
O PALCO
a voz percorre a lata de metal entre os dedos de Stella do Patrocínio – sua voz não pode ser enterrada como indigente sua voz é fuga. a voz elétrica da minha avó morta dança no áudio do meu celular – sua voz não pode ser cimentada em um gaveteiro sua voz é fuga. a voz de Amiri Baraka dá voltas na voz de Amiri Baraka repetindo estou dentro de alguém que me
odeia – sua voz não pode ser hospitalizada e morta
não
a voz de quem desejou escrever poemas que matam é fuga. a lata só pode ser um palco aberto onde os espíritos e as palavras embrazam, fazem xarpis no vento.
VIBRAÇÃO
ando obcecada pelo nascimento do som. quando digito nascimento do som o google me responde com uma apresentação do Milton. me parece perfeita a hipótese de que o som nasce em Milton. é evidente que o som e o desejo nascem juntos. também acredito que o primeiro som do mundo ou seja o primeiro desejo do mundo nasceu dentro encruado em uma múcua. a múcua é o fruto do embondeiro, do baobá. é impressionante que uma múcua seja como é: fiapenta terrosa algo que poderia se esconder com facilidade em um deserto por exemplo é curioso uma múcua ser assim e ao mesmo tempo tão suculenta. um mundo se abre diante da múcua diante do som diante do desejo.
VIBRAÇÃO
são 55 milhões de anos dentro do Namibe e era um poema sobre o nascimento do som que eu tinha comigo. queria lançar ele no deserto mais antigo do mundo, na minha cabeça pareceu ser algo sensato a se fazer. kukulu kukulu, andar a deriva, pelos desvios. quem me mostrou como fazer uso da palavra foram helder, brunnie e isvania enquanto subíamos a Serra da Leba em curva, tão perto do sol quanto jamais, quando confiávamos a viagem pelo sul angolano em um atlas remendado, quando parávamos pra ver algo bonito na estrada, enquanto procurávamos galão e bolinhos na hora do mata-bicho, quando as estradas, quando as estradas, quando as estradas. nenhuma placa, todos os buracos possíveis. o desejo era atravessar as províncias pra ver a planta. isso sim, sensato. welwitschia mirabilis. um dia disseram: você é a única. disseram: suas folhas são lâminas. disseram: você degola e mata e se alimenta de gente. disseram: você cultiva desaparecidos. disseram: essa é uma boa história para preservar. no meu poema, o primeiro som do mundo nasce no coração de uma múcua. o som se manifesta porque esfarela no ar. fico pensando que o som podia nascer dentro da welwitschia, ser seu segredo, na verdade. um som pedregoso, milenar, seco. um som sobrevivente e testemunha do que virá. um som capaz de vestir pesadelos. esse som mesmo que nos matabicha com gosto. que nos devora.
O MICROFONE
porque é perturbador
sempre quero mais.
O PALCO
a busca por um lugar para chamar de casa, por um lugar para onde deve-se retornar, esse problema comum à diáspora negra. James Baldwin diz eu sou um estranho em I’m not your Negro. [Eu não sou o seu negro]. um estranho no que seria o seu país. [Eu não sou a sua negra]. o documentário, concebido a partir de um manuscrito do escritor, recebe o mesmo título do documento. Remember this House. você vai precisar se lembrar dessa casa. Baldwin defende em trinta páginas que a história dos Estados Unidos pode ser contada através do assassinato de três figuras: Martin Luther King, Malcom X e Medgar Evers. o texto, como a voz, nunca foi finalizado. Um poema é um gesto em direção ao lar, diz Jericho Brown em Duplex. de madrugada, minha avó abre as portas do seu barraco em Vicente de Carvalho para os meninos da boca se esconderem da polícia e, na sequência, passa um café para todo mundo. Na UTI, Antenora arreganha a boca mais vezes do que consigo contar, jamais os olhos, e penso: aí está o início do mundo, aí está o nascimento do som o nascimento do desejo. desço do trem, em Madureira, vejo um ambulante negro largar quilômetros de carregadores e capas de celular correr em direção aos trilhos enquanto abre os botões da camisa como se estivesse em chamas. [Eu não sou seu negre] ele salta, ingovernável, entre as linhas de ferros e deita, à espera do próximo trem. seu corpo é uma pedra. outros ambulantes gritam e pulam também, destacam seu corpo pesado do chão. os homens o retiram do caminho pelos braços e pelas pernas, seguram sua nuca com delicadeza e dizem sem parar: não. em uma ida à biblioteca, durante a graduação, um livro de capa preta me chama atenção, o My Black Me: a Beginning Book of Black Poetry, uma antologia estadunidense de 1974, editada por Arnold Adoff, com poetas que eu só teria ideia da dimensão anos depois, como Nikki Giovanni, Lucille Clifton e Langston Hughes. escuto o sussurro da voz desse poema de Carol Freeman que traduzi em todas essas cenas. [Eu não]
Não pense que
Nós
Queremos te fazer mal
quando
Nós tocamos a
Sua mente confusa
&
Jogamos você na
Negritude
– nós apenas queremos trazer você para casa.
