O direito à fabulação, a fundação de mitologias próprias e a recondução da história são práticas presentes tanto na literatura quanto no Carnaval em suas mais variadas formas. Quando as duas se encontram, a fagulha criativa dispersa para possibilidades narrativas que podem caminhar ao encontro de novas miradas críticas e estéticas, preenchendo vagas e rios que reabastecem imaginários outrora enfraquecidos pela história oficial.
O desfile da Portela deste ano, intitulado Um defeito de cor, mesmo título da obra-prima de Ana Maria Gonçalves (2006), seguiu o importante rastro inventivo que deu protagonismo a diversas faces da poética de ser uma mulher negra brasileira, sem com isso prestar tributo à retórica da mestiçagem, um dos traços característicos da sociologia freyreana e de determinada vertente negociadora da cultura nacional. Pelo contrário: ao apresentar em primeira pessoa a voz da mãe de Luiz Gama, um dos mais importantes radicais do nosso panteão, Gonçalves fere a ordem discursiva do cânone da literatura brasileira que, quase sempre, reduziu mulheres negras a estereótipos racistas e sexistas.
Luísa Mahin (ou melhor, Kehinde) começa a dialogar com o Carnaval desde a inscrição da personagem a uma série de práticas, representações e narrativas que delineia os princípios iorubanos assumidos pelos africanos escravizados vindos da Costa da Mina ou, especificamente, do Reino de Daomé e que mais tarde, no Brasil, caracterizará a ética de espiritualidades afro, como a do Candomblé da Bahia. Pensando com Jurema Werneck (2020), que reconstrói a categoria “ialodê” como metáfora afro-feminina de liderança política, e com Muniz Sodré (2017), que reformula a concepção geral da filosofia acolhendo uma perspectiva afrocentrada, Kehinde é sobretudo a figura que encena a ética nagô, precipitando a resposta à pergunta: como seria a história do Brasil se fosse contada por uma mulher negra?
Por sua vez, a Portela entra na Sapucaí anunciando o matriarcado negro a partir de Nanã, a senhora dos primórdios, e Oxum, rainha dos rios. A mais velha e mais jovem iabá metaforizam as intricadas relações (como as tranças presentes no carro da comissão de frente) de apoio e solidariedade que fizeram possíveis a sobrevivência de mulheres negras no período escravocrata: formas de coletividade que deram origem às irmandades e outras cooperativas que promoveram a alforria e manutenção da liberdade de escravizados e escravizadas.
Fonte: Rede Globo
No livro, Kehinde conta, dá nomes e detalhes sobre todas/os que vieram antes e que passaram por ela, demonstrando apego a um projeto coletivo que a integra num universo de saberes e sabenças ainda maior: sua ancestralidade. Seu nome significa “aquela que nasceu depois”, o que sugere uma existência condicionada àquela que nasceu antes, isto é, sua irmã gêmea, Taiwo. Sendo ibêjis, tendo, portanto, um ifá (destino) enunciado desde o nascimento, Kehinde e Taiwo ganham tratamento diferenciado dentro de sua própria comunidade, uma vez que, para os iorubás, irmãos gêmeos indicam a boa sorte.
Kehinde então chega ao Brasil sem a irmã e a avó, que não resistiram durante a viagem e acabam morrendo no navio negreiro. Sozinha, a personagem guarda o que aprendeu com sua família e lança um artifício para escapar do batismo cristão: na Ilha dos Frades, Kehinde se joga no mar, o que representa não apenas uma recusa de sua inserção no mundo dos signos europeus e coloniais, mas a resistência em conservar suas próprias tradições para continuar sendo reconhecida e protegida por seus orixás e voduns:
Antes que algum deles conseguisse me deter, pulei no mar. [...]. Então me lembrei de Iemanjá e pedi que ela me protegesse, que me levasse até a terra. Ir para a ilha e fugir do padre era exatamente o que eu queria, desembarcar usando o meu nome, o nome que a minha avó e a minha mãe tinham me dado e com o qual me apresentaram aos orixás e aos voduns (GONÇALVES, 2017, p. 63).
Tal cena de resistência é traduzida pela Portela na ala em que predominam o azul escuro, uma representação da calunga, a travessia, que logo é seguida pelo segundo casal de porta-bandeira e mestre-sala: os santos brancos dão boas vindas a uma Salvador pagã, que chama a atenção pelo sincretismo que, mais uma vez, não é celebrado como um traço de “vantagem” nacional ou qualquer outro argumento freyreano, mas pela fatalidade do contexto de sobrevivência dos cultos africanos. Kehinde fez alianças com brancos solidários à causa abolicionista – caso dos ingleses – mas tal atitude não serve de fundo a uma “celebração das raças” ou algo do tipo. O embate é a tônica tanto do romance de Ana Maria Gonçalves quanto do desfile da Portela.
Ao contrário do livro e da vida, o desfile apresenta o encontro da mãe e do filho, um ato mais do que simbólico face ao aprofundamento das necropolíticas que resistem ainda hoje. Não seria, portanto, mais do que acertado encerrar o desfile com a presença de dezesseis mães cujos filhos morreram pela violência do Estado. Há uma Kehinde em cada mulher negra que anseia reencontrar o filho. Quantos Luiz Gama seriam possíveis em cada menino e menina negra que teve seu futuro interrompido por políticas que promovem o genocídio, tanto de ontem quanto as de hoje?
Texto de Bianca Gonçalves para abre alas
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