
Os processos generalizados de inclusão que vemos crescer na última década, de pessoas historicamente marginalizadas no mercado consumidor, nos sistemas de legitimação social, em postos de trabalho e atividades antes destinados apenas às elites, incluindo espaços como as universidades e os museus, é reflexo de uma conjuntura social mais ampla e fruto do amadurecimento dos movimentos sociais que, ao longo do tempo, vêm batalhando pelos direitos das camadas politicamente minoritárias da sociedade. Essas mudanças, não resta dúvida, conjugam ainda uma complexidade de fatores, como o impacto das políticas públicas afirmativas, iniciadas nos anos 2000, e os interesses dos mercados, que viram pela primeira vez como consumidores essa parcela da população.
Podemos dizer que esse fenômeno social tem como marco simbólico recente as jornadas de 2013, manifestações cuja imagem emblemática são os cartazes de formato A4, em detrimento das grandes faixas, normalmente produzidas por sindicatos e partidos, rejeitadas na ocasião. Naqueles dias cada manifestante carregava, na sua escala pessoal, as palavras de ordem que se referiam às suas pautas identitárias, de classe, de raça e gênero e com isso reivindicava, em meio a multidão, atenção às suas particularidades. Nesse sentido, ali também se colocaram questões estéticas que conformam hoje esse fenômeno no campo artístico, como o retorno forte à figuração, à pintura de pequena escala e à elaboração pelos artistas da sua autobiografia em seu trabalho. Muitos jovens e coletivos saíram dali mais conscientes politicamente, compreenderam que era possível se auto-organizar, e se deram conta de que era preciso ocupar certos espaços de poder, certas posições, ainda que isso implicasse enfrentamentos de toda a ordem. Essa postura vem mudando paulatinamente a configuração demográfica de certos espaços de legitimação social sem, no entanto, a meu ver, alterar as formas como operam esses sistemas.
A principal ferramenta desses coletivos e artistas, como sabemos, são as redes sociais. Por meio delas, construíram para si uma visibilidade possível e abriram brechas que permitiram sua entrada em alguns sistemas, como os museus, que os absorveram sem, no entanto, se comprometerem com o fomento ao seu trabalho ou com o suporte à produção cultural nos territórios periféricos de onde vem a grande maioria desses sujeitos. Não é uma mudança operada de dentro pelo sistema de arte a partir da compreensão de certas desigualdades que sempre estiveram postas ali. Portanto, não é um processo pacífico. Isso que estamos vivendo é um fato social mais amplo, uma pauta que se fez incontornável para o sistema de arte. Por isso tem limites muito marcados, é superficial sob diversos aspectos, o que deflagra a tendência de tudo voltar à velha ordem, com suas hierarquias de sempre, ainda que em termos de representação se tenha uma atmosfera decolonial (para usar a palavra em disputa do momento).
Sob o pretexto de mobilizar hierarquias, privilégios e posições, muitas vezes se opera o deslizamento de certas práticas de seus mundos de origem para o mundo da arte, de uma forma que só faz reforçar a arte como um valor superior estabelecido, que, associado a sujeitos, coisas e atividades injustamente subvalorizados, em determinados contextos, poderia então “requalificá-los”. São raras as vezes em que o sistema de arte, representado por instituições canônicas como o museu, se deixa impactar pelo modo de fazer arte nesses outros contextos de produção cultural, pelas formas de vida desses sujeitos e comunidades. São exemplos nesse sentido, ainda que cheios de nuances, a introdução no mundo da arte do grafite e das danças de rua ou de baile (como o passinho, por exemplo), que se dá tanto diretamente pelo mercado, na sua absorção pela indústria do entretenimento, quanto pela introdução dessas manifestações, por exemplo, no repertório da dança contemporânea e nas artes visuais, o que pode gerar trocas reais e contribuições mútuas, ou resultar, para acionar uma polêmica tão em voga, em mera apropriação cultural.