O PALCO
o palco é a boca imensa de Antenora grunhindo.
o palco é indecifrável.
o palco agulha.
aqui estou, tentando encontrar palavras.
aqui estou, tateando o caminho de voltar para casa.
AS CAIXAS DE SOM
a primeira gravação sonora foi feita com agulhas, cera, um diafragma, uma corneta. foi Thomas Edson quem montou o objeto em 1877 e captou um som ruidoso, codificado. parece que tem alguém do outro lado. tentando muito. Pedro Pessanha me conta uma anedota que diz: o tambor é o primeiro wi-fi do mundo. parece que tem alguém do outro lado esperando. Thomas pode estar confuso agora, coitado. penso: a princípio, a função da caixa torácica é proteger o coração e os pulmões. Os sound systems jamaicanos, as aparelhagens, os paredões, protegem o grave enquanto projetam o som. e projetam os sonhos intranquilos. a performance vive no sono. os sonhos são terríveis, os pesadelos, fantásticos. esse é o loop, invertendo sempre a sentença.
O MICROFONE
Tenha um pouco de paciência. Estou
aprendendo a me tornar alguém aqui.
A PALAVRA
estou envolvida em uma pesquisa em performance chamada APUPÚ. a partir da palavra falada, artistas negres da dança, da literatura e da música se encontram no palco para imaginar e compor uma cena costurada por ritmos como o kuduro, funk, amapiano, a tarraxinha, o afrobeat, o jazz. passaram pelas três edições do APUPÚ: Joss Dee, dj residente do projeto, Heleine Fernandes, Gênesis, Felipe Olàdélè, Preta QueenB Rull e Dandara Patroclo e eu. o dispositivo criativo imaginar o poema se movimentando em um lugar fictício: um inferninho, um apupú. onde o poema dança aputarado, faz algazarra.
O PÚBLICO
paulo freire já dizia antes de lermos palavras lemos o mundo
estamos lendo o mundo e por isso no show só entram leitores quem assiste está sempre lendo o apupú
numa pegação ou comprando cervejas
ou fingindo fugir de um ex ou achando tudo muito esquisito
ou tá muito vidrado ou achando tudo uma bela merda ou
passando por uma reviravolta aproveitando a revoada ou de fato
achando tudo muito esquisito. fato é que
vocês são certamente a melhor plateia que eu poderia querer
O MICROFONE
apupú é uma gíria angolana que aprendi quando passei doze dias em Luanda, a trabalho, a convite do Centro Cultural Guimarães Rosa, para realizar uma oficina de performance e poesia e uma apresentação no teatro da instituição. aquela foi minha primeira vez em Angola, a primeira vez fora do Brasil. acabo de retornar de lá pela segunda vez, onde passei dezenove dias, onde estou passando. aprendi das duas vezes e mais: apupú é o lugar onde está a festa, o rolê, o fervo, o aputaro, a vadiagem. na performance, idealizada depois dessa primeira ida, o desejo de estimular relações entre Brasil e Angola – desde a subjetividade da música fundida ao texto – toma corpo e se transforma a cada apresentação. em dezembro de 2022, a música Apupú de John Trouble, dj Aka M e Carlos Monsta estava estourada e na boca de geral. a letra da música bate em um ponto muito sensível: com deboche, flecha a marginalização do kuduro, em um país extremamente pautado pelo senso de moralidade e culpa cristãos. nada muito distante do que vivemos aqui, no país que vigorou a Lei da Vadiagem dois anos depois de declarada a “abolição”, contravenção penal que associou sambistas ao crime por anos a fio. ou, do país onde assassinatos de artistas do funk são tão comuns a ponto de termos um período conhecido como Era da Chacina, época em que três MCs e um DJ foram executados na Baixada Santista.
A PALAVRA
mbiémbémbé: feitiço. nossos sonhos,
poemas. ou seja, nossas performances,
como mbiémbémbé: linguagem e vida.
O MICROFONE
na música, a voz de John Trouble fala com a vizinha fofoqueira, que fica vigiando quem vai para o apupú, em tom de julgamento. além de chamar a vizinha para a festa, John segreda, acelerado: num é nós que bebemos bué? num é nós que fumamos bué? num é nós que não temos futuro e segundo você tamu a se perder? vizinha vem vou te contar tavê ontém? teu filho também estava no apupú (também estava lá) tua filha também estava no apupú (também estava lá). a voz da vadiagem não pode ser morta – a voz da vadiagem é fuga – terror e fantasia, corpo do desejo, eletricidade. voz da múcua, voz que devora o tempo.
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