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Como Garfield trabalha



No post de hoje, o blog da escola tem o prazer de começar uma nova série de publicações: é a coluna outras paradas, em que vamos discutir problemas da relação entre autonomia e criação literária numa frente nova.


Como já tínhamos anunciado no editorial que abriu os trabalhos do blog este ano, o objetivo de outras paradas é reconhecer e problematizar a ideia da escrita como trabalho. O nome da coluna vem de uma frase do poeta Guilherme Zarvos, num documentário sobre poesia contemporânea lançado em 2023, em que ele diz algo como “o poeta não vive da própria poesia, ele precisa fazer outras paradas”. Como uma das formas de problematização tem a ver com a mobilização de trajetórias e experiências pessoais, as “outras paradas” também são as dos caminhos de quem escreve, especialmente quando conta sobre “[os] vários empregos/que tive/pra chegar aqui“, como no poema de Angélica Freitas.  


Por isso, nossa abertura não podia ser melhor do que "Como Garfield trabalha", texto inédito de Thadeu C Santos escrito especialmente para a coluna. Entre os bancos do 613 Nova América-Del Castilho/Vargem Grande, um emprego numa editora comercial, bots geradores de imagens do gatinho laranja e o preenchimento de editais de cultura, Thadeu reflete sobre o que é e o que acreditamos que pode a poesia, com e contra a escrita como trabalho.


Boa leitura.

– a escola da palavra


 

 

Certo dia eu estava num ônibus voltando do trabalho pra casa. De tanto usar o 613, pode-se dizer que sou um passageiro devoto da linha Nova América-Del Castilho/Vargem Grande. Tanto na ida quanto na volta o trajeto do 613 é o melhor momento do vai-e-vem casa-firma. Nesse ônibus sempre tem lugar e ele passa por cenários muito bonitos, muita selva, longos canais, capivaras, muitos pássaros – passa por avenidas parecidas com aquela que ficou famosa no pôr do sol do vídeo “São Paulo não tem isso”. De manhã, pego o 613 no Riocentro e vou até a passarela do Gardênia. A viagem é tranquila, mas às vezes o trânsito na Abelardo Bueno, principalmente do Parque Olímpico ao Rio 2, fica infernal. Uma viagem de vinte minutos pode durar mais de uma hora. Na volta, vou de metrô até o Shopping Nova América e espero o 613, que me deixa outra vez no Riocentro. O trânsito agarra no Rio 2 na volta também. Eu moro em Jacarepaguá e trabalho em São Cristóvão, e o Shopping Nova América é o ponto de baldeação.


Como eu estava contando, certo dia eu estava num ônibus voltando do trabalho pra casa muito pensativo. Me lembro que já estava frio, devia ser meio de ano. Naquela noite, uma coisa diferente aconteceu no 613. Saí daquela viagem com um texto no celular. Me lembro de me sentir um pouco angustiado com a falta do que fazer durante os percursos de ônibus. Eu andava inquieto. E eu não estava acostumado àquilo, passar duas horas por turno no transporte público. Duas horas na ida, duas na volta. Eu tinha começado num emprego novo no editorial da Record, no esquema segunda-a-sexta de trabalho. Também estava remexido por dentro, meio apaixonado e meio sofrendo, sem entender muito bem pra onde o coração estava me levando. Foi uma época de mudanças e eu estava tentando me entender. Também me lembro que eu estava com uma baita vontade de escrever, e acabei inventando uma brincadeira pra mim, uma maneira de aproveitar melhor a viagem e botar umas coisas pra fora. De fazer alguma coisa enquanto, por duas horas, eu estivesse voltando pra casa.


Sem saber que isso se tornaria um trabalho sobre escrever, ali propus a mim mesmo o primeiro clash de escrita no ônibus. Naquele dia eu estava pensando muito na poesia como uma crença – e o que, a partir dessa crença, nos é devolvido em aparição. Eu estava um pouco angustiado também pra mostrar que a poesia existia. Estava pensando se era possível comprová-la. Um livro seria o suficiente? Ou há coisas ao redor que chegam aonde os “poemas” não chegam? Seria possível (já e ainda) eu ser um poeta que trabalha com coisas vivas, que podiam ser tocadas, vistas? Eu estava duvidando se realmente aconteceria de alguma doideira repousar em um texto meu se eu começasse a escrever naquele momento. Um texto novo pode acontecer aqui? O pensamento ia mas a parada toda se voltava ao mesmo fio, se voltava pra poesia como uma coisa em que nós acreditamos.


