“Ela toda negra e infinita se ergue, escorrendo mel”. Esta imagem mítica surge na parte V do poema “Duro contra a alma”, de Dionne Brand, dedicado à Faith. Fé, um nome de mulher. Para mim esta imagem-enigma mostra o caminho bifurcado pelo qual Dionne nos conduz ao longo de Nenhuma língua é neutra: a experiência de uma mulher negra lésbica que ama outras mulheres e uma experiência diaspórica da língua, “algo entre a beleza e o lugar nenhum”. Há um provérbio iorubá que diz que tudo pode ser dito com uma colher de mel na boca e é com doçura que nos chega uma sintaxe que insistentemente bate contra e quebra durezas linguísticas e históricas: “mas tentei imaginar um mar que não sangrasse”.
Nenhuma língua é neutra, publicado pela primeira vez por Brand em 1990, chegou ao público brasileiro no ano passado, em 2023, junto à coletânea de ensaios Pão tirado da pedra, ambos traduzidos pelas poetas negras Lubi Prates e Jade Medeiros, editados pela editora Bazar do Tempo. Se trata de uma bela edição bilíngue, que conta com excelentes paratextos escritos por Fernanda Silva e Souza e Tatiana Nascimento, além da capa assinada por Laís Amaral, todas artistas e pesquisadoras negras.
Dionne Brand nasceu em 1953, em Trinidad e Tobago, e mora no Canadá desde a sua juventude. Atualmente, leciona no College of Arts, na University of Guelph, tendo recebido diversos prêmios literários, como o Toronto Book Award (2006 e 2019). A escrita da autora havia chegado entre nós através do monumental Um mapa para a porta do não-retorno (A bolha, 2022), originalmente publicado em 2001. No poema homônimo Nenhuma língua é neutra, encontramos a elaboração de imagens do mar e da praia de Guayaguayare (onde a poeta viveu sua primeira infância), que vão reaparecer depois em Um mapa para a porta do não-retorno como centro da cartografia que Dionne cria para tratar da experiência de pessoas negras na diáspora, desde a sensação de despertencimento marcada pelo tráfico negreiro, pela passagem dos ancestrais africanos pelos portões dos terríveis castelos de comércio de gente. Quem tinha se apaixonado pela escrita poética-crítica de Dionne em Um mapa para a porta do não-retorno esperava ansiosamente pela tradução para o português de mais obras da poeta, romancista, ensaísta e documentarista, que esteve no Brasil durante a FLIP de 2023.
Em Nenhuma língua é neutra, a linguagem escorre como mel, como fluxo abundante de imagens que põem o sentido em vertigem. Um ritmo de prosa que acelera o poema, significado que não para, quase incapturável, um peixe escorregadio em fuga para a beleza. Aos borbotões, a linguagem aqui é rio em ebulição, águas turvas que rugem e arrastam em seu curso tudo que encontram: árvores, casas, cavalos, gente. Uma água que engole corpos, como o mar de Guaya. Nos versos da primeira parte de “Duro contra a alma”, poema que abre o livro: “Ela recearia tocar/ esse rio em ebulição tal qual uma mulher que dorme/ aquele cheiro de coxas frescas e suor morno/ lençóis feitos dela como mitan rolando para o Atlântico”. E aqui, mais uma vez, o desejo se volta amorosamente para a mulher amada e para o corpo da língua. “Mitan”, de acordo com nota das tradutoras, é como mulheres haitianas são chamadas, palavra que também significa coluna e pilar no Crioulo Hatiano, que empurra a língua inglesa (e também a portuguesa nesta tradução) em direção ao Atlântico Negro. Dionne não recearia trazer para a língua este turbilhão do corpo, as diferentes vibrações da beleza que ampliam a experiência linguística desde a condição diaspórica, permitindo-nos sonhar e despertar códigos, segredos, poderes. Nenhuma língua é neutra é a tese do livro, que conclui o pensamento com os versos finais de “Duro contra a alma”: “minha língua é mística”. Uma língua mastigada pelo sabor travoso de folhas votivas, medicinais.
