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O pornô verde de Paula Poc

Atualizado: 12 de jun.


 

Última vez que vi Isabella Rossellini foi como uma freira austera no filme Conclave. Demorei um pouco para reconhecê-la, porque tenho na cabeça uma imagem dela vestida de louva-deus macho, uma fantasia feita de recortes de papelão e espuma.


A performance Green Porno, dirigida, escrita e estrelada por Rossellini, estreou na Sundance TV, um canal estadunidense de televisão, em 2008. E está, desde o começo do ano, disponível na plataforma Mubi. É uma série de curtas-metragens, de até 5 minutos, sobre a vida sexual e reprodutiva de vários animais. Há anos, eu lembro da masturbação dos golfinhos em corais e dos jogos bissexuais envolvendo o espiráculo. E do corpo sem cérebro da minhoca que é, ao mesmo tempo, macho e fêmea e faz sexo sempre na posição 69. Achei tão divertida a série – e informativa! – que cheguei a traduzir alguns trechos para um blog que tinha na época, usando gifs mal feitos que piscavam em cores neon. Foi uma maneira divertida de praticar a tradução do tempo subjuntivo: “se eu fosse uma aranha... me divertiria assim”.


A fascinação que Green Porno me causou tem muito a ver com a ampla diversidade de comportamentos sexuais, combinada com a voz, ao mesmo tempo, firme e suave de Rossellini. Além dos closes up na sua boca pintada de vermelho. Sua perfomance sensual coloca a perigo ideias do que é natural ou antinatural nas dinâmicas de sexo, prazer, reprodução. O que é natural ou antinatural se a natureza muda? E muda tanto que a ideia de papeis sexuais binários soa mais do que tediosa, propositadamente restrita. 


Green Porno alimentou a curiosidade que sempre tive sobre outras vidas não-humanas. Confirmou o que eu já intuía sobre o amplo espectro de maneiras de ser deste planeta. Uns meses atrás, achei uma reportagem da BBC sobre a relação entre animais e presentes. Os macacos bonobos gostam de presentear desconhecidos com frutas, inclusive deixam de comer para interagir com um estranho e presenteá-lo. Enquanto as aranhas de teia de berçário macho tentam enganar a potencial parceira com presentes faltando pedaço (uma perna seca de grilo, por exemplo) ao embrulhá-los em seda. Esperam que ela copule antes de descobrir que o arranjo é um disfarce. Da maior solidariedade à enganação, esse planeta é assim: diverso.


Essa semana assisti uma palestra do Laboratório de Sistemática e Biologia de Formigas da UFPR e descobri, entre muitas coisas interessantes, que existem 14 mil espécies de formigas e que essas espécies constroem ninhos, se alimentam, interagem de maneiras diferentes. O pornô verde é fascinante!


Então, fiquei entusiasmada quando abri Artrópode (Patuá, 2024), livro de estreia de Paula Poc e descobri ali uma história de amor, à distância, entre uma humana e um INSETO. Uma leitura única porque deixa a leitora apaixonada. Um amante com filo, classe, ordem, subordem e família: anthropoda / insecta / orthoptera / ensifera / gryllidae. Um amante grande e verde, com antenas que não cabem nos espaços de teto baixo dos humanos. Reluzente, quitinoso, com uma glândula que secreta um líquido ao paladar da parceira (p.53).


Paula consegue criar uma atmosfera sedutora a la Isabella Rossellini. Uma performance sensual. A poeta intercala poemas narrativos da história de amor pelo artrópode com comentários informativos sobre a vida desses insetos. Como se comunicam, como se reproduzem, como seus corpos são preparados para o canto e o prazer: “Você canta com as asas. Eu escuto com as pernas. É desse jeito sempre com a gente” (p.28).


Esse canto de sedução me levou direto ao capítulo Cigarras de Eros, o doce-amargo, ensaio de Anne Carson. As cigarras de Eros passam a vida inteira morrendo de fome em busca do desejo. É por uma história de sabedoria tradicional que Sócrates nos conta que as cigarras já tinham sido humanas, antes do nascimento das Musas. Depois que Musas e canto surgiram, as cigarras ficaram tão impressionadas pelo prazer de cantar que se esqueceram de comer e beber e morreram sem perceber. Só cantavam e cantavam. Desses humanos impressionados pelo prazer surgiu a raça das cigarras. Mas, diferente do que pode parecer à primeira vista, em Artrópode a cigarra não é (só) o amante-inseto. A própria poeta entra no “agora” do desejo e permanece lá cantando seu amor. Não é como a cigarra fêmea que emite um som muito baixinho inaudível, é uma poeta cigarra macho, publicizando em alto som seu amor.