Comecei então a escrever, ali mesmo no meio da viagem da volta pra casa, sobre um episódio em que eu senti que a poesia me testou. Essa foi a primeira história que contei quando passei a escrever no ônibus. O introito é dramático, mas essa história é até leve. Foi um lance que aconteceu comigo em sala de aula, na PUC. Lá eu tive uma conversa com uma intercambista que se tornou uma anedota pessoal que eu sempre gosto de rememorar. A intercambista era uma estudante mexicana que cursava Letras nos Estados Unidos. Veio para o Brasil e acabou indo parar na aula do prof. Karl Erik, num curso sobre arte contemporânea que eu também estava fazendo. Foi um curso muito bom em que estudamos o livro O que as imagens querem?, de W.J. Mitchell. Era a primeira aula do curso e deu pra ver logo que Lucy (inventei esse nome pra ela, não lembro como ela se chamava) estava estranhando o assunto... e então ela puxou papo comigo. Na verdade, o livro que estávamos estudando era o original What do images want?, e Lucy se sentia na estranha condição de ser matriculada em uma universidade americana, viajar meio mundo e ter uma aula de um texto em inglês, de um autor californiano, no Brasil. (Lucy estudava em Los Angeles.) Ela me perguntou onde poderia ter aula de literatura brasileira, que era do que ela queria mesmo se aproximar. Lucy era apenas curiosa, ela não tinha nenhum autor, nenhuma autora, nenhum livro que já tivesse lido. Só queria aproveitar o tempo no Brasil e saber o que tinha de legal na literatura daqui. Imagine você a posição de ter a literatura brasileira inteira para começar a explorar. Falei com ela que na PUC provavelmente ela poderia ter um bom curso sobre Clarice Lispector. Dei algumas dicas de professoras e começamos a conversar. Em dado momento ela perguntou o que eu estudava e eu disse “Poesia”. E ela falou um “Ay...” meio decepcionada. Perguntei a ela se ela gostava de poesia. Ela disse que não. E falou não na lata. Foi rápida, riu de canto. Disse então que não gostava de coisas românticas e que não sabia se o amor realmente existia.


Eu fiquei meio de cara com aquela resposta. Eu falei apenas “Poesia”, não falei nada sobre coisas românticas nem sobre o amor. Hoje sei que fui ingênuo em pensar assim, mas aquela resposta me deixou meio sem jeito. De uma hora pra outra, me vi um cara romântico que acredita convictamente que o amor existe e que, por isso, gosta de poesia. Isso me incomodou. Era uma posição que eu considerava um tanto ridícula, boba, clichê. Daí, quando me lembrei dessa história naquele dia no ônibus, pude encarar esse momento de outra maneira, acertando as contas com esse antigo ranço que me assombrou por muitos anos, um ranço que versava justamente sobre ser ridículo. Na real, fui tolamente um jovem poeta que sempre se irritou muito com o que o senso comum diz sobre a figura de poeta. Para me livrar disso, criei um lugar na minha cabeça em que eu estava sempre vestido com a roupa da independência – uma roupa mal ajambrada – e fazia pelo contrassenso, como alguém que, pra citar um verso de Cecilia Pavón que li semana passada, “escolhia obras intranscendentes” quando pensava no exercício da poesia. Lucy, naquele momento, desarmou prontamente essa marra. Ela tinha na cabeça uma figura de poeta ideal, e um exemplo ideal do que a poesia poderia ser. No banco do ônibus, esse ideal começou a me fustigar.


Talvez ela estivesse só brincando e eu não entendi direito, mas aquela situação, do jeito que rolou, me indicou um problema. E o problema não era da poesia, era meu. Ou melhor, era comigo. Aí que o novelo embolado em que vivia minha cabecinha entrevada começou a se desenrolar. Quando eu estava escrevendo sobre esse acontecido no ônibus, tive a intuição de que o incômodo que eu senti poderia ser deslocado se eu passasse a aceitá-lo. A resposta desconcertante de Lucy se tornou, anos depois de ter sido dita, justamente o que eu estava procurando naquele momento. Ela me mostrou que a poesia de fato existia, me fazendo me conectar com o palpite de que a poesia é uma crença. Era, então, preciso vê-la. Esse era o texto que eu tinha que escrever.


