Começo esta resenha pelo método da associação livre. Dois textos, dois trechos (uma frase, um verso) vêm à mente quando penso no recente Coisa de Mamíferos (Editora 34, 2024, 96 págs.), de João Mostazo. O primeiro deles é “Quando deixamos de entender o mundo”. A frase que serve como título à edição brasileira do livro do chileno Benjamin Labatut – por sua vez, uma referência às edições de língua inglesa do livro, que preferem o nome de uma das suas partes, When we cease to understand the world. A frase que desloca a metáfora cromática do título original Un verdor terrible e coloca em seu lugar o sentido do descontrole e do fracasso da razão poderia servir como epígrafe e como brevíssimo comentário ao livro de poemas de Mostazo.
Atravessados por termos técnicos e científicos, marcados por uma perspectiva entrópica e irônica sobre o mundo e assinalados pela presença inquietante e interrogativa da melancolia, os poemas de João Mostazo parecem fazer eco à sentença pessimista, e de longo alcance, formulada por Labatut. Por ela sabemos que alguma coisa se rompeu, que em algum momento instaurou-se uma falha. Os poemas de Mostazo parecem surgir a partir da consciência dessa ruptura. Entre o sujeito e o mundo – que é o mesmo que dizer, entre o sujeito e a linguagem, há um impasse. A ilusão do domínio sobre as coisas e da transparência da linguagem espatifou-se. Labatut narra, a partir da vida e das ideias de matemáticos e físicos célebres, os acontecimentos que levaram a esse ponto de não-retorno. Mostazo, com as armas da poesia (neste caso, a simetria e o nonsense, bases para a construção de um lirismo áspero), procura iluminar alguns instantes “na história triste e definitiva do caos”.
O segundo trecho que me ocorre é o verso de Sebastião Uchoa Leite, “Tiranossauro, penso em ti”, parte de um poema com esse título de 1989, recolhido depois em A uma incógnita, do ano seguinte. Nele conjugam-se várias questões que dizem respeito ao livro de João Mostazo. A primeira delas tem a ver com a amplitude temporal. O poema de Uchoa Leite parte do presente para voltar milhões de anos atrás e observar, nessa perspectiva larguíssima, a passagem do tempo e a transformação de todas as coisas. A escolha de um animal pré-histórico, irresistível predador ele mesmo, afinal também extinto, igualmente se repete, com diferenças, em Mostazo e dá a dimensão irônica da reflexão proposta: a ampliação vertiginosa do tempo leva à renovação da tópica poética convencional ao mesmo tempo que a estranha e ri dela.
O verso de Sebastião Uchoa Leite, uma resposta e uma tradução enviesada do verso inicial do poema “O cisne”, de Charles Baudelaire (“Andromaque, je pense à vous!”), instala a melancolia no centro de tudo. O poeta de Pernambuco remete a Walter Benjamin para pensar a história de predadores e de presas como mais um capítulo da história geral dos vencidos. Segundo o que se apresenta, já não há mais vencedores. Exceção feita, talvez, à morte e ao próprio tempo.
O poeta francês, por sua vez, reflete sobre as transformações aceleradas da cidade de Paris da sua época, recorrendo para isso a Andrômaca, personagem mítica que está ao lado dos derrotados da guerra de Troia. Viúva de Heitor, violada, escravizada pelos invasores, Andrômaca é a figura convencional a partir da qual o poeta se põe a pensar sobre a Paris que desaparece rapidamente. O tiranossauro, por seu turno, é a senha para expandir a reflexão sobre o presente brutal (os anos 1980 no Brasil) em que vivia Uchoa Leite. A violência da devoração se deixa ler, como tudo o mais, em chave alegórica, conforme anuncia o próprio poema, remetendo a outras épocas e à vida humana.
O tiranossauro desaparecido é também o cisne baudelairiano, só que sem a brancura e a delicadeza do animal que é uma das epítomes da poesia elevada e sublime do passado. O réptil antediluviano é, na sua força monstruosa, signo de uma poesia dura, já mais próxima das concatenações e da respiração da prosa do que de qualquer canto. É a forma fundamental da poesia de Sebastião Uchoa Leite, e será também a forma, apesar do recurso às rimas, às aliterações em série e aos paralelismos sonoros e sintáticos que os caracterizam, dos poemas de Coisa de mamíferos.
