Como botar um brinquedo na rua?
- Claudio Medeiros
- 18 de mar.
- 10 min de leitura

Os adultos da cidade brincavam de fazer as coisas e outros adultos pagavam para vê-los: era o que chamavam de teatro... O teatro é fazer as coisas de brincadeira, enquanto a brincadeira na nossa comunidade é a brincadeira de fazer as coisas de fato. Quando a gente brinca de fazer o Reisado, a gente faz o Reisado.
(Antônio Bispo dos Santos)
I. Um teatro de caos e movimento [1]
Em grande número das nossas danças dramáticas e autos populares há a ocorrência do elemento cômico e mascarado. Com exceção dos papangus e do bate-bola, bandos de mascarados estão geralmente na companhia de personagem eclesiásticos, figurações de sacramentos, monólogos de sermão, levantamento de mastros, cortejos solenes com santos de devoção. No Bumba-meu-boi, nos Maracatus, nas Folias de Reis, nos Congos, os mascarados surgem em um espaço de transgressão consentida. Não vivem na clandestinidade do culto, praticam-na de dentro. A criatura inaudita elabora-se pela ocasião da festa, no contexto ecológico onde se inscreve territorialmente, percorrendo territórios e sendo por eles percorrida. Meio sagrada e profana, como o que só faz sentido na ambiguidade. É incalculável o número de crianças que se aglomeram quando um palhaço de Folia se detém à porta de alguma casa, ou na saída de uma turma de bate-bola. Ora dividindo opiniões, ora dividem a mesma faixa de frequência em que passa a ser possível, ao soldado arrependido de Herodes encontrar-se com um palhaço pagador de promessa nas Folias; ao Cazumbá, do Boi maranhense do sotaque da baixada habitar uma dimensão expandida entre o divino e o humano, um “reino do entre” [2]. Nunca me saiu da cabeça que os sonhos agressivos das turmas de bate-bola, nos subúrbios do Rio, têm parte com o Judas malhado do Sábado de Aleluia.
Embora o mascarado exerça funções precisas, como a de um batedor que abre caminhos para uma Embaixada, uma Irmandade, uma Confraria, e conduza manobras ordenadas pelo mestre; embora vista eventualmente a capa do feiticeiro cujas palavras carregam virtudes encantatórias, ou versador em cantorias e jogos de pergunta-resposta, o interesse pelo cômico também é um esquema de compensação desenvolvido para suportar imagens simbolicamente violentas. O complexo de morte e ressurreição dos santos, de luta do bem e do mal, a descrição de uma situação de repressão violenta seguida do êxodo, da redenção, da reversão simbólica... esses motivos bíblicos são geralmente expostos preenchendo funções políticas e pedagógicas de catequese. Funções que de fora a fora estão alegoricamente presentes em nossas festas. Mas “a vontade de caçoar”, como entende Mário de Andrade, “de se libertar de valores dominantes por meio do riso, produziu a inflação de episódios como esses, em que o povo atinge inocentemente o próprio sacrilégio, numa serena ausência de pecado” [3]. Bandos de mascarados coexistem ao lado de outras personagens portadores da ordem e da formalidade, na figura de estandartes, mestres e mestras, séquitos de reis e rainhas. Nada os impede, contudo, de romperem o protocolo de ladear o cortejo, desempenhando bailados de forma escrachadamente zombeteira. Truques com o corpo e transes evocatórios, eles fazem o uso combinado de potências não simbólicas da voz com a sedução da ginga. Injetam maliciosamente um teatro de caos e movimento na mecânica anual do melodrama evangélico.
