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Raisa Christina

Diário feito casa e comida



 

Para empezar diremos que el diario es el género de los que no tienen género, de los que no tienen literatura, es la voz de los que en la vida no tienen voz.

Andrés Trapiello

 


 

Casa de alvenaria - volume 1: Osasco (Companhia das Letras, 2021) [1], de Carolina Maria de Jesus, apresenta os diários que a escritora manteve entre os dias trinta de agosto e vinte de dezembro do ano de 1960. Esse período sucede a publicação de Quarto de despejo - diário de uma favelada (1960), o primeiro livro de Carolina, que logo tornou-se best seller e trouxe considerável reconhecimento à autora.


Na leitura de Quarto de despejo, sabe-se que Carolina, mulher negra de quarenta e seis anos à época, então levava a vida como catadora de lixo pelas ruas de São Paulo. Seu dia-a-dia era movido pela urgência de alimentar os três filhos pequenos que moravam com ela num barracão na favela Canindé, às margens do rio Tietê. Ela costumava acordar antes de o sol nascer para encher baldes de água e abastecer o barracão. Percorria horas a fio a megalópole, muitas vezes carregando nas costas a filha mais nova, a fim de recolher papelão para obter, ao fim do dia, alguns trocados.


Com sorte, assim poderia prover uma refeição que ao menos enganasse o estômago dos filhos. Na sua luta implacável pela sobrevivência, ainda que o mundo lhe dissesse o contrário, Carolina encontrava alguma brecha para escrever, ao acordar pela madrugada ou antes de dormir, com o corpo exaurido. Ela sabia que escrevia num movimento reverso à toda situação que lhe estava imposta: catava papelão para alimentar-se e alimentar os filhos. E escrevia para quê?


Após o êxito do primeiro livro no mercado editorial, ela pôde sair da favela e se instalar com a família em Osasco. A partir de então, Carolina deixou de catar papelão e passou a ser reconhecida como escritora, recebendo convites para inúmeros eventos pelo país e dividindo-se entre os cuidados dos filhos já adolescentes, as viagens apressadas e os compromissos diversos que foram surgindo. Paradoxalmente, mal lhe restava tempo para ler e escrever.


A primeira edição de Casa de alvenaria - sob os cuidados de Audálio Dantas, o mesmo jornalista que editou a obra de estreia da autora - indica uma continuidade em relação a Quarto de despejo, não só pela cronologia das entradas, mas também pelo subtítulo, “diário de uma ex-favelada”, que mantém o acento em sua origem pobre. Que estratégias mercadológicas estavam em jogo na escolha desse subtítulo, que parece manter a aposta numa espécie de exotização de Carolina, pelo viés da miséria e do gênero?


Em Casa de alvenaria, numa entrada referente a três de setembro de 1960, Carolina conta sobre a ida com os filhos a São Paulo para encontrar jornalistas e autografar exemplares de Quarto de despejo na livraria. Ao retornar para a casa recém alugada em Osasco, ela se diz cansada. Dos adjetivos que utiliza para falar de si, esse talvez seja o mais recorrente no decorrer dos diários. Constata, no entanto, que seu livro está no topo da lista dos mais vendidos. “Jesus Cristo está auxiliando-me” (JESUS, 2021, p. 35), ela sente. Recorda que Jesus lhe teria feito uma promessa anos atrás. Nesse momento, o diário se abre à narração de uma antiga lembrança:


Em 1930 eu estava em Uberaba Estado de Minas Geraes, era quarta-feira, era treis horas da tarde, eu estava no alto da Abbadia, na casa de uma senhora por nome Sebastiana, estava no quintal, ergui a cabêça e notei que o céu havia transformado, com as nuvens coloridas igual as cores do arco-íris, fiquei extasiada fitando aquela transformação celeste impressionou-me profundamente, pareçe que o ceu preparou-se para recepcionar alguém. Deve ser uma pessôa muito importante, para receber aquela ornamentação celestial.


Eu olhava o céu em todas direçôes porque ele estava belíssimo, pensei se eu pudesse ressidir no céu? Fiquei imovel olhando uma nuvem mover-se, e transformou-se num homem, e este homem era Jesus Cristo, tive a impressão que o céu desçeu, e eu podia toca-lo com a mão, e Jesus Cristo estava na minha frente, olhando-me no rôsto.


Eu olhei as suas mãos para ver se encontrava o sinal das chagas. Não vi, ele disse-me:

– Eu sou o Divino Espirito Santo. Pede-me o queres?...

Pedi:

– Eu quero sofrer muito mas, quando eu morrer quero que salve a minha alma.

Ele sorriu e dessapareçeu… e o céu normalizou-se.


Pensei: vou contar para a Sebastiana que eu vi o Jesus Cristo, mas, eu li a vida de Santa Therezinha, ela contou que viu Nossa Senhora e ninguem acreditou. Não relatei a ninguem. Pensei: será que eu dêvo ir para um convento rezar, ser eremita, mas eu sou alegre, gosto de cantar, gosto do homem. Não vou enclausurar-me. Vou vivendo assim mesmo, sem prejudicar o proximo.