Passei a gostar dessa coisa de que outra pessoa definisse pra mim o que é poesia, e que a partir dessa definição eu seguiria minha lira. Aquela era uma oportunidade; Lucy, com seu desgosto, me deu a faca e o queijo. Pude perceber, então, um dado da crença: acreditar em alguém que a poesia trouxe pra mim. Alguém que me passou uma mensagem da poesia. Quando escrevi aquele texto naquela viagem no 613 lembrando dessa história, fiz essa conciliação: pude voltar atrás e, dessa vez, fui de encontro a Lucy. Quando ela disse que não gostava de poesia, também me disse o que a poesia era. E quem sou eu para recusar essa oferta? Não negar. Não fazer bico. Não ranzinzar. E se Lucy tivesse dito aquilo para me mostrar um caminho? E se ela tivesse ali respondido rapidamente a pergunta what do images want?

 



 

 

Semanas depois, lá estava eu na Record, na pausa do almoço, quando minha mãe me ligou. Ela me contou muito animada, e de um jeito cheio de carinho, que tinha conversado com a minha tia, e que minha tia falou que tinha gostado muito de um texto meu que ela leu no Instagram. Me lembro da voz da minha mãe perguntando “Que texto é esse que você escreveu?” Já havia alguns meses que eu tinha começado a escrever no ônibus e comecei a perceber o quanto essa atividade rende. Depois que engatei, numa semana, eu fazia quatro, três textos. No mês bom, uns quinze textos, o que, pra poesia, é coisa pra caralho pra trabalhar. Eu comecei a postar esses textos no Instagram meio de supetão. Aquela primeira leva era de textos de alguém que, durante a viagem de ônibus de volta do trabalho pra casa, escreve sobre coisas que a poesia lhe mostrou. Suas evidências. A história de Lucy foi uma delas. Mas havia outras histórias pra contar.


Um dia me veio outra ideia. Eu tinha que mostrar o que estava fazendo. Comecei a postar aqueles textos. Assim dava pra fazer tudo o que se espera de um texto no celular. Pensar, escrever, enviar. No Instagram, a coisa figurou mais ou menos assim: eu usava o campo da legenda para o texto em que era encenado um intenso conflito entre a realidade e a ficção sobre um encontro com a poesia. Poderia ser sobre algo que aconteceu comigo ou um breve relato sobre o gesto de escrever, sobre como eu fiz alguns poemas. E, junto desses textos, eu colocava alguma imagem tirada do desenho animado Garfield, que, de alguma maneira, reencenava o texto.


A proposta era mesmo soar esquisito. Meu interesse era provocar sobre o que é um registro literário. Tirar um sarro com essa coisa empolada que se vive na literatura. Daí eu acabei juntando o lance de escrever sobre as aparições da poesia na minha vida a outra atividade no celular, escolher imagens em uma rede que era das minhas distrações preferidas naqueles dias. No Twitter, há um bot chamado Garfield and Friends Screens. É um bot pelo qual tenho muito apreço. Ele seleciona e posta um print do desenho animado Garfield e seus amigos a cada hora. Mostra assim, de modo aleatório, uma sequência de cenas de Garfield. Eu sempre gostei muito de bots porque eles escrevem sozinhos. Parecem saídos de um sonho de Tristan Tzara. Essa ponte entre programação e texto sempre me interessou. Gosto de citar o slogan do WordPress: Code is poetry. Eu acrescento: Bot is poetry. Sempre fui fã de um bot que mixa textos de Ulises Carrión, o botCarrión. E também tem um bot muito bom da Clarice Lispector. Eu comecei a me interessar muito naquele bot do Garfield porque, ao ver apenas uma imagem do desenho, toda a história do episódio poderia ser imaginada. Num momento, um print do Garfield vestido de César. Em outro, ele pilota um avião da Força Aérea dos Estados Unidos. Em outro, está em alto mar remando dentro de uma caixa de papelão. Garfield aparece como diretor de TV em uma sala cheia de telas e controles. Lê um livro. Em muitos desses prints, claro, Garfield está dormindo, o que sempre é um print delicioso de ver. Ou comendo lasanha. Como eu visitava aquela rede sempre no ônibus da volta, via ali uns 24 prints do desenho a cada dia. E comecei a fazer isso todos os dias. Comecei a reparar também nos amigos de Garfield. Principalmente no ovo com patas, que eu acho que é o personagem mais psicanalítico que já vi em desenhos animados – a pessoa que está sempre no útero da mãe – e também o pato que usa uma boia de pato. Eles são os mais queridos por mim. Comecei a pensar no ovo com patas como um problema da literatura. E o pato com boia de pato, a coisa que veste a si mesma, como uma sanha a ser bulida pela poesia. Garfield, o ovo com patas e o pato com boia de pato começaram a render ideias para textos, e aconteceram algumas costuras entre rememorar as aparições da poesia e aquelas imagens. Passei a aplicar em Garfield o que eu tinha aprendido com Lucy. Fui até ele. As histórias que eu estava contando então mudaram um pouco de tema, passaram a simular rememorações de poemas que eu escrevi, sobre o que me motivou a fazer aquele poema, o que eu estava sentindo, o que estava acontecendo comigo. Daí houve outro momento que eu engatei. E passei um tempo escrevendo sobre essas histórias de escritas. Foi um desses textos que minha tia leu. E que depois ligou. E contou pra minha mãe.