“No interior do Nordeste, assim como no Norte do Brasil, a festa mais popular é o São João e não o Carnaval, ao contrário do Sul do País, pois este acontece durante o plantio. No caso do Norte, a partir do Maranhão, os Bois, aparecem no período junino, até porque depois da safra (Junho) e antes do plantio (Dezembro) é o período mais propício ao lazer. Com o São João só se rivaliza a festa natalina, quando aparecem os Reisados, Bois de Reis e Cavalos-Marinhos, todos eles reisados também, e os trabalhos agrícolas estão apenas no início.” [4] O teatro brincante – embalado pelo cortejo que o tambor africanizou – é uma sofisticada investigação sobre máscaras. E o que seria o mascaramento senão um trabalho sobre si para usos menos pastorais do corpo? O uso brincante do corpo destitui a ideia de que a ginga tem nos pés seu foco: a ginga é a variação infinita das máscaras. Calçar a máscara faz o corpo virar naquilo que a ortopedia moral mais abomina, a excomunhão das funções sociais do corpo, a dissimulação de um sentido legível para o movimento. Em vadiação pelas ruas, os mascarados alternam movimentos de ombro, quadril e ventre desobedecendo a unidade do torso. Se verificamos o movimento do trajeto do torso no teatro que se convencionou a chamar de ocidental, o torso move-se como uma unidade, como um bloco – não como se a parte superior do corpo se movesse separadamente da inferior. É uma questão de observarmos se a unidade do torso é ou não é quebrada, movendo-se o quadril para um lado, os ombros para o outro etc [5].
II. Um corpo constelado por outros minicorpos
A gente se comporta de um jeito diferente quando estamos vestindo roupas diferentes. Não é verdade que nos sentimos diferentes se estamos dentro de um roupão, ou de um terno, ou se trocamos um paletó puído e enxovalhado por um novinho em folha? Calçar uma máscara, contudo, vestir o corpo de outra pessoa, não é como trocar de roupa, é ver outro mundo, dentro de outro olhar. Em algum lugar atrás desses olhos, atrás desses gestos, ou diante deles, outro mundo transparece através da membrana de papel machê que esculpe um rosto. E por um instante é nele que vivo. Talvez vestir a máscara se reduza a esse espetáculo de sortilégios. Mas altere-se a voz, que surja o insólito na partição do diálogo, ou que meu reflexo ao estímulo responda melhor que a ideia previamente calculada – e súbita é a evidência de que também acolá, minuto por minuto, a vida é vivida. Ainda que nem tudo seja improvisação nesse “exercício dirigido a explorar incessantemente o patrimônio cujo peso o ator assume no ato de colocar a máscara.” [6] É como uma folha com pauta: o corpo desenha movimentos ao mesmo tempo em que performa a história que cada máscara traz consigo. Se por um lado ela faz boa parte do trabalho, explorar o repertório cênico da máscara depende dos recursos técnicos, da prática de linguagens cênicas. E quando desvestimos a máscara, o que se sente? Desorientação é a palavra que resume, “parece que a máscara me esteja arrancando o rosto” [7].
É muito triste se o meu corpo não é capaz de responder ao estímulo de se soltar, de sobrevoar a anatomia cotidiana. A teatralização de um corpo menos metrificado é o quê, senão a oportunidade de poder ser algo essencialmente diante de um não-estruturado? A máscara projeta-se por cima de uma multiplicidade de incertezas, e nada nos garante que ela não possa abrigar criaturas de outro plano, um bicho, uma legião, uma gente, um vulto ou um vivente. A única coisa que com certeza não há, debaixo da máscara, é uma identidade civil. “O xamã que é porta-voz do deus, o dançarino mascarado que afasta os demônios, o ator que traz a vida à obra do poeta – todos obedecem ao mesmo comando, que é a conjuração de outra realidade, mais verdadeira.” [8] Dentro da máscara outro corpo vem alojar-se e vive a circunstância imaginária. Se é a máscara o meu cavalo ou se serei eu o seu suporte, verdade é que calçá-la é viver outra realidade em uma circunstância imaginária. E se eu puder pela imaginação estar em outra história, e se eu pudesse ser outra criatura? Uma realidade imaginária e nem por isso menos autêntica – até particularmente mais verdadeira que a primeira – sobretudo se concordarmos que a liberdade não nos serve como um conceito abstrato. Seria impossível, há pouco mais de cem anos, tratar da liberdade no desterro de um corpo exaurido pela privação de mobilidade ou pela combustão do trabalho. Não há liberdade que não seja sensível e que não excite no corpo suas curvas, seus novos nexos e suas novas moléculas. Desprender-se de um corpo socialmente codificado, não no sentido de fragmentá-lo, mas no sentido de multiplicar articulações, zonas de flexão e inteligência. A máscara ensina a fazer um corpo constelado por outros minicorpos, composto por segmentos que reelaboram uma inteligência desbloqueada pelo incremento de mobilidade. Quanto mais articulações, quanto mais zonas de flexão, mais força passa por ali, mais movimento, mais luz e sombra revelam-se à malícia do pensamento. Como teria sido sacudir-se da máscara mortificada pelo banzo, do corpo metrificado pelo monoteísmo?