Grada Kilomba, em entrevista recente ao programa Roda Viva[1], mencionou que a língua inglesa foi remodelada pelo exercício crítico de intelectuais como Angela Davis, bell hooks, Malcom X, dentre outres. Ela lembra da urgência deste trabalho de reinvenção ser feito com maior intensidade na língua portuguesa, para que ela possa hospedar significados que a colonialidade silencia. bell hooks, no ensaio “A língua”[2], defende o uso do vernáculo negro, resultado da apropriação que pessoas negras em diáspora fizeram da “língua do colonizador”, torcendo-a e obrigando-a a funcionar de acordo com uma experiência contra-hegemônica. Quando o ferro passa pelo fogo, se torna ferramenta útil; do mesmo modo, algo duro contra a alma pode virar ferramenta para fertilizar a terra e abrir caminhos de vida.
Ogunhê!
No poema que dá título ao livro, a poesia é a tecnologia de transformação da vida: “o horizonte malicioso fez de nós pensadoras essenciais da tecnologia”. A poesia de colonizades criou e continua a criar diferentes veios no terreno árido e violento das plantations linguísticas:
uma morfologia de arrastar de correntes e gongo de cobre
agora moldam este sotaque, falsetes de chicote e ar
assentam essa gramática. Entenda o que eu digo. Quando
esses barracões abrigavam pessoas escravizadas entre cabrestos
de pedra, a conversa era da noite, e o silêncio era linguagem
e núcleo quente.
Aqui me lembro do “jogo de escrever no escuro”, que é como Conceição Evaristo nomeia a sua experiência de descoberta da escrita na infância, quando deitada na cama para dormir, ficava meio acordada ouvindo as falas da mãe, das tias e das mulheres da vizinhança, sem entender as narrativas noturnas, completando as lacunas com ficção[3]. Fico pensando em como a narrativa das mulheres negras na diáspora foi responsável por inserir nas línguas oficiais das colônias formas e sentidos transgressores. Entre nós, Conceição fala da liberação da habilidade narrativa de mulheres negras que, durante a escravização, foram forçadas a colocar seus corpos e suas histórias à serviço do prazer e do bem-estar da Casa Grande. À insubmissão linguística e narrativa de mulheres negras, Conceição nomeou “escrevivência”, sintetizando seu conceito-chave na formulação poderosa, com jeito de provérbio, feito para bater e ficar gravado na memória: “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ninar os da Casa Grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. O que bate aqui bate como ritmo, como o martelo do ferreiro e como a mão que toca a pele do tambor, moldando as subjetividades diaspóricas através de sons, silêncios e movimento. Em Dionne, lemos: “Esta cidade, lamentando o cheiro de flores e sujeira não pode me dizer o que contar mesmo que me enforque”. Uma coragem diante da ameaça real que vigia durante as leis Jim Crown, que instituíram a segregação racial no sul dos EUA de 1877 até 1964.
Desde este lugar político de uso de uma língua marcada, crioula, amefricana (para lembrar Lélia Gonzáles), Dionne homenageia mulheres negras através de poemas a elas dedicados, uma forma de cuidado, um carinho pela mão da sintaxe e do léxico. Assim há um poema para Phyllis Coard, ministra dos assuntos das mulheres no governo revolucionário popular de Granada, presa; um para Jacqueline Creft, ministra da educação do mesmo governo popular revolucionário, assassinada; um para Mary Prater, que teve uma vida longa após a escravidão, desafiando os dispositivos coloniais de aniquilamento e esquecimento ao longo de seus 115 anos de vida; um para sua mãe, Amelia; um para sua avó, Liney; além dos versos apaixonados para mulheres, cheios de afeto e tesão. Este é, de fato, um livro de declaração de amor a mulheres negras feito por uma mulher negra.
Em “Poesia”, o último ensaio de Pão tirado de pedra, Dionne diz: “tem sido um alívio escrever poesia, é um espaço para viver. (...) Uma coisa enfrentando o modo como vivemos, uma coisa perigosa, uma coisa honesta”. A poesia, um espaço de criação em que mulheres negras podem ser desde as suas dissidências e insubmissões. Que possamos aprender com a poeta o trabalho da forja.
Texto de Heleine Fernandes para a bobina. Heleine é poeta, performer e ensaísta. Professora de Literatura Brasileira na UFRJ.
[1] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=up-F2Pzf0LY
[2] hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
[3] Evaristo, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. Disponível em https://revistazcultural.pacc.ufrj.br/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-dos-lugares-de-nascimento-de-minha-escrita/
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