Cheguei a pensar que esse lance com o bot do Garfield pudesse me distrair, fazer com que eu me desconcentrasse. Havia uma disciplina em escrever na volta pra casa. E o exercício de retornar ao mesmo ponto, dias a fio, fazia com que o ponto se abrisse mais e mais. Também achei que o assunto que eu vinha trabalhando pudesse mudar de repente e cair em outra brisa, me tirando da pegada que o embate com o pensamento sobre escrever um texto, sobre contar uma história em que a poesia se fez presente, estava me levando. No entanto, Garfield somou. E, de uma maneira debochada, começou a me indicar que aqueles textos eram exatamente o meu trabalho. Comecei a dar corda para uma ideia de que, se eu estava usando o tempo de deslocamento do trabalho pra casa pra escrever, eu estava ali trabalhando. Estava pensando sobre a literatura. Estava editando um texto. Estava escrevendo. E tentando entender como a poesia funcionava. Estava trabalhando. O lance de pegar o ônibus de segunda à sexta me colocava desperto, em movimento. Ali eu tinha tudo – o Rio em volta – e podia dar tudo de mim. Garfield me revelou o trabalho justamente por ser, naquele momento, um exemplo de recriação. Garfield é um acontecimento repetido. Ele é feito para repetir. É exemplo de uma atividade cíclica. Para ser exibida de novo e de novo. É encantador, mas também é gasto. Está em todo lugar. Sua atividade se aproximava do meu dia a dia de trabalho. Garfield me apareceu estampado numa bolsa de uma passageira do metrô, que pegou o mesmo vagão que eu. Ele estava no casaco de uma adolescente na padaria, anteontem. Garfield me mostrou que, durante as viagens de ônibus, o tema da minha escrita era, na real, ela mesma. Que meu trabalho era voltar ao trabalho. Se escrever é agir, Garfield é ação. O trabalho – ou seja, a poesia – é um ciclo de sua ação. É uma coisa para ser feita de novo. Dita de novo.


Matutando essas intenções, deixei de ver Garfield como um passivo. Como um paciente. Como um “malandro”, tal indicou uma manchete meio desavisada da Folha de S.Paulo sobre os 45 anos do gatinho laranja. Tudo nele, até mesmo a inércia e a preguiça, começaram a soar pra mim como índices de atividade. Eu também me lembrava muito de Macunaíma e Bartleby. E comecei a botar ainda mais fé nessa ideia. Garfield, diferente de seu dono, que sai todos os dias úteis para dar expediente, faz outra coisa. Qualquer outra coisa. Seu não é sim. Não à toa, Garfield é muito usado em campanhas anarquistas antitrabalho. Aqui, numa negação individual ao sistema de trabalho, aquele tipo de cartum que tem um senhor gordo fazendo os trabalhadores de ventríloquos – e os trabalhadores, por sua vez, aparecem representados por cadáveres, zumbis ou esqueletos. Mas também há visões coletivas sobre a política do gatinho laranja. Seu modo de vida é tomado por comunistas como uma alegoria revisada dos Tempos modernos de Chaplin – e o quanto isso implica também numa reflexão marxista de nosso sistema de trabalho, principalmente aquela que critica o tempo demandado pelo trabalho – o trabalho como um organizador do tempo. Os comunistas costumam gostar de Garfield.


