Na encruzilhada uma ilha de edição
- Helena Zelic
- há 1 dia
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"Coração bifurcado/ jogo de morte/ dado chumbado/ carta marcada/ um gole de sorte", canta Jards Macalé em seu último hit, do disco homônimo Coração Bifurcado (2023). A 'encruza' de Jards une um coro de lamento amoroso, alongado e repetitivo, um riff grave e uma composição de palavras cortantes, cantadas em voz abafada, demarcadora de um perigo vivido "num fio da navalha/ no som da rua". Lançado no mesmo ano, o livro Pretovírgula (Círculo de Poemas, 2023), de Lucas Litrento, também cria uma profusão de imagens poéticas a partir do símbolo da encruzilhada.
Um dos poemas, "trinco", nos coloca diante de uma "sombra de latidos na encruza/ (...) um trinco num chandon/ atropelado no meio da pista" (p. 13). Enquanto Macalé cria "o sereno da noite/ morrendo e esperando que o dia reluza", a versão de Litrento sobre a noite urbana é de trap e trabalho precário, em um poema que evidencia ruídos e perigos, os cortes e a presença da morte – inclusive pela incisão no último verso do poema ("nem a curva de um-"). A encruzilhada onde se encontra o conjunto de poemas Pretovírgula talvez seja menos passional que a de Macalé, mas coincide com ela na montagem de um campo minado, uma área desafiadora onde as palavras são lâminas e a morte ronda, assim como as reações a ela e suas violências.
Em Pretovírgula, fala-se em guerras, artilharias são montadas, algum sangue jorra. Pontiagudas, as palavras fazem faísca. O livro trava um conflito, do qual a encruzilhada é uma das imagens, assumindo uma ruptura com a linearidade e suas formas opressivas. Nesse sentido, logo de início, o poema de abertura, "(intro)", cria uma pausa: "não se trata de deixar a gira/ nem de ser freio de roda/ o sol não dança por acaso/ antes o cálculo do improviso/ a pausa breve" (p. 9). Os parênteses no título e a economia de palavras já emulam essa pausa e a localizam materialmente no objeto livro. O que poderia parecer um amansamento ou paralisia é, na verdade, uma reação à ordem do tempo e das coisas. Calculada, essa pausa é ativa, deslocadora de sentidos, o que indica uma postura tanto em relação ao Brasil quanto à poesia.
Pretovírgula é um livro ritualístico e vigoroso, que se alimenta de uma preocupação do autor com o ritmo. Por um lado, a escolha pelo excesso de consoantes, unida a um léxico forte, gera a sensação de um batidão acelerado. Por outro, poemas com algum nível de repetição e de uniformidade métrica se aproximam da música – que não é, então, apenas referenciada tematicamente nos poemas, mas também estruturante dessa poesia. Como define o autor, em breves textos corridos e metalinguísticos que se intercalam com os poemas no final do livro, o que é ali escrito pode ser chamado de "refrão", "mantra", "ponto", "hino mas sem nação", "improviso", "jazz"... Dessa forma, os limites da poesia se alargam e se misturam com outras diversas formas de expressão populares, por vezes transcendentes.
"Presenças, não farei com o mundo minha paz às vossas custas", diz o martinicano Aimé Césaire na epígrafe do livro, ao mesmo tempo misteriosa e objetiva. A busca pela paz é uma questão turbulenta que evoca presenças também em Pretovírgula, título que nomeia o sujeito lírico da sequência de poemas. No entorno desse sujeito há mortos e vivos, vumbis, trabalhadores, familiares, povos yanomamis, fantasmas e divindades, além de referências artísticas de matrizes diversas, as quais Litrento toma de empréstimo em algumas citações.