III. Brincar de fazer as coisas de fato
Pode haver máscaras sem mascaramento, não o contrário. Vale a pena destacar essa diferença. Máscara é a escultura. Ela pode ser feita materialmente de couro, de gesso, de madeira, papel, tecido. Ela serve de anteparo, de disfarce. A máscara é um objeto que, digamos, serve de patuá quando preserva o brincante do perigo de ser estabilizado pelo olhar do outro, de ter a alma ali capturada, independentemente de se tê-la oferecido à visão. O mascaramento, por sua vez, é qualquer acontecimento que é gatilho para um corpo resultante da combinatória: o canto, a dança, figurinos, adereços, maquiagem – e em geral as máscaras. Mesmo o texto de um dramaturgo é mascaramento: vestir as palavras de outra pessoa, de outra época, de outra geografia, podendo com elas ritualizar uma cópula, um transe – que irão inseminar, que irão gerar no brincante um corpo estranho, fantasmagórico, atípico. Talvez seja nesse sentido que Mário reelabore conceitualmente as danças dramática. Porque, apesar da dança ser um elemento comum no movimento de brincantes, ela nunca teve a ver com aquilo que os folcloristas chamavam categoricamente de “simples bailado”[9], de “folguedos caracterizados pela coreografia”[10]. A dança é teatro, é mascaramento, e no nosso caso ela condensa um elemento definidor do teatro de máscaras. Brinquedos são formas de botar na rua um teatro de máscaras.
“Me refiro à parte dos bailados, consistindo num cortejo que perambula pelas ruas, cantando e dançando, em busca do local onde vai dançar a parte propriamente dramática do brinquedo. Esse cortejo, quer pela sua organização quer pelas danças e cantorias que são exclusivas dele, já constitui um elemento especificamente espetacular. Já é teatro. Fazem parte dele as cantigas religiosas, os dobrados de marcha, as despedidas, cantos de trabalho alusivos e danças puras: por vezes atingindo um desenvolvimento tão desmedido que podem dar ao cortejo uma importância prática bem maior que a da representação propriamente dramática.” [11]
Isto é, uma dança dramática não é uma representação. Nos usos do pensamento rítmico, neste teatro brincante da diáspora, a forma enfeitiçada em que se emprega a linguagem faz com o que o sentido não resulte de um acordo tácito entre palco e audiência.
Isso fica claro se nos for possível pensar em outro conceito de teatro, cujo fio condutor não é a palavra, não é o drama psicológico ocidental que depende do enredo que estrutura um drama. “A dimensão corpórea mobilizada por essa narrativa jamais se repete, pois não nasce de partitura fixa, não se expõe como páginas sequenciais decoradas ou materiais previamente editados para uma ocasião específica. Neste sentido, é performance ao mesmo tempo que nada é improvisado, pois tudo é acontecimento encadeado pelo fluxo de cada sequência indicada pelo quarteto percutir/cantar/dançar/contar.” [12] As potências não simbólicas evocadas pelo corpo ritualizado na ginga encenam uma das formas como o sentido se esconde de si, ao mesmo tempo em que produz em excedente ao nível da opacidade. Uma ideia de opacidade que envolve formas cênicas diferentes daquelas feitas para a educação, para a catequese, ou para a crítica de arte, para a trama do legível e do ilegível [13]. Sabemos a ordem que virá o séquito do brinquedo, mas não sabemos quem pedirá passagem esse dia, quem dará lugar, quantos virão, nem quanto tempo durará a sequência do bailado, nem se haverá insubordinados na hora em que o mestre cantar para subir.