Se por um lado se vê a adesão deslumbrada ao mundo da arte por alguns desses grupos (as festas da revista Vogue são a melhor imagem que me ocorre nesse sentido), por outro, há também a resistência de outros grupos, o que vem gerando polêmicas e disputas acirradas acerca dos lugares de fala, da apropriação cultural, entre outras discussões, diante das quais o campo da arte tem se mostrado, na maioria das vezes, despreparado e reacionário. No entanto, é interessante observar um aspecto geral nesse movimento: o da mobilidade social de um pequeno grupo de pessoas antes marginalizadas, como possibilidade mais ampla que se abre para uma parcela maior dessa população, sobretudo jovem, de sobreviver por meio de um ofício no qual se tem espaço para o desenvolvimento da subjetividade, que não aliena a cabeça e nem sacrifica o corpo. Isso é, a meu ver, precisamente o que está em disputa hoje. Quem pode sobreviver tendo a arte como trabalho? A quem é dado esse direito? Qual a responsabilidade das instituições culturais e das pessoas que têm poder no campo da arte, para além de seus próprios interesses, diante da expectativa que se criou em uma população antes apartada dessa possibilidade, de entrar nesse campo de trabalho que desde sempre foi caracterizado pela exceção e pela raridade?
Não é evidente afirmar, sem explicações ou controvérsias, a coincidência entre arte e trabalho. Apesar da crescente institucionalização do campo artístico, do incremento da diversidade nos postos de trabalho em museus e centros culturais nas suas diferentes áreas, a ideia de arte como trabalho é ainda revestida de muita elitização, resquício de valores canônicos associados à ideia do artista como alguém raro e genial, à fetichização da obra de arte única, entre outros valores sobre os quais se fundou a sua tradição. Categoria central dos fazeres humanos, o trabalho é vivenciado pela maior parte das pessoas de forma muito estrita – como algo definido pela necessidade, como sacrifício imposto pela obrigação – ainda que trabalhar não seja apenas produzir riquezas econômicas, como sabemos, mas também uma maneira de produzir a si mesmo. Com estereótipos vindos de ambos os lados, o trabalho está localizado fatalmente no reino das relações de natureza econômica e material, nas quais somos reduzidos a empregadores e empregados. No outro extremo estaria a arte, instalada no reino da liberdade, onde se estabelecem relações por prazer, pelo gosto, supostamente reduzidos ou nulos nas formas de trabalho. Nesse mesmo registro, a arte seria uma vocação, um talento inato, normalmente destinado a poucos, e o trabalho, algo que qualquer um, se quiser, aprende.
Tudo isso dá margem a muita mistificação, além de gerar preconceitos, muitas vezes alimentados pelo próprio sistema de arte, que visa valorizar seus objetos e controlar quem tem acesso ao fazer artístico como forma de vida e sobrevivência, ou seja, acesso à arte como trabalho. Na maioria das famílias, o fato de um filho querer ser artista normalmente é encarado como “opção de fé”, como algo preocupante em termos profissionais, uma aventura (leia-se “vai morrer de fome!”) e que tem que ser compensado pela realização de uma atividade paralela "mais séria". Se por um lado é possível afirmar, mesmo em se tratando do “senso comum”, que a atividade artística é uma forma de trabalho, e que, portanto, está determinada por uma série de fatores relativos à vida social e aos modos de produção; por outro, sabe-se muito pouco sobre como trabalha ou pode trabalhar um artista hoje, ou sobre o que pode fazer ou tem feito um curador independente, sobre o que pode envolver a existência de um museu ou de um pequeno centro cultural, como atua um produtor, e por aí em diante.
No contexto atual, muitas vezes o artista desponta como trabalhador ideal, na medida em que o ator típico do capitalismo pós-fordista, imaterial e cognitivo, é o que desenvolve um labor mental e simbólico, e cada vez mais os museus se colocam como o cenário privilegiado dos interesses do capitalismo. Ao se associar “alegremente” ao capital, no entanto, o campo da arte reitera modelos de reprodução social que se mostraram historicamente insustentáveis, em todos os níveis, acentuando as desigualdades da nossa realidade. E se coloca, como campo, numa posição ambígua, a partir da qual é facilmente apropriada e pode contribuir muito pouco para a transformação social – que entre nós é urgente, de modo que devemos todos tomar parte dela – e até mesmo se empobrece, enquanto experiência subjetiva e estética.