Talvez seja por esse engajamento coletivo que Garfield me apresentou pessoas. Papos que tiveram início por causa dos textos e com muito de seu interesse também atiçado pelos prints do desenho animado. A coisa caminhava de maneira aleatória, com revelações que me davam uma rasteira nova por vez. E houve até uma conversa espirituosa e improvável com Victor Galdino sobre o Garfield negro, quando ele fez uma observação finíssima de como Garfield poderia ser lido em uma tomada ampla do modo de vida racializado nos Estados Unidos (um papo que culimou no “malandro” da Folha de S.Paulo). As camadas sobrepostas de sentidos possíveis para Garfield se acumularam com certa beleza até. Garfield and Friends Screens é um novelo que pode ser constantemente retomado. E foi isso que passei a fazer por um bom tempo, retomá-lo numa experiência de aproximação entre Garfield e a poesia que tinha hora marcada: mais ou menos entre oito e nove da noite no 613, do Shopping Nova América até o meu ponto perto de casa, no Riocentro.


Quando eu já estava com essas ideias bem sedimentadas, escrevi três versos que acabaram virando um resumo sobre a atividade diária de escrever no ônibus. Devo esses versos ao gatinho laranja. Me concentrar na noção de trabalho foi um salto novo. E Garfield foi especialmente bondoso ao me mostrar coisas sobre o trabalho e a escrita. Ele me ajudou a dobrar a curva. Sentir o vento que eu estava ansiando. E se eu comecei as viagens no 613 inquieto, querendo me aventurar em novas ideias para um texto; tempos depois havia ali finalmente oportunidades de voo. Os três versos são: “Escrever é a coisa que eu mais gosto na vida. Quem escreve conta uma história. Uma história que é um texto sobre escrever.” Três versos que começaram a funcionar como uma força-guia para o que viria nos 700 dias seguintes.

 


 

 

A Força do Querer

 

escrevo como criança, brinco com o Garfield,

puxo o gatinho laranja pra perto,

 

faço dele parte do que quero de mim,

uma bola aberta, sem nenhum significado,

 

em três tracinhos, tronco e membros,

um desenho animado,

 

sou apenas a história que conto ser,

 

do mesmo jeito que o céu expulsa a chuva,

uso coisas que tenho à mão, sem cagar regra,

sem falar mal de graça de quem não gosto,

 

sem trovão,

 

me sirvo do manancial, frases curtas,

verbos rápidos, predicados breves,

 

escrevo assim justamente porque

 

fico na minha, não forço simpatia,

digo o que preciso antes de sumir,

 

sei que sou qualquer um,

por isso, sou facilmente enganado por quem finge interesse,

 

apenas católico,

para quem imagina que pode me ter na mão,

 

para quem mente no espelho,

 

brinco com o Garfield,

mas não topo toda brincadeira,

algum limite há quando me fazem de otário,

 

quando, na moita, copiam a minha chave,

faço que erre a porta de casa,

 

moo a cana, de pé virado,

viro canto na boca do mateiro, faço letra,

falo de alguém e corto o ar, por isso,

 

fazem letra falando de mim,

 

como na melhor educação,

comida boa é a que colocam no prato,

 

raspo com o dedo nos cantinhos,

passo a língua no pires pra sorver o caldo,

 

descanso no alto da estante, como se nada bastasse

e absolutamente atento, durmo na caixa de sapato

 



 

 

A coisa foi indo e indo até que chegou o momento em que se esgotou. Eu até tentava continuar escrevendo no ônibus, mas aos poucos essa vontade foi morrendo. Eu não consegui escrever mais nada no ônibus. Nenhum print novo de Garfield and Friends Screens dava o gás costumeiro para a criação. Entendi que a expiação encontrou finalmente seu mar. A poesia me deu uma missão e eu havia passado por todas as fases, visitado as histórias mais importantes, revirado os cômodos de cada casa que passei e desfeito cada cama que dormi. O que restava era então refazer a trilha. Recolher todos os textos e ver como eles se comportavam. Afinal, o que eram? Reunir os produtos daquele trabalho me trouxe mais perguntas. What do images want? O que estão fazendo comigo? O que eu faço com elas?


