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Lucas ferreira

Fabrico uma editora de meus poucos recursos



Existem basicamente dois tipos de poetas: os que odeiam os editores e os editores. Antigamente, uma multidão formava o primeiro grupo. Era moda entre os autores destilar ódio, cometer homicídio, sequestrar entes queridos de editores não tão queridos. Goethe, por exemplo, que pertencia ao primeiro grupo, certa vez escreveu: “Os editores são todos cúmplices do Satã. Deve existir um inferno especial para eles”. Essa rixa começou porque os poetas costumam ser muito pobres e os editores tinham fama de serem muito endinheirados (claro que às custas dos poetas muito pobres). A poesia parece exigir um voto franciscano daqueles que praticam poemas, como se o dinheiro não fosse compatível com a modalidade do esporte em que competem. Caso muito diferente dos editores, que, em última análise, querem que os livros sejam mais que lidos, querem que os livros sejam vendidos. Eugénio de Andrade, poeta português, escreveu um livro belíssimo chamado Os amantes sem dinheiro. Adivinha. Um ato falho do editor fez com que o livro fosse impresso como Os amantes do dinheiro. Acho que isso ilustra a consciência dessas duas figuras inimigas que por maldade foram obrigadas a fazerem trabalho juntas.


Bom, nós aqui pertencemos ao segundo grupo: o grupo dos pobres poetas editores, que de dia vivem de uma profissão que só traz prejuízo e de noite dos prejuízos de uma profissão que nem profissão é; o grupo dos que vivem não no inferno propriamente, mas numa pindaíba. O ingrato trabalho dos poetas-editores, por ser tão mal (ou no meu caso, tão estritamente não remunerado), torna o trabalho ainda mais ingrato e trabalhoso. Então olhamos para nossas mãos e nos perguntamos: por que existimos?


Por que existem os editores? Se são tão tristes, de uma pobreza tão anêmica e tão anônima, por que persistem? Os editores existem – e digo isso em nome dos poetas – porque precisamos de amigos. Quando escrevo um poema perfeito, a primeira coisa que faço é lavar as mãos enquanto repito pra mim mesmo no espelho “puxa que poema perfeito”. Isso feito, mando pros meus amigos sem dizer quão perfeitamente perfeito é o acabamento do poema perfeito que escrevi. E os meus amigos, completamente desavisados, não raro acabam com meu poema. E eu não posso mandar esses cúmplices do Satã pro inferno porque esses editores em particular são os meus editores particulares, são os meus amigos poetas. O amigo-poeta é uma categoria de trabalho informal de extrema importância na cadeia produtiva da poesia.


Não menos importantes são os editores profissionais, que, para expressar seu desagrado, inventaram o gênero literário mais cruel da literatura: a carta de recusa. A Wislawa Szymborska tem um livro só com a compilação das que escreveu no tempo em que trabalhou no Correio Literário. Não se limitando ao protocolar “não publicaremos”, Szymborska dava respostas do tipo: “Basta ouvir um verso desses e até a pessoa mais próxima vai olhar pro relógio apavorada e sem mais nem menos se lembrará que tem algo extremamente urgente para resolver na cidade”

Mas não pense que os poetas não se vingam porque se vingam sim. Ao primeiro sim te esfregam um “baba, baby”. É o caso de e.e. cummings, que dedicou o livro No thanks a todos os editores que responderam “no, thanks” ao seu original:

 

NO

THANKS

TO

 

Farrar & Rinehart

Simon & Schuster

Coward-McCann

Limited Editions

Harcourt, Brace

Random House

Equinox Press

Smith & Hass

Viking Press

Knopf

Dutton

Harper’s

Scribner’s

Covici-Friede

 

Mas vamos parar de picuinha e fazer as pazes, porque é verdade que nem sempre a estima aos editores é assim tão baixa. João Cabral de Melo Neto dedicou este ao seu editor, como se o responsável por curá-lo da existência incurável dos poemas que nunca estão completos dentro da gente:

 

“O que se diz ao editor a propósito de poemas”

 

Eis mais um livro (fio que o último)

de um incurável pernambucano;

se programam ainda publicá-lo,

digam-me, que com pouco o embalsamo.

 

E preciso logo embalsamá-lo:

enquanto ele me conviva, vivo,

está sujeito a cortes, enxertos:

terminará amputado do fígado,

 

terminará ganhando outro pâncreas;

e se o pulmão não pode outro estilo

(esta dicção de tosse e gagueira),

me esgota, vivo em mim, livro-umbigo.

 

Poema nenhum se autonomiza

no primeiro ditar-se, esboçado,

nem no construí-lo, nem no passar-se

a limpo do datilografá-lo.

 

Um poema é o que há de mais instável:

ele se multiplica e divide,

se pratica as quatro operações

enquanto em nós e de nós existe.

 

Um poema é sempre, como um câncer:

que química, cobalto, indivíduo

parou os pés desse potro solto?

Só o mumificá-lo, pô-lo em livro.

 

João Cabral demorava anos pra terminar, ou melhor, se livrar de um único poema. Sua chatice e dor de cabeça eram famosas e incuráveis. Por isso, quando trabalhava como diplomata em Barcelona, seu médico recomendou que iniciasse algum hobby manual. Ping-pong? Esgrima? Arremesso de dardos? Nada disso, o hobby manual de Cabral foi comprar uma prensa manual e, por puro esporte, começar uma editora de plaquetes, o Livro Inconsútil. “Essa palavra luxuosa”, como ele mesmo diz, “está aí tomada em seu sentido mais material: sem costura”. Foi partindo desse mesmo princípio material que me veio o nome da minha editora que, por ser imaterial, ficou Editora Ficticia.