O tempo do agora, porém, não dura para sempre como acontece com as cigarras, só enquanto dura a vida do amante: “seu tempo de vida varia alguns meses/ entre quatro e seis no máximo (...) Eu pretendo viver muitos anos por isso/ é evidente que esse amor nunca poderia/ acontecer de verdade” (p.171). É uma incompatibilidade de tempo, com certeza, e não de anatomia.


A questão do tempo é bastante importante para os poemas de Paula Poc, porque a duração do canto é a duração de estar apaixonada por estar apaixonada “é meu desejo que desejo” (Roland Barthes). A escrita só é possível neste intervalo. As cigarras não têm vida separada do desejo, o amante-artrópode quando atinge a fase adulta copula o quanto pode até morrer (p.112).


Quando a paixão acaba, acaba também o livro. Que termina, aliás, sem que nada entre poeta e amado tenha acontecido de fato na cama, nada consumado é o que anuncia a poeta desde a epígrafe: o paraíso é um lugar onde nada acontece. Tudo bem, eros é mesmo uma ventura da imaginação.


Referência de Carson, Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso usa a ideia de atopia para falar da sensação de que a pessoa amada é radicalmente singular e o que se vive com ela, para ela, por ela é sem precedente. A pessoa amada é Única, responde à especialidade do meu desejo. Não pode ser capturada por nenhum estereótipo, que é a realidade só dos outros.  O que pode ser mais atópico do que se apaixonar por alguém fora da sua espécie? O atópico faz a linguagem tremer, não se pode falar dele, sobre ele. Então o que a poeta faz é, por meio da linguagem, presentear a pessoa amada com uma metamorfose singular. Transformar, no espaço do poema, o amante em artrópode, o mais atópico de todos, dar a ele essa possibilidade de ser tão outro. Atopia: não tem lugar igual. O livro começa justamente assim: “vou te dar um presente./ Esse aqui, esse bicho, vai ser seu/ presente” (p.19).

O que a poeta não diz, que vamos perceber ao longo do livro, é a sua própria transformação em cigarra – já que a condição humana é incompatível com a perseguição do desejo, conforme nos contou Sócrates. Para logo depois virar humana de novo – já que a condição de cigarra é incompatível com viver dentro do tempo, conforme nos contou Platão. E a poeta não pode desprezar seu relacionamento com o tempo: “o pior é saber que/ não posso ir lá/ não agora.” (p.151).


Não pode ir lá agora, mas pode ir lá agora mesmo estando aqui, quando escreve (poemas ou cartas) e quando sonha. Quando escreve o sonho. Um dos meus poemas favoritos do livro é sonho {I}. Especialmente a parte do encontro, no beliche, em que patas serrilhadas estão cravadas na boceta e o sexo oral revela um “sabor de mato que seu corpo tem”. A atopia de Barthes no próximo verso “Eu sou diferente”.  Essa descrição bastante explícita e prazerosa do encontro entre amantes e um prazer insuportável contrasta de maneira engraçada com a capa do livro que, com cara de manual de ciências, engana bem um desavisado.


Um bom disfarce é bastante útil nas dinâmicas do desejo, como nos ensina Rossellini. Vestida como o assustador peixe-pescador-das-profundezas, que acende uma isca luminosa no breu do oceano profundo para atrair outros peixes. O desejo é também essa corrente perigosa que atrai e anima tudo: “é o que me mantém viva/onde coloco eros/a eletricidade que corre meu corpo”. Para uma leitora apaixonada, é único o canto eletrizante de Paula Poc em Artrópode.

 

Julia Raiz para A bobina. Julia é escritora, tradutora e agitadora cultural. Doutora em estudos literários (UFPR), oferece oficinas de escrita. Atualmente, coordena o PMLLLB (Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas) de Curitiba, promovendo políticas públicas na área. Publicou os livros Diário: a mulher e o cavalo (1ª ed. 2017, 2ª ed. bilíngue 2023, Telaranha), Metamorfoses do Sr. Ovídio (Arte e Letra, 2022) e Bebê tem fascinação por lâmpadas (Chão da Feira, 2024). Sua escrita transita entre poesia, prosa e ensaio.

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