportando como uma espécie de palhaço. Por que esse palhaço não diz “não” desde o início? Porque o adiamento da palavra não é o que move esse poema. O humor do amado é o motor da melancolia (e da poesia) do amante.

 

Amor / ator. Não há como não pensar no poema de Oswald de Andrade. Mas no poema de Eucanaã, a substituição não é vocálica, e sim consonantal: “m” por “t”. Com isso, o substantivo abstrato se torna concreto, além de conduzir à ideia de representação teatral.

 

Depois, derivando a palavra “ator”, o amado diz “interruptor”, e então “intempérie”, e a partir daí essa deriva fica cada vez mais distante da palavra da qual parte. A transparência da palavra “não” entre os dois é apenas a revelação, na forma de chave de ouro, de algo que é dito no silêncio entre os dois ao longo dos outros versos.

 

Já aconteceu mais de uma vez ao telefone. Estou brigando com alguém que amo ou amei. Vou desligar. Eu digo “tchau”. A pessoa responde, mas eu não sei ela disse “tchau” ou “te amo”. Muita coisa depende do tempo da fala e do tempo da escuta. A poesia é uma arte das palavras? Não sei. Agora está me parecendo que a poesia é uma arte do espaço-tempo.

 

*

 

Quando você lê ou escreve um poema, o corte do verso, o espaço entre as estrofes e a localização das letras na página são tão significativos quanto as palavras que efetivamente podem ser lidas.

 

É por isso também que um poema nunca está pronto quando é publicado. Ele só fica pronto na leitura (ler é escrever). A forma pela qual você lê, o tempo de sua leitura, a voz alta ou baixa, cantada ou sóbria, errando ou acertando as palavras, faz parte do poema.

 

Os poemas são mais bem compreendidos pela teoria da relatividade do que pela física newtoniana. A poesia concreta sabia disso. E um poeta que esgarça o tecido do espaço-tempo do poema, e que tomou lições diretamente das distorções da guitarra de Oswald de Andrade, é Augusto de Campos. Veja, por exemplo, o poema “Amortemor”, de 1970:

 

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Você pode ler esse poema de muitas maneiras. A leitura convencional, de cima para baixo e da esquerda para direita, nos dá um poema em que a palavra “amor” se metamorfoseia: primeiro na palavra “morte”, depois no neologismo “mortemor” (morte maior), depois nas duas palavras “amor temor”, título do poema.

 

Mas se tomamos a pirâmide escura como uma negatividade, podemos escutar em voz alta a palavra “ar” diversas vezes, e no silêncio dessa repetição a palavra “morte”, lendo, na base da pirâmide, a expressão “a mortemor”.

 

Uma terceira leitura possível seria tomar a pirâmide como uma interioridade da palavra “amor”. O amor como morte maior.

 

Qual dessas leituras é a correta? Todas e nenhuma. Quer dizer, o poema não é exatamente uma dessas leituras, mas a condição de possibilidade de cada uma delas, além de outras, que você pode ir experimentando com seu próprio olho e suas ferramentas de mal-entendido, tão valiosas na leitura de um poema.

 

Eu particularmente gosto de ficar olhando para esse poema a partir de diferentes pontos, só pra ver se alguma coisa outra acontece.

 

*

 

Agora meu pai e eu estamos usando relógios com tecnologia GPS. Eles marcam o nosso ritmo, a distância percorrida e o caminho que tomamos no bairro. Nossos relógios são de boa qualidade, mas sempre mostram coisas um pouquinho diferentes. Às vezes, por exemplo, o meu sinaliza 1 km percorrido alguns segundos antes do dele.

 

Ao pesquisar porque isso acontece, descobri que qualquer aparelho que marca o nosso trajeto no espaço com a ajuda de satélites precisa fazer pequenas correções na medição. Por causa da curvatura do espaço-tempo.

 

Uma das formas pelas quais os físicos explicam esse fenômeno é usando a metáfora do tecido. O curioso é que o tecido é uma das metáforas mais antigas também para o trabalho do poeta. E marca uma presença importante na poesia de Homero, como na cena em que Helena está tecendo cenas da Guerra de Troia na Ilíada, e também por toda a Odisseia na mortalha que Penélope está fazendo para Odisseu, enquanto o espera voltar, como estratagema para enganar os pretendentes que querem tomar o lugar do rei de Ítaca.

 

Os físicos dizem que, na teoria da relatividade, o espaço-tempo seria um tecido plano, reto, se não houvesse coisas no universo; mas diante de objetos com massa (um asteroide, um planeta, uma estrela, você), esse tecido sofre uma curvatura. Quanto maior a massa, maior a curva. Quando experimentamos isso, sentimos que algo nos “puxa” para algum lugar. Às vezes chamamos isso de gravidade.

 

A gravidade não seria exatamente uma força, mas sim o resultado dos objetos seguindo o caminho mais reto possível através de um espaço-tempo curvo. Objetos com massa maior (digamos, buracos negros) fazem curvas maiores no tecido, dobrando tudo à sua volta.

 

Quando estou caminhando com meu pai, por exemplo, se eu acelero o passo em relação ao dele, o meu tempo passa mais devagar. E ele chega ao futuro mais depressa que eu. Como não quero que isso aconteça, caminho um pouco mais devagar.

 

Quando gosto de um poema, faço a mesma coisa. Desacelero o passo, querendo que cada segundo dele dure mais do que o meu.


Rafael Zacca para coisas que lampejam

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