Mesmo assim, ser artista é ainda raramente entendido como a escolha de uma profissão, como acontece quando um jovem decide estudar engenharia, contabilidade, medicina, fazer um curso técnico, por exemplo, sobretudo, nas famílias que não são herdeiras. E não sem razão, pois não é difícil constatar que entre os pobres é muito recente e rara a possibilidade de alguém ser reconhecido como artista ou viver do trabalho no campo da arte, o que parece contradizer o interesse crescente e a proximidade das manifestações artísticas contemporâneas com a produção de grupos periféricos, outsiders ao campo da arte, ou marginalizados. A arte é um mundo desconhecido de grande parte das pessoas, e dessa forma distante ele não desperta pertencimento nem interesse. Sintoma claro dessa elitização da arte é a necessidade incessante que se tem de promover o acesso do público em geral e, em especial, de comunidades historicamente marginalizadas, aos espaços culturais, museus e salas de exposição, em sua maioria ocupados por uma audiência especializada, branca, de classe média ou rica. Esses processos, empreendidos quase sempre como contrapartida social de projetos de captação milionários, não recebem os recursos necessários, e, com frequência, oferecem experiências muito superficiais nos museus, em função também da precarização dos mediadores e educadores, cujo tempo de fruição é, muitas vezes, menor do que o tempo gasto pelas pessoas no deslocamento até esses espaços, aos quais, normalmente, nunca retornam.
Os museus se instituem de forma excludente para depois vender a inclusão. O que é, no mínimo, contraditório, tendo em vista os discursos antirracistas e anticoloniais que tomaram o repertório dessas instituições.
Seria interessante vislumbrarmos, como um resultado mais ambicioso desse processo de "popularização" do campo da arte, o compromisso de instituições e pessoas, dos setores públicos e privados, com o fomento aos meios de acesso e de compartilhamento de saberes e ferramentas necessárias à própria produção cultural nas periferias. Não é sustentável promover apenas acesso à fruição ou ao trabalho no centro, porque assim ele será sempre escasso. Sem abrir mão da mobilidade urbana desses sujeitos antes restritos a certas áreas da cidade, é desejável criar as condições de trabalho artístico e formação nos territórios periféricos onde, a despeito do descaso e da precariedade, uma produção cultural poderosa e inventiva floresce, e vem, historicamente e hoje, sendo trazida em pequenas cotas para alimentar os mercados e conceder vitalidade à programação do chamado centro, sem fertilizar as condições de vida e trabalho naqueles territórios. Ou seja, democratizar o acesso à formação, às fontes de recurso, aos espaços de trabalho e visibilidade nos territórios periféricos, de modo a superar o elitismo que caracteriza esse campo e ampliar, para além de um pequeno grupo de escolhidos entre os que conseguiram produzir, a duras penas, a sua formação e visibilidade, o acesso à arte como trabalho. Esse parece o grande desafio, se quisermos, enquanto campo, democratizar de verdade a possibilidade de invenção de si, de outros modos de vida e trabalho, por meio do exercício da arte.
A função da arte é colocar em crise, como diria Mario Pedrosa em 1959. Para ele, a crise estaria na concepção mesma de arte, na sua missão, na relação necessária entre o artista e a sociedade, e, numa escala mais ampla, com o mundo, com o universo. Se concordarmos com Pedrosa que a função da arte e do artista é colocar em crise, isso precisa começar pela mobilização das estruturas que a estabelecem enquanto tal, institucionalmente. E em termos ontológicos, com a crise das posições, das hierarquias, dos métodos de trabalho, dos seus sistemas de valoração. Nesse sentido, a relação com outros campos e práticas é processo vital para a arte, sem o qual ela não poderia exercer a sua função (colocar em crise, mudar o valor), o que não se reduz a uma utilidade (que esvaziaria o sentido de todo o trabalho num objeto ou produto). Ou seja, não estamos falando da arte como valor já estabelecido e cristalizado, que, ao ser associado a determinados grupos, práticas e objetos, poderia requalificá-los, mudando o seu estatuto, como descrito anteriormente.
Na atualidade, ao contrário, esse tipo de espaço de troca com uma diversidade maior de sujeitos, campos e práticas tem se mostrado importante, sobretudo, para a transvaloração estética e social do próprio campo da arte, como abertura de possibilidade de participação do campo em processos sociais mais amplos e urgentes que visam o aprofundamento da democracia no Brasil. O campo da arte não está "salvando" nem “requalificando” ninguém ao legitimar a produção de sujeitos marginalizados e comunidades periféricas. É bem ao contrário. Foram esses agentes que forçaram com suas lutas e seus trabalhos os limites do sistema de arte, que, apenas na última década, vem se abrindo minimamente à diversidade dos movimentos identitários, de gênero e racializados. É preciso que se assuma e se diga claramente: sem essa abertura à diversidade social, cultural, de gênero, de classe, quem perde legitimidade social é o sistema de arte que, sob muitos aspectos, segue impávido, regido majoritariamente pelos mesmos valores coloniais e elitistas de outrora.
Arte como trabalho perturba a ideia de trabalho (e vice e versa).
Texto de Izabela Pucu para outras paradas
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