Com a Ficticia eu aprendi algumas coisas na marra. Exemplo. O difícil de editar um texto alheio é entender que não foi você quem escreveu o texto alheio. O trabalho não consiste em torná-lo em algo que você gostaria de ter escrito, mas em torná-lo em algo que só poderia ter sido escrito pela pessoa que o escreveu. Dos ingredientes que fazem um texto, o editor é o fermento.


Agora, o problema de editar o próprio texto é que você quem escreveu o texto. E você é um neurótico, você pula as rachaduras do chão, você conta os azulejos do banheiro, você perde o sono porque uma dental em vez de uma labial pode estragar um verso. Walt Whitman escreveu Leaves of Grass e o resto da vida passou estragando o livro. 

Assim como tudo o que respira, louva, tudo que escreve, edita. E editar é infinito – ou como diz a famosa frase, “escrever é humano, editar é divino”. Ou infernal, porque poema nenhum está pronto no esboço, na primeira redação, na quarta, na gráfica, na livraria. Olha essa tirinha da Laerte:





Então corrigindo o que eu disse no início, só existe um tipo de poeta: o editor. Hemingway, que não escrevia poemas mas lutava boxe, o que é quase a mesma coisa, disse “escrever é editar”. Não por acaso hoje existe um aplicativo de edição de texto com seu nome, o slogan é: “O aplicativo Hemingway Editor faz você escrever conciso e correto”.


Mas o fato é que ninguém, nem mesmo essas ferramentas, ajudam àqueles que escrevem poesia. No poema cada palavra tem três vezes mais peso do que a mesma palavra fora do poema. Corta pra uma entrevista com Oscar Wilde:

 

— Como foi sua manhã, Sr Wilde?

— Assoberbado — proclamou Oscar Wilde. — O tempo todo a revisar meu poema.

— E o resultado?

— Muito importante — disse Oscar —, tirei uma vírgula.

— Mas só isso?

— De jeito nenhum; após uma reflexão mais amadurecida sobre a questão, eu pus a vírgula de volta.

 

Acho que essa história resume bem as dificuldades daqueles que começaram a enfileirar uma palavra depois da outra e depois se deram conta da burrada em que se meteram. Isto é, estamos falando da poesia.


Ainda não falei do que falo quando falo de poesia. Eu falo sempre dos meus amigos. É preciso não esquecê-los. Os poemas dos meus amigos me deixam compreender com mais detalhes os meus amigos, assim como conhecê-los de perto me deixam mais perto dos poemas que escrevem. Acho que algo parecido deve ter acontecido entre Neruda e Lorca, Sylvia Plath e Anne Sexton, Rilke e Tsvetaeva etc. Vocês já viram como era o Waste Land, do T.S. Eliot, antes da edição de seu amigo, il miglior fabbro, Ezra Pound?



 

Esse é um dos casos mais consagrados do poder da lanternagem. Lendo a correspondência entre Manuel Bandeira e Mário de Andrade a gente encontra umas coisas lindíssimas, como o Bandeira dizendo: “Às vezes quando ando em apertos morais me pergunto: o que pensaria o Mário? Quando escrevo imagino sempre você me lendo”, ou quando o Mário está muito confiante e diz: “Nenhuma crítica alheia nem mesmo a de você que é uma reza de amizade poderá me tirar da minha realidade: a de que os meus poemas são bons”. Mas pra mim, se tornou uma oração esta frase do Bandeira: “Deve-se sempre a verdade a quem trabalha de boa-fé e boa vontade”. Essa frase virou um emblema pra mim e tento empregá-la sempre em favor dos meus amigos e dos poetas que edito pela Ficticia. Qualquer pessoa que eu edito ou lanterno ou que me lanterna ou me edita já vira instantaneamente minha amiga pelo simples fato de que pudemos ser honestos um com o outro.


Eu comecei a escrever quando não tinha nenhum amigo. Quando tinha 15 anos até inventei um amigo imaginário que me mandava poemas, e os poemas do meu amigo imaginário eram melhores que os meus. Mas isso não importava, porque ele era meu amigo. Eu aos poucos fui entendendo que isso aqui é uma coisa que a gente faz junto. E quando a Mabel, o Gabriel, a Ana, a Bia me mandam um poema novo, eu agradeço por eles não serem imaginários. Quando eu, como uma criança que acabou de terminar um desenho de palitinhos, mostro um poema novo pra Bea, pra Giulia, pro Álvaro, pro Zacca e o Zacca, o Álvaro, a Giulia, a Bea parecem gostar do poema mais do que eu gosto de mim mesmo, eu passo a gostar mais de mim mesmo. Então do que falo quando falo em poesia? Eu falo dos meus amigos, das pessoas que eu amo, das que graças a Deus estão vivas e perto de mim. 


E aqui vou me despedindo, com uns versos de “O céu dos editores”, escrito pela Mabel:

 

Fomos a tempo

no corte de um verso

que tinha que acabar

nós achamos literária

nossa forma de partir.

 

Tchau, tchau, gente.

 

 

 

(Ensaio apresentado no evento Do que falo quando falo, no Acaso Cultural, em 27 de julho de 2024)

 

Lucas ferreira nasceu em Barueri (SP). É poeta, editor da Editora Ficticia e da revista Parque dos parquinhos. Estuda literatura brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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