O livro de João Mostazo inscreve a melancolia no núcleo de suas preocupações. Mas, como no poema de Sebastião Uchoa Leite, não se trata de uma meditação (convencional) sobre ruínas milenares ou sobre amores malsucedidos. Os poemas instalam-se no coração da perda, e ela refrata-se e aparece de vários modos: cinismo, ironia, contemplação, revolta. O mundo perdido alarga seus horizontes muito para além dos limites da vida humana individual, mesmo para além da História em alguns momentos. Fósseis, hominídeos, civilizações extintas povoam os versos de Mostazo, que vai criando conexões perturbadoras entre esses tempos distantes e o presente da escrita: “Pensa no mesopotâmio na borda das trevas.// Pensa nisso e pensa em si mesmo, e pensa de quem/de que planeta de que século cinquenta/é você o mesopotâmio”. O eu-fóssil: perda e resistência numa só imagem. O que se dispersa é a matéria desses textos, o que fica é o móbile da sua escrita.
Os efeitos dessa ampliação do olhar construída a partir da expansão da perspectiva temporal são notáveis. A dessublimação, em primeiro lugar: as palavras, as ideias, os afetos: tudo é material e está ao rés do chão: “sólido, sem utopia.” A mirada extensa e trans-histórica (às vezes transumana) descentra o presente, desnuda aquilo que, envolto no fluxo dos acontecimentos cotidianos, é ilusoriamente inteiro, importante, imutável. Aquilo que é ideologia, enfim. A condição humana, sem metafísica, volta (ou desce) ao nível do reino animal: os fatos fundamentais da existência comum são “coisa de mamíferos”. Ou ainda é o “australopiteco” com quem o poeta se depara, num “domingo absoluto”, “absolutamente domingo”, como com uma espécie de duplo de si. A própria poesia deve ser entendida, conforme o poema “Uma vez e outra”, como rasura, marca na pedra, risco que assinala, antes de tudo como signo mudo, a presença do homem no país dos vivos.
Mas o tempo desassimilado da melancolia, tempo da dúvida e da despossessão, revela-se ambíguo. Dúplice. O poeta vai figurá-lo ao mesmo tempo como uma bússola sem estrela, a apontar para lugar nenhum, e como um monumento fora de lugar. O objeto e a imagem são curiosos: um instrumento geográfico sem referência; três bustos de Lênin – esculturas de metal anacrônicas e destronadas, mas que mantém-se, ainda assim, em resistência contra o real: “o busto de Lênin olha o norte/do extremo sul do planeta/na escuridão branca da Antártida”. Em um caso como no outro, bússola e busto tornaram-se, a princípio, inúteis. São símiles da desordem e do esquecimento.
Ambos estão fora de lugar, não mais são capazes de orientar. Entretanto, enquanto a bússola reafirma o lugar que tem, nesses poemas, a desolação, os bustos de Lênin recordam a revolta, expõem a força política da melancolia que também constitui Coisa de mamíferos. Benjamin lembra que o melancólico é aquele que espera o instante da ação – que está suspenso. Os restos deslocados da iconografia revolucionária soviética são hoje souvenires inofensivos ou simplesmente lixo, resíduo descartado de qualquer modo. Mas, o poema afirma, é como se o metal aguardasse em silêncio o momento certo – transformando-se em energia na hora mais necessária: “Um terceiro busto de Lênin foi derretido/e virou ferro na embreagem/de um veículo que cruza o deserto”.
Em “A forma definitiva das coisas”, título em si mesmo altissonante, portanto irônico, conforme a lógica rigorosa que preside esse livro, o poeta se pergunta se ele mesmo teria atingido esse ponto máximo de cristalização. A resposta inicial que encontra, depois de divagar por outros objetos e pelo próprio mundo (“o mundo, por exemplo./O mundo é um caso à parte.”), é desesperançosa, mesmo cínica. Depois de assistir à demolição de uma casa vizinha, constata: “Definitiva é a britadeira”. Nesse ponto, o lirismo contido e difícil desse livro se revela como uma dobra, um desvio que quer, apesar do desencanto, reconhecer a dor alheia, fazer justiça à memória das coisas perdidas. O mundo se esvazia e o poeta não quer apenas registrar, com distância, o despovoamento. Aquilo que se quebra, quebra também dentro dele; há um gesto de solidariedade, apesar de tudo:
[...] Mas outro dia
uma velha apareceu no portão.
Falou que morou naquela casa.
Que cresceu naquela casa.
Eu argumentei: minha senhora
mas a britadeira, mas Hamlet, mas a britadeira,
mas a britadeira é definitiva.