E assim fui vivendo. Eu não olvidei o sorriso méigo do Divino Espirito Santo, quando acontecia algo funesto eu recordava o olhar nobre do Divino Espirito Santo e acalmava, porque sei que ele está velando por mim. Foi o olhar mais terno que já vi ate hoje. (JESUS, 2021, p.35 e 36)


A narração da cena de caráter místico rememorada por Carolina, composta pela descrição em detalhes de um céu que se metamorfoseia diante de si e pelo breve diálogo com a figura divina, contraria de certo modo o tom do texto, em geral ditado pelo relato breve de alguns fatos do dia. A maioria das entradas apresenta uma síntese das principais atividades que Carolina realizava ao longo da jornada diária, em geral com menção a horários, trajetos, endereços, nomes de pessoas e quantias de dinheiro. É comum também a autora falar de suas emoções, sensações e impressões de mundo, especialmente quando reflete sobre as desigualdades sociais, o “custo de vida” [2] da classe trabalhadora e o cenário político do país.


As análises e as observações que a escritora faz diante de situações vividas – seja um percurso corriqueiro na condução cheia de operários ou um jantar eventual com “comida granfina” (JESUS, 2021, p. 43) ao lado de “damas noturnas” (JESUS, 2021, p. 120) da sociedade carioca – revelam uma percepção sensível e engenhosa, sempre atenta às injustiças decorrentes de privilégios de uns e prejuízos de outros.


No longo trecho transcrito acima, o acontecimento é inicialmente situado em termos de data, local e horário precisos. Carolina conta que se encontrava no quintal da casa da senhora Sebastiana (de quem era funcionária, talvez?), quando se depara com o céu, que se transforma à sua frente. Trata-se de uma experiência mística, pois ela encontrava-se em êxtase, impressionada com toda aquela “ornamentação celestial” multicolorida. A pergunta “se eu pudesse ressidir no céu?”, nesse caso, não soa como mera abstração poética, pois a moradia, assim como a fome/alimentação, emerge como um dos temas pilares na obra da autora, reiterado diversas vezes pela tensão entre o “quarto de despejo” (também denominado favela, chiqueiro, lixo) e a “sala de visita” (onde estariam as “habitações condignas”, em construções de tijolos).


Mais adiante, na Câmara Municipal de Porto Alegre, em conversa pública com Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, ela explica as dificuldades do povo favelado, cuja origem remonta ao campo. Segundo Carolina, em busca de melhores condições de vida e após sofrer exploração por parte dos donos de fazenda, a gente do campo parte para a cidade grande à procura de emprego. No entanto, devido à baixa escolarização, a mão-de-obra desses camponeses é desvalorizada: “(...) o salário não cobre as despêsas. Não há possibilidade de pagar uma residência deçente.” (JESUS, 2021, p. 162) Assim formam-se as favelas, entre as sobras e os dejetos da cidade.

Ao contemplar, da janela do avião, “as paisagens majestosas do nosso Brasil” (JESUS, 2021, p. 149), Carolina percebe “a quantidade de terras incultivadas” (JESUS, 2021, p. 149) e reflete:


(...) com tantas terras abandonadas e o povo passando fome. Estas terras pertencem aos capitalistas. Ninguem pode chegar e plantar algo, sem o seu consentimento. Eles tem dinheiro para pagar a Dona Lêi e suas confusões.” (JESUS, 2021, p. 149)


Um possível desdobramento de sua reflexão seria a reforma agrária, o que a autora não chega a mencionar nesses termos. Nos trechos aqui expostos, é evidente que, no coração de seus pensamentos, encontravam-se sempre a questão da fome e a questão da moradia.


Nos diários de Carolina, são muito comuns as menções àquilo que se come. Quarto de despejo pode ser descrita como uma série de odisséias diárias, em que a narradora aventura-se pela selva de pedras em busca de preencher os pratos da sua família. Em Casa de alvenaria, nota-se a atenção da autora acerca dos modos de comer: 


O senhor Paulo Breda Filho ia citando que a maior região vinícula de São Paulo era São Roque. Ele comia o frango desinteressado. E eu comia com gula com avidêz. Ja faz 18 anos que não como frango. As mulheres favela catavam frangos mortos no matadouro avicola da rua Luiz Pacheco. Mas eu tinha recêio. O Dr. Paulo Breda dêixava a pele do frango. Ele ofereçeu-me vinho. Recusei porque não quero amisade com bebidas alcoolicas. Eu olhava ele comer e dizia-lhe que devia aprovêitar a carne do frango por causa do prêço. (JESUS, 2021, p. 54)


O contraste da cena é desconcertante. Enquanto Carolina valoriza cada centímetro do frango, Paulo Breda trata o pedaço de carne com indiferença. No dia 21 de outubro, na companhia de Roberto, um amigo desempregado que vez ou outra lhe pede dinheiro emprestado, ela lhe oferece uma merenda: “(...) preparei cafe para ele. Comeu um pedacinho de bolo com fidalguia. Eu disse-lhe que gosto de ver o Audalio comér.” (JESUS, 2021, p. 73) Mais adiante, após um jantar no Rio de Janeiro, revolta-se: “Fiquei horrorisada vendo como é que a classe rica dissipa. Elas compram carne comem um pedacinho e jogam o resto fora.” (JESUS, 2021, p. 120) A partir das observações da autora, entende-se que os modos de comer indicam a classe à qual cada um pertence, trazendo pistas de origens e valores.