IV. Cruzada e encruza
Até bem pouco tempo a magia do bate-bola era esse flerte entre o fascínio e o medo, o espaço em que o não e o sim andavam juntos, em que o medo e a atração coexistiam. De uns 30 anos para cá alguma coisa mudou. Marcos Nascimento escreve – em Bate-bolas: a fantasia como vingança, a máscara como expurgo [14] – que, quando deixamos de ser crianças e tudo ficou muito mortífero e brutal nos subúrbios do Rio, então restou sozinho o medo e com o medo o declínio do bate-bola. Se a coisa tende para um lado, o ritual se desmancha, o brinquedo perde o sentido. O jogo de angola não é diferente – se for apenas luta deixa de ser jogo, sendo só coreografia também deixa de ser jogo. Também é assim o teatro brincante. Ele é uma arte relacional, nada na natureza do brinquedo termina nele. Como qualquer jogo, interessa a primazia do movimento, e o movimento escorre, as coisas circulam ou são circuladas pelo movimento. Em praças, cortejos e ruas, o movimento nunca se fecha, ele não para em fulano ou termina em ciclano. O jogo pede que a relação entre luz e sombra não deixe de girar e o brinquedo circule entre zonas iluminadas e linhas opacas. A instabilidade do movimento se perde se a força dramática é engolida pela lei da representação – por vezes pela museologia. É quando a máscara cede ao risco de transformar-se em paródia, em arquétipo codificado. Então a representação despeja no público as zonas iluminadas e privamos a máscara de fazer algo muito fundamental que é “virar”, “dar passagem”, “dar lugar ao que vem de fora”, “receber”. Por um lado, não há teatro brincante quando nada é visível nos gestos, quando nada há de concretude e de troca no jogo do improviso. Por outro lado, quando tudo passa a ser compreensível, a ponto de fazer com o que o público se acomode em zonas iluminadas, então o brinquedo é saturado pelo texto. Ele deixa de ser teatro e vira narrativa, crítica, cruzada, catequese.

Claudio Medeiros para o Blog da escola
A foto usada na arte de abertura do post é "Bate-bola - Turma QSL - Irajá, 2024", de autoria de Pedro Siqueira.
[1] Imprescindível destacar minha gratidão pelo convívio que pude ter com três pessoas cujas pesquisas são as vozes que tento aqui convidar para uma conversa. Meus sinceros agradecimentos a Evani Lima (UFBA), Eduardo Vaccari (UERJ-Maschere Ateliê) e Sebaba Rodrigues (Museu Vivo da Barra do Jucu).
[2] BARROSO, O. A máscara: do teatro ritual ao teatro brincante. Fortaleza: Armazém da cultura, 2015, p. 224.
[3] ANDRADE, MÁRIO DE. Danças dramáticas no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1982, p. 26.
[4] BARROSO, 2015, p. 34.
[5] Cf. LIGIÉRO, Z. “Batucar-cantar-dançar: desenhos das performances africanas no Brasil”. Aletria: Revistas de estudos da Literatura. V.21 n.1, 2011, p. 134.
[6] CONTIN, C. “Madeira, couro, cores e carne: histórias entre Commedia dell’Arte e máscaras do mundo”. In: BELTRAME, N (Org.) Teatro de máscaras. Florianópolis: UDESC, 2010, p. 76.
[7] FO, Dario. Manual mínimo do ator. Trad. Lucas Baldovino. São Paulo: SENAC, 1999, p.
[8] BERTHOLD, M. História Mundial do Teatro. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Perspectiva, 2001, p.1.
[9] ALMEIDA, R. História da Música Brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp. Editores, 1942, p.278.
[10] CASCUDO, C. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 10.
[11] ANDRADE, 1982, p. 31
[12] LIGIÉRO, Z. Teatro das origens: estudo das performances afro-ameríndias. Rio de Janeiro: Garamond, 2019, p. 40.
[13] Cf. Santos, T. C., & Amaral, H. P. (2022). “Poética natural, poética forçada” de Édouard Glissant. Revista Criação & Crítica, 32.
[14] Cf. NASCIMENTO, M. “Bate-bolas: a fantasia como vingança, a máscara como expurgo”. Blog da Escola da Palavra. 1 de abril de 2024. (https://www.escoladapalavra.art.br/post/bate-bolas-a-fantasia-como-vingan%C3%A7a-a-m%C3%A1scara-como-expurgo)
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