Não pra ela. Pra ela é a casa, e a britadeira
está só de passagem
na história do caos,
[...]
Minha senhora, eu tenho também
uma casa demolida
dentro de mim.
Definitiva, assim.
Essa espécie de partilha do vazio vai configurar-se também, e com mais intensidade, naquele que é dos poemas mais bonitos e bem elaborados de todo o livro, “Consequência”. Seu arranjo formal é simples e direto. Das seis estrofes que o compõem, quatro se iniciam, num recurso preciso à anáfora, do mesmo modo: “Não tenho em mim”, negativa radical, no âmbito do texto, da origem e da herança. O poeta afirma a descontinuidade e a impossibilidade do saber: “Não tenho em mim o horror/daquela noite, às nove e meia/do Natal de 1884/em Periana, Málaga, Espanha.” Ao narrar indiretamente, por meio das negativas, o terremoto que destruiu a vila de seus antepassados, Mostazo assimila pela ficção, como só seria possível fazer, a experiência da destruição total.
Com esse gesto, no entanto, ele recusa a imaginação projetiva, aquela que, por contaminação afetiva ou outro sentido de pertencimento, permite trazer para si aquilo que outros viveram, num movimento de assimilação subjetiva. O poema fixa-se num impasse e tenta se equilibrar entre o dentro e o fora, entre a descrição distanciada e a internalização do olhar.
O que o leitor descobre ao fim do poema, a continuidade genealógica e familiar do poeta com um dos sobreviventes da catástrofe, vem reforçar, por contraste, o efeito poderoso das negativas que costuram o texto: “Não tenho em mim a torre da igreja/[...] nem os olhos, que em mim não viram”; “nem ouço em mim os gritos/anônimos que vinham dos escombros/como se as pedras gritassem”. Apesar da descontinuidade, é pelo poeta que esse evento ecoa e repercute, salvo do esquecimento. A virada final do poema, quando a repetição das negativas se desfaz e o sentido se inverte, dá outra dimensão à questão da origem e da ancestralidade hoje tão recorrentes na poesia brasileira do presente:
Em mim só tenho o nome
de um Manoel, coroinha da igreja,
sapateiro por vocação,
que viu do alto da torre
sua casa desabar, e viu
os parentes que eu também não tenho
lá embaixo, lá dentro, sumirem,
e se agarrou no sino, e viveu.
Em mim só tenho o destino
do que restou de Manoel Mostazo.
O sino que ele não tocou, o pouco
que, nele, tremeu e ficou.
Enquanto em tantos poetas e poemas contemporâneos a afirmação da continuidade familiar e comunitária parece decisiva, e é feita pela sobreposição de traços que persistem de geração para geração, indivíduo para indivíduo de modo como que ritual, conformando-se em identidade, nesse poema de João Mostazo a transmissão é apresentada de forma impessoal. É “consequência”, conforme o título do texto, que aponta também para a vida do poeta, desdobramento, de um modo ou de outro, daquela outra, anterior.
O caráter acidental da salvação do parente longínquo serve ao autor, quem sabe?, como analogia: toda herança contém uma parte apreciável de acaso. A forma paradoxal com que o poema é organizado vai na mesma direção: o que se perdeu, matéria trágica e desconhecida em seus desdobramentos possíveis, compõem o poeta tanto quanto aquilo que, residual, “tremeu e ficou”. O que vem do passado é opaco, por vezes inassimilável. A vida que persistiu, e que afinal espalhou-se, atravessou o oceano e veio reconfigurar-se nas páginas desse livro, foi feita de desejos e de palavras, de ações e de movimento, mas também de coisas apagadas e luto: “O futuro já perdido; imagem que restou do que não veio.”
Dividido entre o que quedou esquecido e o que agora, em meio ao turbilhão, ainda pulsa, o poeta toma o partido dos vivos e do presente. Atravessado por uma vocação reflexiva de caráter melancólico, o poeta prefere, ante a paralisia dos tempos atuais (eles também irremediavelmente melancólicos), “armar um enigma total/ enigma de máquina experimental”, depositando, poema a poema, o estranhamento e a dúvida. Parece-me que essa é a maneira que o poeta encontrou para considerar os desastres do tempo e as surpresas, sempre renovadas, de descobrir-se parte da matéria movediça do mundo. Lendo este Coisa de mamíferos me dou conta de que o poeta é aquele que segue, perdido como todos os demais, mas “com a mão no pulso/buscando um sinal”.
Texto de Gustavo Silveira Ribeiro para a bobina
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