Por vezes, o sujeito lírico se mistura com os demais, formando um só 'nós', um eu coletivo que integra um povo ou uma linhagem. É o que lemos, por exemplo, em "vietcongues", poema em que "somos um ônibus lotado de pânico/ nossa garganta enfileirada é quente/ feito a soma da cor dos nossos filhos" (p. 16). Ao afirmar "não sei mais dizer sozinho esse poema", o sujeito se define dentro de um corpo comum marcado pelo acúmulo e pela diferença com seu inimigo – por sua vez, um corpo menos coletivo, agente da mineração, da remoção forçada, "da metalurgia sanguinária", enfim, do horror do pretenso progresso industrial neocolonial racista.
No segundo poema do livro, "sandrinho", o sujeito afirma: "dei um murro nele e tô aqui pra contar história/ tô aqui pra contar história" (p. 10). A obra apresenta um jogo duplo, pois a linguagem mescla à ação uma antilinearidade, gerando um acúmulo de sentidos e quebras de sentido. Histórias são, sim, contadas, mas retorcidas, distorcidas, desviadas. Poder e decidir contá-las pode ser um compromisso com a vida em uma atmosfera carregada de necropolítica.
Já havia dito o poeta Waly Salomão que "a memória é uma ilha de edição", remetendo às montagens e remontagens que conectam o testemunho à criação artística. O poema "sandrinho" tem encaixe nessa ideia: buscando contar uma história de violência ocorrida em tempos passados, o sujeito do poema menciona procedimentos de uma gravação em vídeo – "[zoom óptico x 2]", "[pause]". Entra em questão a relação entre as capturas do real pela imagem e pela palavra. Enquanto isso, as cenas e as múltiplas vozes se misturam entre si, e um verso dos Racionais MC é remixado dentro do poema. "O pesadelo do sistema não tem medo da morte", diz Litrento em itálico, dentro de seu “tecido de citações”, como já definia Barthes. A ilha de edição de Litrento, que também é realizador cinematográfico, se arma.
Metaforizando o espaço de ação do poeta – a página –, a ilha de edição de Pretovírgula monta imagens sobrepostas, que criam aberturas de sentido, em uma aparente desordem lexical. Nessa desordem reside também uma reivindicação implícita: a de usar as palavras radicalmente, forçando a ampliação de nossa capacidade imaginativa como ferramenta de revide. Quem se apresenta para nós não é santo nem vê santidade castiça nos demais. Está disposto a ver e dizer o inverso das coisas, seus vultos e incômodos. A poesia de Litrento pinica. Assim, uma identidade de contornos abstratos vai se formando em torno do sujeito lírico, que aos poucos começa a nomear-se Pretovírgula e a debater o sentido dos vulgos, nomes e assinaturas.
"Sou pretobrás e daí/ Eu rezo cantando reggae", compôs antes Itamar Assumpção, em uma canção sobre a formação de sua identidade como artista sobrevivendo ao bang bang da cidade. Em procedimento semelhante, Litrento cria essa outra identidade, que adiciona sentido à negritude pelo manejo da linguagem. "(...) preto era eu aos quinze/ a vírgula presa nos dentes aparentava se quebrar" (p. 21), narra o sujeito, assumindo o nome "como uma bala destinada" (p. 22), que une passado e futuro. A vírgula pode ser, para Litrento, "galho partido ao meio", "mapa/ desse trajeto empenado", "forma de alicerçar", "uma rachadura". Fortalece, assim, a aposta na rachadura, no corte, na pausa, na encruza.
Litrento escreve que "nação só é coisa de quem morre" (p. 15); ao mesmo tempo, "se nem a morte é ponto final/ me chame pretovírgula/ pretovírgula mais uma vez" (p. 72). Em um país com uma história mortuária como o Brasil, marcar a presença de fantasmas e nomear-se são reivindicações de soberania e de memória dos corpos violentados, rachados pela exploração material e subjetiva. O livro de Lucas Litrento inscreve na poesia contemporânea, por vezes tão afeita à calmaria dos apartamentos, a fúria dos espaços públicos, os palpáveis e os imateriais, e reivindica a palavra como método explosivo.
Helena Zelic para A bobina. Helena é poeta, professora e mestra em Teoria e História Literária (Unicamp). Publicou "A libertação de Laura" (Macondo, 2021), entre outros livros e plaquetes.
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