É curioso o comentário de Carolina para seu amigo Roberto: “gosto de ver o Audalio comér.” Essa passagem configura-se, na poética da autora, como uma das mais íntimas, na qual é confessado, de maneira velada e muito pungente, o seu amor – platônico, como ela fazia questão de frisar – ao jornalista que lhe auxiliou nas primeiras publicações. Afinal de contas, que sentimento é esse que leva um a gostar de olhar o outro comer?

           

Retomando a entrada da rememoração, a narrativa traz um homem formado pelas nuvens, cuja face se volta para Carolina: “Jesus Cristo estava na minha frente, olhando-me no rôsto.” Logo ele lhe dirige a voz e se apresenta. Considerando a trajetória de Carolina como mulher negra e catadora de lixo pelas ruas da maior metrópole brasileira - ou seja, uma figura invisibilizada, um corpo destituído de valor dentro da lógica consumista neoliberal –, a troca de olhares entre ela e a figura divina parece significativa. Há algum tempo, em meio ao frenesi urbano, quem de fato olharia Carolina nos olhos e dirigir-lhe-ia a palavra?


Mais de setenta anos depois de Carolina ter escrito aquela entrada, é difícil não pensar o quanto a presença escapa às relações humanas na contemporaneidade. Essas carecem de atenção, afeto, “sorrisos meigos” e “olhares ternos”.  

Certa vez, ela menciona que não se sente tranquila com a ideia de seguir escrevendo um diário, pois entende que sua escrita se faz “contra a burguesia” (JESUS, 2021, p. 144), o que lhe poderia ser perigoso. Esse posicionamento se dá na medida em que seu diário veicula outras vozes, daqueles outros menos favorecidos como ela, a quem Carolina faz questão de escutar e transmitir o apelo a seus leitores. É o que acontece, por exemplo, na viagem ao Rio Grande do Sul. Na entrada referente a trinta de novembro de 1960, ela conta sobre o encontro com o então prefeito de Porto Alegre e a participação na feira do livro. Em dado momento, enquanto a escritora autografa seus livros durante o evento na praça, um homem negro se aproxima, dizendo:


– Sabe Carolina; peço-te para incluir no teu Diário que ha preconcêito aqui no Sul.

Os brancos que estavam presentes entreolhavam-se achando incomoda as quêixas do pretinho. Parei para ouvi-lo. Crêio que devo considerar os meus irmãos de na cor.

– Está bem, incluirei tua quêixa no meu Diário. (p. 152)


Tal inclusão não é a toa, pois ela afirma, mais adiante, suas intenções: “Vou transformar o meu Diario em fala o povo do Brasil!” (p. 206) Acredita que deve: “(...) escrever a realidade. A verdade. Revelar os fatos que corrompem um pais.” (p. 142) Quanto à ideia de deixar o projeto do diário, o qual Carolina havia questionado, para quem sabe dedicar-se a outros gêneros, ela logo resigna-se: “Mas o Audálio diz que devo escrever Diario, sêja fêita a vontade do Audálio” (p. 144).


De toda forma – e apesar da humildade e da enorme confiança em Audálio –, Carolina transgride o formato convencional do gênero diarístico, ao inserir seus poemas em meio às entradas, ao optar por diálogos diretos, um procedimento mais caro à ficção, e ao somar à sua voz tantas outras vozes daqueles que ela considerava importantes, desde políticos, jornalistas a amigos e amigas simples com os quais cruzava pelo caminho.


Mesmo que as circunstâncias parecessem não lhe destinar à literatura, Carolina soube afirmar-se junto à escrita e perceber na linguagem um recurso inesgotável, uma matéria de criação, um trabalho à sua altura. A verdade é que o diário, gênero por muitos considerado menos literário, acaba por transformar-se em casa e comida nas mãos de Carolina. É com o exercício da escrita palpitante, empurrada aos solavancos pela gincana imparável do cotidiano, que Carolina pode engajar-se em si e também no mundo. O diário passa a existir como morada - a verdadeira casa de alvenaria - e como alimento necessário para seguir adiante, ultrapassando as cercas que qualquer adjetivo redutor tentou lhe estabelecer.   

 


 

 

 Raisa Christina para outras paradas


[1] Obra originalmente publicada em 1961, em volume único, com edição de Audálio Dantas pela Editora Paulo de Azevedo.

[2] A expressão, bastante frequente nos diários de Carolina, traduz uma de suas maiores preocupações – a dignidade da vida do povo pobre – e prova a lucidez da autora ao perceber as dinâmicas sociais e políticas que moviam o contexto brasileiro: “Eu vim ao mundo para escrever contra o custo de vida que oprime o nosso povo.” (JESUS, 2021, p. 73)

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