A primeira resposta pra essa pergunta veio em retorno à abertura do edital do Rumos do Itaú. Porque além de poeta, saibam vocês, eu sou uma pessoa que gosta de sofrer preenchendo os campos de um edital de fomento. Tive o ímpeto de submeter a publicação do livro Garfield para o Rumos. Fiquei curioso em ver como aquelas coisas se comportariam com uma roupa editorial, a proposta de que a poesia é uma crença, de que escrever sobre escrever no ônibus é um trabalho. E pensar na publicação desse livro abriu um novo protocolo na minha cabecinha.


Algumas lições pareciam me servir para pensar como esse livro poderia ser. Garfield me fazia lembrar quase que instantaneamente em PanAmérica, de José Agrippino de Paula, que transformou um set de filmagem de Hollywood em arena de invenção da literatura, e Marilyn Monroe na personagem mais importante de nossa escrita experimental. Também me lembrava de um trabalho de Ulises Carrión chamado Lilia Prado superestrela, quando ele organizou, em Amsterdã, um festival de cinema com os filmes da atriz mexicana Lilia Prado. A atriz trabalhou com Luis Buñuel em Subida al cielo, contudo se tornou notável pelas atuações no cinema cabaretero, na comédia pastelona, que era muito popular no México nos anos 1970 e lotava as salas de cinema. O cinema cabaretero era tão forte que gerou uma indústria cinematográfica pujante, e toda uma estrutura de estúdios, distribuidores e salas de exibição deu sustentação ao cinema mexicano de maneira geral. Para Carrión, homenagear Lilia Prado na Europa era afirmar sua posição de estrela de cinema, uma posição que o sistema cultural mexicano não conseguiria impor a um país europeu. Na sua proposta de trabalho, seu ponto de vista era desdobrado a partir da noção de que


1. O poder político permite que uma cultura imponha seus símbolos sobre outras.

2. A comunicação, a grande mídia influem no êxito/fracasso dos produtos culturais.

3. Os artistas não podem influir na imaginação coletiva tal como é construída/manipulada por 1, mas os artistas podem manipular 2 para transcender/superar os efeitos de 1.


O festival aconteceu com uma entrevista maravilhosa de Lilia Prado a Carrión e a presença da atriz na première em Amsterdã. Esse tipo de ação estratégica da arte – tanto a de Paula quanto a de Carrión –, que se faz contrastando a mídia hegemônica (o festival de cinema em Amsterdã) com o contexto social da América Latina (Lilia Prado) é uma das curtições mais divertidas que tem. Como viver no Rio hoje sem a imagem verdadeira do Mickey de fuzil rodeado pela frase “Tu tá no RJ não é Disney” num lambe/tatuagem de Raphael Brunet? É impossível. Oferecer Garfiled à literatura brasileira poderia ser, como Lucy intuiu, minha tarefa romântica. O desfio então é realizá-la.


Talvez não baste fazer com que meus planos se pareçam com frases do tipo “Defenda o seu projeto”, talvez haja outros caminhos a ser percorridos além do livro Garfield, o que é hoje apenas uma promessa. No entanto, esse impasse da publicação revela a última medida que eu gostaria de revelar aqui sobre o trabalho: a caricatura do fazedor de cultura. O modelo de fomento de artistas via editais é também um sintoma da situação do trabalho (muitas vezes visto como “oportunidade”). Não apenas porque os recursos dos editais são escassos, mas porque ensejam um nível técnico da burocracia que dificilmente se tem à mão. Os editais dizem, promovem, exibem. São expressão. Vestem uma camisa de Lady Incentivo, a noção de que um trabalho resulta de sua revisita constante.




 


Thadeu C Santos (Itaperuna, 1987) é poeta, doutorando em Letras na PUC-Rio e editor assistente no Grupo Editorial Record. Já publicou poemas nas revistas Garupa, Virada e escamandro e nos zines descarrego e felisberta. Recentemente, publicou montagens de poemas alheios em Aproximação, pela Ficticia. Traduziu textos de Nicanor Parra para a revista Ouriço e uma legislação da Bolívia, a Lei de Direitos da Mãe Terra, para uma publicação da fada inflada. Tem ensaios sobre literatura e som da voz editados nas revistas Alter e Periódico-Periódico. Já organizou, com Bernardo Oliveira e Maria Bogado, o evento de poesia e performance Subcena (Quintavant/Audio Rebel/kza1) e, com Juliana Travassos, editou a coleção A Galope (Garupa/kza1).

 


 


 

 

 

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